The forensics on passion and hate cases.
Fernando Antonio Abrahão – historiador, pesquisador. Titular da Cadeira 11 e presidente do IHGG Campinas.
Os chamados crimes passionais são resultados extremos da maneira como a sociedade elabora normas de conduta para as pessoas e como elas são aplicadas no interior dessa mesma sociedade. Em princípio, trata-se de conflitos gerados na convivência íntima, especialmente quando os papéis atribuídos pelo casamento e o companheirismo marital entram em descompasso.
Os conflitos comuns decorrem de suspeitas ou de atos flagrantes de adultérios, mas são prosaicos, especialmente no período do nosso estudo, aqueles cujas motivações se basearam na argumentação de que a mulher buscava alguma independência frente ao marido ou companheiro. Embora os argumentos pareçam diversos entre si, eles reportam para a submissão culturalmente imposta ao gênero feminino. Para compreender essa questão, se deve observar, de um lado, até que ponto a conduta da vítima foi suficiente para a atenuação do caráter altamente punitivo que carrega o homicídio, como demonstram, historicamente, os altos índices de absolvições ou de penas consideradas risíveis ou brandas demais, especialmente em tempos mais difíceis. De outro lado, deve-se observar como as narrativas dos agressores criam cenários de arremedos e simulacros que se tornam “verdade” na constituição do processo penal e na formalização das sentenças.
Embora haja inúmeras referências ao crime passional, nota-se que ele não está definido no Código Penal brasileiro. Do ponto de vista sociológico, a saudosa professora Mariza Corrêa (1981) discute o conceito de legítima defesa da honra, combinando habilmente estas noções (de legítima defesa e de agressão à honra) no campo teórico do direito, e jogando com as ambiguidades da definição do papel da família e da mulher na sociedade. Trata-se de uma obra que deve ser lida por aqueles que desejam se aventurar por esses estudos.
Nota-se que o conceito não pode existir sem a concepção social do papel da mulher na instituição familiar. Em síntese, os crimes passionais são produtos de atitudes forjadas no seio de uma sociedade que precisa distribuir aos seus sujeitos os papéis que lhes são caros. Hoje, com a extrema rapidez de adaptação dos papéis de homens e mulheres na sociedade globalizada, e com as novas leis de repressão ao feminicídio, muita coisa tem mudado, tornando as decisões da justiça cada vez mais severas.
De qualquer forma, os processos penais representam a maneira pela qual a rigidez de conduta atribuída aos sexos é internalizada, negada ou, ainda, adaptada por estes mesmos sujeitos que, mais do que simplesmente se submeterem às construções sociais, jogam com elas entrando em sua lógica argumentativa, construindo retóricas mais interessantes para uma defesa perante a um Júri popular.
Ainda que este campo de estudo seja fértil aos historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos e tantos outros pesquisadores dedicados ao bem da sociedade, pretendo tratar neste artigo de uma atividade que utiliza várias técnicas científicas e que tem ganho proeminência na área judicial.
A perícia criminal
De parceira essencial na elucidação de crimes para mote de roteiros de seriados de televisão, a perícia criminal ou forense tornou-se fundamental para a justiça. Desenvolveu-se nos últimos anos, gerando especialidades indispensáveis de análises de crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Publicações, laboratórios de alta tecnologia e profissionais especializados demonstram que a perícia forense vive um período de grande desenvolvimento.
Com a complexidade atual dos delitos, as ciências oferecem bases cada vez mais precisas para a elucidação. Padrões psicológicos são reunidos para se estabelecer perfis de sequestradores ou de assassinos em série, por exemplo, assim como as modernas técnicas bioquímicas, como a do DNA, são utilizadas para identificar um criminoso, algo que em tempos anteriores à década de 1980 era quase impossível fazê-lo por esse meio. A perícia criminal ou forense é, pois, formada por um conjunto de técnicas científicas utilizadas para a obtenção de provas concretas de autoria de um ato criminoso. Cabe a esses peritos esclarecerem questões essenciais, fornecendo bases críveis para a formulação dos argumentos jurídicos e a elaboração de sentenças penais.
