Bruno Gabriel Witzel de Souza – Pesquisador associado ao Instituto de História Econômica e Social da Universidade de Göttingen; membro do Ibero-Amerika Institute. Sócio correspondente do IHGG Campinas em Gottingen, Alemanha. Leonardo Antonio Santin Gardenal – Professor associado à Fundação Hermínio Ometto de Araras, SP.
Resumo: Em abril de 2021 ocorreu o lançamento dos primeiros resultados do projeto “Trabalho, vivências e imigração em uma plantation brasileira: os arquivos da fazenda Ibicaba (1890-1970)”. Objetivando conservar e digitalizar o material arquivístico existente em Ibicaba, uma das mais proeminentes fazendas brasileiras do século XIX, este projeto faz parte do Modern Endangered Archives Program (MEAP). O presente artigo é uma breve introdução ao projeto em si. Depois de contextualizar o projeto no histórico da fazenda Ibicaba, o artigo apresentará brevemente o conteúdo do material que vem sendo digitalizado – dos quais 15 livros de contabilidade e administração rural já foram publicados. Na sequência serão discutidas as principais características do MEAP – o programa do qual o projeto faz parte –, de modo que os leitores possam ter uma conceptualização mais ampla e realizem suas próprias pesquisas com os novos arquivos sendo digitalizados ao redor do mundo no mesmo contexto que os de Ibicaba. Na conclusão serão discutidas, de maneira geral, algumas potencialidades esperadas para pesquisas futuras com este novo material digitalizado.
Abstract: The first results of the project “Labor, livelihood, and immigration in a Brazilian plantation: the archives of farm Ibicaba (1890-1970)” have been made publicly available on April 2021. With the goal of preserving and digitizing the archival material currently existent in farm Ibicaba – one of the most prominent Brazilian plantations in the nineteenth century –, this project is part of the Modern Endangered Archives Program (MEAP). The current article is an introduction to the project itself. After contextualizing the project within the history of farm Ibicaba, the article will briefly introduce the content of the material that is being digitized – of which 15 ledger referring to rural accounting and administration have been published. In the sequence, the authors will discuss the main features of the MEAP – the program encompassing the project –, such that readers gain a broader conceptualization and might conduct their own research with the new archival materials that are currently being digitized all around the world in the same context as those of Ibicaba. In the concluding remarks the authors will discuss, in broad strokes, the potentialities that the newly digitized material will have for future research.
Introdução
Para historiadores e cientistas sociais interessados na história da imigração, da escravidão e do trabalho no Brasil, a fazenda Ibicaba, localizada no atual município de Cordeirópolis, dispensa introduções. Fundada em 1817 por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro – futuro senador do Império e figura de liderança na política nacional –, esta fazenda foi objeto recorrente de estudos, tanto por contemporâneos que a visitaram em seu apogeu econômico no século XIX, quanto por acadêmicos de renome que buscaram entender os fenômenos socioeconômicos ali ocorridos – incluindo figuras com o peso de Sérgio Buarque de Holanda e José Sebastião Witter.
Para além de sua proeminência em outras áreas – como em inovações tecnológicas e agronômicas –, a fazenda notabilizou-se por ter sido o palco das primeiras iniciativas sistemáticas de empregar o trabalhador europeu na execução de tarefas agrícolas, no que pode ser considerada como a primeira fase da transição do trabalho escravo para o livre no Brasil. Este pioneirismo não nos deve fazer esquecer, porém, que a companhia fundada pelo Senador Vergueiro manteve o maior número de escravos da região de Limeira na década de 1870 (Marcondes 2021, no prelo); e que se agarrou ferrenhamente a esta modalidade de trabalho – com todos os seus horrores, conforme descrito por muitos viajantes que a visitaram no século XIX – até os extertores da escravidão, em 1888.
A fazenda Ibicaba é também objeto de interesse de grande parte da população do interior paulista. Isso se deve à preservação do complexo cafeeiro por seus atuais proprietários, que a abriram ao turismo rural e histórico desde a década de 1990, atraindo grande número de visitantes de todas as idades e atuando positivamente na educação de um sem-número de crianças e jovens que visitaram suas dependências desde então.
