Marcas do passado: a edificação da metrópole sobrepujando os escravizados

Geovanna Bispo Alves – jornalista, escritora. Correspondente do IHGG Campinas em Sumaré, SP.

Resumo:

Esse texto tem por objetivo evidenciar o desenvolvimento do município de Campinas (SP), diante da mão de obra escrava e a maneira como ganhou atratividade financeira no período da escravidão. Consequentemente, revelar o quanto pulsa a cultura de matriz Africana nessa cidade, bem como a sua importância para a formação histórica, econômica e cultural.

Traces of the past: the construction of the metropolis surpassing the enslaved.

Abstract: 

This text aims to highlight the development of Campinas (SP, Brazil), in the face of slave labor and the way it gained financial attractiveness during the slavery period. Consequently, to reveal how much the African matrix culture pulsates in that city, as well as the importance for the historical, economic and cultural formation.

* * *

A terceira maior cidade do estado de São Paulo é também palco de conhecimento e lembranças históricas para seus habitantes. Com seus 246 anos e uma população superior a um milhão de pessoas, Campinas, entre seus bairros e distritos, seus prédios e espaços públicos, e seus cantos e antros, revela-se singular para os edificadores da metrópole. Suas ruas, avenidas, praças e monumentos representam, condicionalmente, a memória difusora do seu povo.

Relembrar sua construção é evidentemente conceituá-la com um passado agressivo e hostil, junto ao crescimento do país, uma vez que necessitou do trabalho escravo para o desenvolvimento de suas produções e empreendimentos. Portanto, simbolicamente, a cidade expressa a presença de seus indivíduos, tal qual suas relações e contradições estão atreladas ao diálogo e à civilidade.

Conta o historiador Duílio Battistoni Filho, titular das principais entidades culturais locais (Centro de Ciências, Letras e Artes, CCLA, Academia Campinense de Letras, ACL, e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas, IHGGC), que a antiga Vila São Carlos foi formada a partir de um bairro rural de Jundiaí (SP), um estreito agrupamento que se dedicava à atividade familiar de subsistência, como plantações de feijão, arroz, milho, mandioca, dentre outros. Após certo período, a indústria do açúcar e o processo de urbanização impulsionaram grandes avanços, acarretando a mercantilização dos africanos.

Logo a Vila de São Carlos, marcada pelo seu crescimento político e econômico, tornaria-se Município de Campinas. Todavia, fazia de seu poderio financeiro os patíbulos para castigarem os negros escravizados. Tanto isso é verdade que em 1835 ocorreu uma punição das mais cruéis a um homem: o escravo Elesbão foi acusado, julgado e sentenciado à morte pelo (suposto) assassinato do seu senhor. (OLIVEIRA, 2016). O infeliz foi enforcado, degolado e partes de seu corpo foram espalhadas em estacas pelas vias públicas.

Evidentemente que, quando chegado o domínio do café, por volta dos anos de 1840-50, a exploração desumana continuava ofertando mais oportunidades para uma nova classe que detinha imensas propriedades de terras: os abastados barões de café; fortes aliados da política imperial que, dia a após dia, ampliavam suas riquezas a partir do cultivo desse fruto e do trabalho dos negros escravizados.

Com a crescente demanda de mão de obra para as lavouras de cana-de-açúcar e de café, o país chegou a receber cerca de 40% de todos os escravos trazidos para as Américas. A escravidão africana em nosso país acabou se relevando fundamental e marcante na constituição da sociedade e da cultura brasileira.

Consequentemente, o negro, que antes era livre em sua terra natal, passou a ser prisioneiro, e já que nenhum ser humano nasceu para a escravidão, os africanos diversas vezes tentaram empreitar suas fugas. Aqueles que conseguiam escapar, alojavam-se em quilombos e os que eram pegos pela insanidade da oligarquia que dominava o país, eram publicamente açoitados.

Por sinal, pouco provável era encontrar algum produtor de café que não possuísse escravos, uma vez que a economia clamava por essa mão de obra. Assim era trivial ver negros trabalhando em lavouras e até em outras atividades. Eventualmente havia aqueles que saíam das fazendas com cestas de frutas, verduras, de alimentos preparados e de utensílios domésticos para venderem no centro da cidade, e outros que, contratados por terceiros, recebiam a permissão de seus senhores para trabalharem na construção civil e na higienização das ruas e logradouros da cidade.

Sabe-se que o percurso histórico da população negra sofreu e ainda sofre consequências do passado, tal qual foi marcado pela brutalidade da escravidão. Em vista disso, as representações sobre o mundo dos escravizados são marcadas pelo sofrimento e o desencanto, ou a polarização entre a violência e a rebeldia.

Segundo Amaral Lapa (1996), a partir da segunda metade do século XIX, a riqueza de Campinas aumentou a ponto de atrair estrangeiros europeus com muitas atividades especializadas. Foi nesse período que Campinas tornou-se uma das principais cidades brasileiras na produção do café, sendo reconhecida como “a capital agrícola da província. Contudo, há evidências de que os imigrantes europeus tiveram oportunidades de ascensão social e de galgarem camadas mais abastadas da sociedade. Por sua vez, a imensa maioria da população negra não vislumbrou essa possibilidade e sofreu uma trajetória inversa, de caráter permanente.