É comum aos mais antigos processos criminais a presença de perícias. Por exemplo, nos casos de crimes contra a vida há sempre um relatório médico sobre a causa da morte, assim como um relatório de especificidades também acompanha um caso de crime contra a propriedade, especialmente de arrombamento e roubo. Porém, ao longo do tempo, há processos contendo material diverso levado às outras perícias, que conformam uma fonte documental interessante para as origens e da difusão das técnicas fotográficas, das avaliações gráficas e bioquímicas, por exemplo. Os casos apresentados a seguir tratam de exemplos utilizados na solução de dois homicídios de motivação passional, em Campinas.
O caso da fazenda Palmeiras
Além dos ferimentos nas mãos, a vítima apresenta no tórax quatro soluções de continuidade, sendo o 1º na linha axilar direita, um pouco abaixo axila, medindo dois cm; o 2º no quinto espaço intercostal, do mesmo lado direito, entre a linha axilar e a linha mamária medindo três cm. Os outros estão do lado esquerdo do tórax; um na região precordial, à esquerda do sterno, com quatro cm; o outro na linha axilar com dois cm. Abertura do cadáver: ferimentos nos dois pulmões, no coração e no fígado. A causa da morte foi o ferimento no coração.
Os médicos assim registraram os ferimentos encontrados no corpo de Marieta Dolo, italiana, casada, 24 anos, após seu assassinato na madrugada do dia 25 de setembro de 1903. O crime ocorreu na casa onde ela morava com seu marido, Valentino, na colônia da fazenda Palmeiras, localizada a duas léguas da cidade de Campinas, no distrito de Santa Cruz. O indiciado pelo crime foi Henrique Angelin, 39 anos, italiano, casado, amigo do casal e colono do mesmo estabelecimento rural.
As testemunhas contaram que Henrique fazia assíduas visitas à casa de Marieta e Valentino, mesmo na ausência deste, que tais visitas podiam ser encontros amorosos ilícitos, que o motivo que originou ao assassinato de Marieta por seu suposto amante, Henrique, foi Valentino ter decidido retornar à fazenda Santo André, onde Henrique não era bem-vindo, o que resultaria na impossibilidade de novos encontros.
Ao observar também as declarações díspares de Valentino e de Henrique, o delegado Paulo Machado Florence decidiu avançar suas investigações por uma vertente pericial até então inédita nos processos criminais do Fórum de Campinas, e que consistiu no envio de vestígios do crime para análises do Instituto Agronômico do Estado de São Paulo e para o então chamado Laboratorio de Analyses Chimicas do Estado de São Paulo.
1º um amarrado de palha de milho e galho de café com sangue da vítima, encontrado no ponto 1 do croquis; 2º Uma camisa de algodão que Henrique vestia na manhã do crime; 3º Um cepo de madeira apreendido na cozinha da casa de Henrique; 4º Um podão encontrado na casa; 5º Um facão encontrado na casa; 6º Um pano encontrado na cozinha da casa; 7º Um envelope contendo amostra de sangue raspado de sobre o chão (terra) da cozinha da casa de Henrique, ponto 8 do croquis; 8º Um envelope contendo sangue raspado do mourão de madeira do fundo da casa, ponto 7 do croquis; 9º Um envelope contendo sangue raspado do batente de madeira da casa da vítima, ponto 2 do croquis; 10º Um envelope contendo sangue encontrado no chão da casa da vítima Marieta Dolo, no ponto 4 do croquis.
Croquis da colônia e do cafezal da Fazenda Palmeiras. Fonte: Processos criminais TJSP – Campinas.