De modo relacionado, o interesse genuinamente popular no histórico desta fazenda – que tem incentivado excelentes e recorrentes trabalhos monográficos de história regional e de genealogia – deve-se ao fato de que inúmeras famílias hoje espalhadas pelo interior paulista tiveram suas origens brasileiras como imigrantes naquela “Terra Gorda”, o significado em tupi de “Ibicaba”, que nem sempre refletiu as vivências de seus trabalhadores.
Ainda que por motivos diferentes, estes dois públicos certamente apreciarão o projeto intitulado “Trabalho, vivências e imigração em uma plantation brasileira: os arquivos da fazenda Ibicaba (1890-1970)”.
Este projeto tem conduzido o inventariamento, a higienização e a digitalização dos arquivos históricos hoje existentes na fazenda Ibicaba. Trata-se de um projeto realizado em parceria entre a Fazenda Ibicaba, o Instituto de História Econômica e Social da Universidade de Göttingen e a Biblioteca da Universidade da Califórnia, Los Angeles, sendo financiado pelo Arcadia Fund e contando com o apoio técnico e de treinamento para seus membros pelo Centro de Memória da UNICAMP (CMU).
Como resultado de um esforço de quase dois anos de trabalho, o projeto – a que vamos nos referir a partir de agora como “Arquivos da fazenda Ibicaba” – teve um primeiro conjunto de livros históricos da administração e contabilidade da fazenda disponibilizados online em abril de 2021.
Os interessados podem conferir o projeto completo no link a seguir:
https://meap.library.ucla.edu/ibicaba-farm
Os que preferirem checar a coleção dos documentos diretamente podem o seguinte link:
https://meap.library.ucla.edu/search#!/collection=Ibicaba+Farm+Records?config=collections
O projeto
O projeto “Arquivos da fazenda Ibicaba” foi iniciado em 2019, após ser selecionado para integrar o primeiro grupo do Modern Endangered Archives Program, um programa da Biblioteca da Universidade da Califórnia, Los Angeles, para preservação e digitalização de arquivos ao redor do mundo.
Em termos de conteúdo, o projeto tem dois objetivos. O primeiro é auxiliar os proprietários da fazenda na preservação dos documentos originais da Ibicaba que se localizam nos arquivos históricos da própria fazenda. O segundo é disponibilizar a versão digitalizada deste material em uma plataforma segura de armazenamento online, com imagens de alta qualidade e em um ambiente digital que permita um fácil cruzamento de dados entre todos os projetos do programa.
Para cumprir estes objetivos, os pesquisadores associados – autores deste artigo – elaboraram um primeiro rascunho inventariando os documentos históricos a serem digitalizados. Esta primeira etapa revelou a existência de aproximadamente 200 manuscritos históricos – incluindo livros, livretos e cadernetas de contabilidade e administração – hoje existentes nos arquivos da fazenda Ibicaba, os quais cobrem o período de 1889/90 a 1975. Esta documentação corresponde, portanto, ao segundo período da administração da fazenda, pela família Levy. Originariamente formada por imigrantes vindos dos Estados Alemães como trabalhadores para o café, a família Levy adquiriu a propriedade em hasta pública, em 1890, inicialmente em um consórcio com o Coronel Flamínio Ferreira de Camargo, depois dissolvido (Heflinger Jr. 2007, 2009; Tamiazo 2021, no prelo).
Este acervo documental inclui livros de administração e contabilidade da fazenda Ibicaba, assim como algum material esparso de outras propriedades agrícolas da família Levy, como as fazendas Iracema, Goyapá e São Francisco.
A maior parte dos documentos refere-se a transações operacionais da fazenda e à administração do complexo cafeeiro – sobretudo em termos de organização do trabalho. Este último material será certamente de grande interesse do público mais amplo, que esteja focado em pesquisas genealógicas. Para um período de praticamente cem anos, os manuscritos digitalizados trarão informações sobre a produção, consumo e posição financeira (de débito ou crédito com a fazenda) da maior parte de seus trabalhadores não-cativos.
A etapa seguinte no projeto foi um treinamento oferecido pelo Laboratório de Conservação e Restauro do Centro de Memória da UNICAMP (CMU). Em fevereiro de 2020, Leonardo Santin Gardenal e Carolina Carvalho Silva – auxiliar de pesquisa selecionada em um processo competitivo de candidaturas – foram treinados pela conservadora Alessandra França Barbosa em uma oficina de trabalho sobre métodos de conservação preventiva, manuseio do material histórico, sua higienização e preparo para digitalização.