Outro artigo de Duílio Battistoni (2018) corrobora os pontos de vistas dos nossos entrevistados, especialmente de Alessandra Martins (2018), quando afirma que Campinas foi uma das últimas cidades a abolir a escravidão. Enquanto o país já havia decretado a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio 1888, os grandes fazendeiros seguiram praticando a escravização, aproveitando-se da baixa perspectiva de melhoria de vida dos libertos e da escassez de mão de obra livre.

Percebemos então que a cidade de Campinas é um espaço vivo da manifestação do povo de matriz Africana, cujos fragmentos urbanos, seja nas formas de uso e de manutenção de suas raízes culturais, não são vistos pela maioria da população. Essas manifestações têm como representação fundamental para sua existência o compromisso com a transmissão de saberes, salvaguarda e preservação dessa ancestralidade Africana, incluindo a luta permanente contra o racismo, discriminação e diversas intolerâncias.

Nesse sentido, a herança cultural de matriz Africana, em seus saberes, valores e ritos, tem ganhado maior visibilidade por meio da luta do movimento negro, dos grupos culturais e das comunidades tradicionais de terreiro. Valorizar a riqueza dessa contribuição implicou na obrigação e na contradição de reconhecer o lugar de subalternização e estereotipia vinculado aos negros na sociedade brasileira e o compromisso com a transformação dessa realidade e de sua identidade territorial.

A conquista de um pedaço de chão em Campinas e na maioria das cidades brasileiras não foi uma missão fácil, pois além do custo, outro fator se impunha nessa busca: a diferenciação social. No espaço urbano, fundamentam-se os interesses do capital, a ação do estado e a luta dos seus ocupantes como forma de resistência contra a segregação e pelo direito à cidade, que é formada pelos seus diferentes bairros, cada um com estrutura própria, particularidades, histórias que reúnem diversidades em uma vida cotidiana coletiva.

No entanto, são os registros dessa presença memorável, embora apagada, que se fazem presentes do ponto de vista do patrimônio material e imaterial de matriz Africana e, ao mesmo tempo, ensejam a busca por compreender como essa matriz influenciou, e ainda influencia, o ambiente e a forma urbana de Campinas, mesmo tendo em vista que a participação da população negra no contingente populacional foi reduzida.

Para finalizar, eu gostaria de apresentar o meu livro, fruto do TCC de minha graduação em jornalismo pela UNIP, em 2018: A negra cor que resiste nas ruas de Campinas.

Alguns negros se destacaram como poetas, jornalistas e escritores; negros que abraçaram a causa pela liberdade; negros compositores e musicistas; negros escravizados; negros professores e donos de conhecimentos fascinantes. Muitos deles, hoje, homenageiam com seus nomes as vias públicas desta cidade. Desse modo, o livro tem como objetivo reconhecer a história e a importância dos afrodescendentes para essa metrópole e mostrar como a cultura de matriz Africana edificou o Brasil.

No primeiro capítulo, ofereço um resumo dos anos de 1700 a 1888, para compreender de que maneira essa cidade foi construída, mediante seu povoamento, no processo de urbanização, com a dominação política e econômica dos senhores do engenho e dos barões de café campineiros, sobrepujando os escravizados. Esse contexto também pode ser verificado na história de igrejas edificadas por negros ou que detém raízes simbólicas dos cativos.

No segundo capítulo descrevo histórias de vida de personalidades negras, que se destacaram conforme suas ações na sociedade local, cada um com a sua memória sublime. Ao encalço do último capítulo, retrato a biografia de compositores, músicos e sambistas do Rio de Janeiro, que também emprestam seus nomes às ladeiras de Campinas. Espero que o leitor entenda o conceito primordial das páginas do livro A negra cor que resiste nas ruas campineiras, que remetem para a multiplicidade de histórias de negros prestigiosos.

Referências:

ALVES, Geovanna Bispo. A negra cor que resiste nas ruas de Campinas. Campinas: edição do autor, 2018.
FILHO, Duílio Battistoni. “A escravidão dos negros em Campinas”. Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas, 16 nov. 2017. Disponível em:  https://ihggcampinas.org/2017/11/16/a-escravidao-dos-negros-em-campinas/ Acesso em: 14 jun. 2018.
FILHO, Duílio Battistoni. “Por que o Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão”. Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas, 10 maio 2018. Disponível em:https://ihggcampinas.org/2018/05/10/por-que-o-brasil-foi-o-ultimo-pais-da-america-latina-a-abolir-a-escravidao/ Acesso em: 14 jun. 2018
LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade os cantos e os antros: Campinas. São Paulo: Ed. Humanitas / Universidade de São Paulo, 1996.
LOURENÇO, Almeida Edna. Depoimento [abr. 2018]. Entrevistadora: Geovanna Bispo Alves. Campinas, 2018. Entrevista concedida para elaboração do livro-reportagem “A negra cor que resiste nas ruas campineiras”.
MARTINS, Alessandra Ribeiro. Depoimento [abr. 2018]. Entrevistadora: Geovanna Bispo Alves. Campinas, 2018. Entrevista concedida para elaboração do livro-reportagem “A negra cor que resiste nas ruas campineiras”.
OLIVEIRA, Valdir. Elesbão. Campinas: ed. independente, 2016.

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