Preface to the: Food History: recipe books and food practices, Campinas (SP, Brazil): 1860-1940.
Leila Mezan Algranti – professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
A importância assumida, nas últimas décadas, pelos estudos dedicados à alimentação, assim como o potencial histórico desse tipo de abordagem para o melhor conhecimento de determinada sociedade, foram amplamente destacados na obra de Eliane Morelli Abrahão, em diferentes momentos de seu estudo. De fato, os avanços desta área na historiografia internacional e brasileira têm sido significativos e o diálogo que Eliane estabelece com diferentes autores é um dos elementos de destaque na análise que empreende em História da Alimentação: cadernos de receitas e práticas alimentares, Campinas 1860 – 1940, o segundo Volume da Coleção Memória de Campinas, publicado pela Editora Pontes e o Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico, o IHGGC.
Um aspecto que o diferencia de outros livros do gênero e lhe confere originalidade, contudo, reside na forma de como a autora construiu sua narrativa em torno da trajetória de vida e da escrita íntima de três mulheres da elite campineira, autoras de cadernos de receitas. O livro encontra-se, portanto, centrado nessas três personagens que servem como um fio condutor ao leitor, e o dirige pelas ruas, vendas e cozinhas da cidade, em seu percurso de reconhecimento das práticas alimentares. Por outro lado, as receitas de Custódia, Ana Henriqueta e Bárbara, permitem à autora usufruir de suas habilidades de historiadora da cultura e realizar análises de micro e de macro história, passando de uma escala a outra com sensibilidade e competência.
O resultado é um trabalho denso de descrição e cotejamento das receitas disponíveis nos cadernos manuscritos estudados, mas também de análise e problematização desse tipo de escrita feminina na esfera privada. Neste sentido, Eliane se vale de sua experiência e conhecimentos sobre a sociedade de Campinas desenvolvidos, inclusive, em outros livros de sua autoria, para não apenas contextualizar muito bem a produção de tais escritos, como discutir seus conteúdos. Ora são os produtos disponíveis nos mercados, ora as técnicas de produção dos alimentos que vem à tona; os comentários se voltam também às incorporações de receitas disponíveis nos livros de culinária que circulavam entre as mulheres da época, quer em Campinas, quer em outras localidades do país.
Dessa forma, mais do que personagens centrais do livro, as autoras dos receituários analisados são agentes históricos exemplares, que constituem e representam a sociedade, seus gostos, paladares, formas de sociabilidade e práticas de comensalidade.
Na condição de orientadora da tese de doutorado, a qual deu origem a este livro, pude acompanhar o desenvolvimento da pesquisa e o entusiasmo das descobertas arquivísticas. Além, é claro, da cumplicidade que me uniu à autora na empatia do tema e das fontes. Ao longo desses anos de convivência com Eliane e com os demais alunos do nosso grupo de pesquisa em História da Alimentação, na Unicamp, me senti estimulada a refletir sobre a construção de um novo campo de estudos históricos no Brasil e a constatar que os historiadores brasileiros, conectados a seus pares internacionais, abraçaram com empenho e muita criatividade o tema da alimentação e seus múltiplos segmentos.
No livro de Eliane Morelli Abrahão, o leitor poderá observar o desdobramento de vários dos eixos temáticos, próprios da História da Alimentação, dado que confirma a boa escolha do título atribuído à obra, pois observa-se o dinamismo deste campo de estudos que compreende desde a produção e o comércio dos géneros alimentícios, às suas formas de confecção (técnicas, apresentação dos pratos, artefatos e espaços de consumo, etiquetas, e, certamente, formas de transmissão de tais saberes), incluindo o caráter simbólico dos alimentos e as identidades dos consumidores. Aspectos relacionados a essas temáticas se apresentam no livro, no qual é possível perceber a riqueza desse tipo de abordagem, ou seja, analisar a sociedade campineira na perspectiva da alimentação. Este me parece o ponto alto e inovador do livro.
Rico no diálogo entre fontes históricas, História da alimentação: cadernos de receitas e práticas alimentares, Campinas (1860 – 1940) propicia a reflexão sobre a diversidade de tipos de registros históricos, bem como um olhar singular sobre o trabalho e o ofício daqueles que se dedicam à História. Escrito em um estilo claro e elegante, mas com o rigor de investigação que os trabalhos acadêmicos impõem, este livro é também uma excelente contribuição para a História de Campinas. Com sua experiência de pesquisadora e de professora de História, a autora se movimenta com familiaridade no universo imbricado das fontes históricas, propõe métodos e formas de abordagem para a História da alimentação e revela ao leitor um mundo que se desintegrou ainda no século passado. Mas, como disse certa vez Robert Darnton, reconstruir mundos é uma das tarefas essenciais do historiador…
Referência bibliográfica:
ABRAHÃO, Eliane Morelli. (2018). História da alimentação: cadernos de receitas e práticas alimentares, Campinas: 1860 – 1940. Campinas: Pontes Editores e IHGGC. Volume 2 da Coleção Memória de Campinas. 330p.
Para adquirir: http://www.ponteseditores.com.br / Livraria Pontes: Rua Dr. Quirino, 1223 – Centro, Campinas – SP, 13015-081 / fone: 19-3236-0943.