A execução do projeto continuou sem entraves até março de 2020, quando a pandemia de Covid-19 levou o time de pesquisadores a adotar medidas de distanciamento social para a plena segurança de todos os envolvidos. No entanto, nesse ínterim, grande parte do material passou pelas primeiras fases de limpeza mecânica e indexação, ficando prontos para o processo de digitalização. Esta é exatamente a etapa atual do projeto, que deverá continuar ainda pelo menos até o final de 2021.
A digitalização do material segue diretrizes do International Digital Ephemera Project (IDEP) Toolkit, um guia da Biblioteca da Universidade da Califórnia, Los Angeles, para a digitalização e preservação de material histórico e cultural ao redor do mundo, em várias mídias. Pesquisadores e arquivistas profissionais, assim como entusiastas desejosos de conservar materiais e coleções digitalmente encontrarão instruções e dicas interessantes em https://uclalibrary.github.io/ideptoolkit/. Naturalmente, nem todas as condições materiais permitem seguir de maneira estrita as orientações; nesses casos excepcionais, a comunicação dos times de digitalização no Brasil, Alemanha e Estados Unidos faz-se crucial – e, esperamos, contribuirá também para o refinamento das próprias instruções no futuro.
Atualmente, a fase de digitalização conta ainda com o apoio de Donalis Delgado, fotógrafo profissional e segundo auxiliar de pesquisa, que integra o time desde março de 2021.
Com as cópias das páginas digitais, o material histórico é então tratado eletronicamente pelos membros do projeto, de modo a gerar as melhores imagens digitais possíveis, sendo finalmente enviadas para avaliação dos especialistas em armazanamento digital.
Ao mesmo tempo em que ocorre a digitalização, o time de pesquisa elabora os metadados dos livros, mais uma vez seguindo os protocolos do IDEP Toolkit. Parte deste trabalho pode ser vista no acervo documental disponibilizado online. Os pesquisadores e visitantes notarão que cada um dos livros é indexado de maneira única, contando com informações sobre data e local de publicação, título, período de cobertura (mês e ano), descrição detalhada de conteúdo, assim como notas de interesse (como material extra que foi encontrado dentro do livro, selos de tipografia, notas dos autores etc.).
Manuscritos adicionais: Biblioteca Paulo Masuti Levy
O histórico da fazenda Ibicaba pode ser subdividido em três períodos, correspondentes a cada uma de suas administrações: a dos Vergueiro (1817-1889); a dos Levy (1890-1975); e a dos Hayden Carvalhaes (desde 1975).
De um ponto de vista analítico e comparativo, o período de administração da família Levy é possivelmente o menos conhecido e estudado, de modo que os membros do projeto esperam contribuir para fechar esta lacuna ao longo do tempo.
No entanto, sabendo do grande interesse popular pelo período da administração Vergueiro – sobretudo, pelo intenso e inovador processo imigratório que então se deu na fazenda –, o projeto foi calorosamente recebido pela Biblioteca Paulo Masuti Levy, que hoje abriga o material remanescente da gestão Vergueiro. Uma vez concluída a digitalização do material existente na própria fazenda Ibicaba, o projeto seguirá para a digitalização também do material na referida biblioteca particular, completando deste modo seu segundo objetivo.
O programa
O projeto “Arquivos da fazenda Ibicaba” é um entre os dezesseis atualmente conduzidos sob a égide do programa Modern Endangered Archives (MEAP). Financiado pelo Arcadia Fund, esta iniciativa da Biblioteca da Universidade da Califórnia, Los Angeles, tem um slogan tão poderoso quanto simples: “Nós preservamos herança cultural” (livre tradução para “We preserve cultural heritage”).
De acordo com a definição de seu escopo e orientações (https://meap.library.ucla.edu/about), o MEAP dedica-se a (não necessariamente em ordem de importância):
- “Prover acesso aberto a materiais culturais e históricos ao redor do mundo que desafiem narrativas históricas politizadas ou nacionalizadas que minimizem ou silenciem múltiplas vozes e perspectivas”.
- “Permitir a preservação digital de heranças culturais em risco em locais do mundo com recursos limitados para preservação arquivística”.
- “Expandir a capacidade de preservação digital ao redor do mundo e construir uma cultura de acesso aberto que possa continuar depois do término do financiamento”.
[traduções livres dos autores deste artigo]
A cada ano, o programa lança uma chamada, usualmente com término em fevereiro, para um novo grupo de projetos. Os interessados podem submeter propostas para um projeto de planejamento – ou seja, de prospecção de um arquivo que se deseje digitalizar –, ou de execução – para a preservação efetiva e digitalização de um arquivo completo.
Atualmente, outro projeto brasileiro faz parte do programa: “A banda do capitão Zuzinha: digitalização das partituras do frevo no começo do século XX como patrimônio mundial” (a descrição completa pode ser encontrada aqui: https://meap.library.ucla.edu/brazilian-frevo).
Os demais projetos têm ampla cobertura geográfica – Afeganistão, Albânia, Argentina, Barbados, Belize, Haiti, Índia, Líbano, México, Myanmar, Timor Leste, Uruguai – e uma rica paleta em temas e mídias a serem preservadas e digitalizadas – incluindo, mas não se limitando à história do cinema regional, tradições orais de comunidades locais, negativos de fotos, produção filmográfica de heranças comunitárias etc.
É interessante registrar explicitamente que, em alguns anos, pesquisadores acessando o portal do MEAP encontrarão referências cruzadas com a fazenda Ibicaba. Mesmo hoje – ainda no início da digitalização de todos esses acervos –, alguém que procure pelo termo “farm” (fazenda) encontrará no portal não apenas 15 entradas referentes à Ibicaba (que foram digitalizadas até abril de 2021), mas 3 outras entradas do projeto de Barbados. Para além da preservação gratuita e online, a plataforma do MEAP fornecerá alguns surpreendentes (e belos!) paralelos entre histórias e culturas espalhadas ao redor do mundo.
Contribuições potenciais e algumas conclusões
As publicações sobre Ibicaba e temas correlatos a ela – imigração, escravidão, sistema de parceria, revoltas de colonos, inspeções internacionais, visitas diplomáticas etc. – são inúmeras e não param de crescer. No entanto, as informações do projeto “Trabalho, vivências e imigração em uma plantation brasileira: os arquivos da fazenda Ibicaba (1890-1970)” demonstram a existência não somente de importantes lacunas em nosso conhecimento, como também a eterna possibilidade de lançar novos olhares a um lugar que pensamos conhecer, mas que a cada vez nos fascina de novo pelo que não havíamos visto ou por aquilo de que nos esquecêramos.
Os documentos digitalizados permitirão um estudo mais aprofundado da gestão Levy em Ibicaba. Trata-se de um período crucial na história brasileira e mundial: é a fase do pós-abolição, dos conturbados primeiros anos da República, das políticas de valorização do café, de duas guerras mundiais, do golpe de 1930, da Revolução Constitucionalista e da Grande Depressão da década de 1930. Hipóteses não nos faltam a respeito dos efeitos destes eventos sobre a economia brasileira, que poderão agora ser parcialmente testadas naquele que fora um dos mais importantes centros cafeeiros do país.
Ademais, as informações sobre a administração Levy nos permitirão visualizar com maiores detalhes o processo de integração econômica, social, política e cultural de uma família descendente de imigrantes em sua segunda, terceira e quarta gerações no Brasil. Ainda que não representativa da ascensão do imigrante médio em São Paulo, estudos de caso sobre os Levy em Ibicaba merecem ser aprofundados exatamente por seu excepcionalismo.
Outros enfoques clássicos da historiografia e das ciências sociais aplicadas poderão ser revisitados com os novos dados. Aqui se incluem estudos potenciais a respeito das condições de vida e de trabalho numa fazenda paulista durante a primeira metade do século XX.
Ao leitor não-acadêmico pode parecer estranho, mas muitas das afirmações que cremos já provadas são antes hipóteses que ainda precisam ser testadas. Por exemplo, quão longas eram as jornadas de trabalho rural antes da consolidação das leis trabalhistas? Como mudou a remuneração média do trabalho ao longo do tempo e de acordo com os diferentes contratos? Como se dava a divisão funcional do trabalho dentro do complexo cafeeiro e como isto mudou ao longo do tempo, sobretudo a partir da introdução de novas tecnologias?
A literatura acadêmica brasileira e internacional avançaram muito nas respostas a questões semelhantes a estas, mas ainda há lacunas importantes a serem preenchidas, para as quais este projeto visa fornecer novos materiais com os quais trabalhar.
Aos pesquisadores que integram este projeto, parecem evidentes as contribuições que poderão surgir à história econômica e à história de empresas. No entanto, arriscamo-nos a conjecturar que inúmeras outras frentes podem ser abertas. A história cultural certamente encontrará material nas páginas digitalizadas; por exemplo, a respeito das atividades de lazer dos proprietários e dos trabalhadores, que acabaram registradas nos manuscritos. Mesmo a história da arte possivelmente encontrará conteúdos de interesse, não apenas indiretamente, com a análise material dos próprios manuscritos – sem dúvida, belíssimos –, como também por alguns documentos postos dentro dos livros. A título de exemplo, foram encontrados dois mapas no processo de inventariamento: um para um lugar “logo ali”, mapeando as casas remanescentes da Colônia Grande, na própria fazenda Ibicaba, possivelmente referente às décadas de 1920 e 1930; e o segundo para outro canto do mundo, pintando com cores vivas o sudoeste asiático ainda sob o comando de potências imperiais europeias (portanto, certamente anterior à década de 1940).
Em complemento, as ciências sociais aplicadas desfrutarão de grande quantidade de material. O estudo das condições de vida de diferentes categorias de trabalhadores, de suas clivagens étnicas e linguísticas, da integração de imigrantes no mercado de trabalho local e sua relação com nacionais, dos padrões de consumo e suas mudanças ao longo do tempo, do sistema de crédito e endividamento no interior paulista: eis aí apenas algumas perguntas que poderão interessar a pesquisas em sociologia, estudos da imigração, economia e desenvolvimento econômico, apenas para citar as disciplinas mais obviamente próximas deste objeto.
Quanto aos interesses do público em geral, os documentos permitirão avanços relevantes nos estudos genealógicos, dado que grande parte dos manuscritos registra a produção e o consumo de famílias brasileiras e estrangeiras que viveram e trabalharam na Ibicaba durante praticamente todo o período. Ademais, o acesso online às fontes primárias fornecerá aos genealogistas e aos curiosos um contato direto com a materialidade dos documentos: em certo sentido, o folhear das páginas, mesmo que online, permite ao leitor uma aproximação maior com o objeto estudado. Não serão poucos os momentos em que, ao encontrar um antepassado longínquo, o leitor se perguntará sobre os dias festivos em que aquela família comprou alguns quilos de carne a mais ou alguma cachaça na venda da fazenda.
Para o futuro, o projeto “Arquivos da fazenda Ibicaba” pretende abrir uma cabeça-de-ponte em duas direções. Em primeiro lugar – e mantendo o espírito do MEAP –, será seu objetivo estimular novas cooperações entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros no estudo da materialidade dos arquivos de Ibicaba e do conteúdo de seus documentos. Em segundo lugar, buscar-se-á estimular projetos semelhantes em outras fazendas brasileiras. Apenas para citar o exemplo possivelmente mais influente, na década de 1970, Maria Silvia B. Bassanezi escreveu influente e brilhante tese de doutorado – recentemente transformada em livro – usando os arquivos da fazenda Santa Getrudes, um corpo documental semelhante ao que está sendo digitalizado em Ibicaba. Em partes, a ideia de recuperar arquivos de fazendas remete a aspirações hoje já bastante antigas, talvez melhor ilustradas pelos esforços de Jeanne Berrance de Castro na década de 1960. No futuro, esperamos que o projeto de Ibicaba estimule iniciativas semelhantes para a conservação local de arquivos privados e sua disponibilização pública e gratuita por meios digitais.
Nota: Este projeto tem o apoio do Modern Endangered Archives Program da Biblioteca da UCLA, com financiamento do Arcadia, um fundo caritativo de Lisbet Rausing e Peter Baldwin.
Bibliografia
[Nota: as referências a seguir são apenas aquelas usadas diretamente no corpo do texto; uma revisão completa de bibliografia sobre a fazenda Ibicaba ou sobre métodos digitais nas ciências sociais e humanidades fugiria ao escopo e interesse deste artigo].
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TAMIAZO, P. (2021, no prelo). “Capítulo 3 – A fazenda Ibicaba, a família Levy e a comunidade de Cordeirópolis”. In Idem.
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_____ (1982). Ibicaba, uma experiência pioneira. São Paulo: Arquivo do Estado – Coleção monografias, Vol. 5 (2ª edição).
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