Nota-se, nos relatórios periciais do processo o extremo cuidado no manuseio das amostras e a minuciosa descrição dos procedimentos técnicos. No final, registre-se o uso da fotografia para ilustrar e certificar tais procedimentos e seus resultados. Todavia, os resultados não permitiram a definição do culpado. Apesar das provas testemunhais contra Henrique, sua defesa contou justamente com a inconclusiva base técnica pericial e com o depoimento de sua esposa, Maria Angelin, que o inocentava. Henrique foi absolvido pelo Tribunal do Júri de Campinas, em 1904.
O caso da Gata Borralheira
Morta em seu próprio leito. Assim foi encontrada Durvalina Trevisan, 19 anos, casada, brasileira, grávida, no dia 7 de janeiro de 1935, por indicação de seu marido, assassino confesso, José Pleasant Fenley, 38 anos, brasileiro, comerciante. O fato ocorreu na residência do casal, no distrito de Rebouças, atual município de Sumaré. Segundo Nicolau Jorge, vizinho do casal: causou grande surpresa esse assassinato, porquanto nunca notara qualquer divergência entre o casal. Contudo, a análise mais atenta demonstrou algo diferente.
Conta-nos José ter conhecido Durvalina na casa de sua irmã, onde ela trabalhava como cozinheira. Viúvo, rico negociante e com cinco filhos pequenos para criar, enamorou-se da empregada. Ocorre que, na noite de núpcias ele descobriu que a esposa não era mais virgem. Com o passar do tempo, a esposa passou a evitá-lo.
Na noite do crime, segundo nos narra o assassino, Durvalina se recusou a ter com ele relações sexuais. Discutiram. Ela saiu do quarto e dirigiu-se ao escritório, onde ele foi saber que ela tinha um bilhete nas mãos. José tomou o bilhete e constatou que a esposa o enganava havia dois anos. Enfurecido, mas ainda apaixonado por ela, disse-lhe que deveria deixar este assunto para trás, ajustar sua conduta e continuar seu casamento de forma digna, que tomada de fúria e desprezo por ele, Durvalina disse que não o amava e que se casara apenas por seu dinheiro. José conta que a alertou para a importância do casamento e do nascimento do filho que em breve teriam, mas a mulher revidou-lhe dizendo: e tens certeza de que este filho é teu? Ao ouvir essas palavras, diz ele, abdicou completamente da razão, pegou a arma em seu armário e desfechou-lhe os tiros que a mataram.
No Relatório, o delegado Francisco de Figueiredo Lyra duvidou da versão de José. Nota-se que estava em jogo não apenas a ação propriamente dita, mas quão legítima ela teria sido. Assim, a análise do bilhete se fez imprescindível, afinal ele consistia na prova do possível adultério da esposa. O delegado remeteu o bilhete ao Laboratório de Polícia Técnica do Estado de São Paulo, em 21 de janeiro de 1935.
Cópias das assinaturas periciadas por perito oficial do Fórum de Campinas.
O laudo oficial foi negativo para a defesa de José. Em desvantagem, o advogado Romeu Tórtima solicitou perícias a dois especialistas particulares, bem como a inclusão, nos autos, de cartas que atestavam o bom caráter e a boa conduta profissional do acusado.
A 10 de maio de 1935, os peritos Moyses Marx e de Isaac de Mesquita Júnior, de São Paulo, concluem, após longa justificativa: abstemo-nos de um pronunciamento mais positivo, muito embora propendamos para a sua identificação como proveniente de um mesmo e único punho. Já a perícia de Carlos de Arroxellas Galvão e Epitácio J. da Silva, do Rio de Janeiro, de 17 de fevereiro de 1936, conclui: que o bilhete assinado ‘Durvalina’ apresenta todas as possibilidades de ter sido escrito do próprio punho de Durvalina.
Ainda que não fossem tão categóricos quanto ao laudo oficial, os laudos particulares e as cartas de bons antecedentes foram suficientes para o Júri absolver José no julgamento de 2 de junho de 1936. O promotor público apelou da sentença, mas em 17 de setembro de 1936, a 1ª Câmara da Corte de Apelação do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a absolvição.
Considerações finais
É certo que os exames periciais buscam desvendar o real autor de um crime. Também está claro que as solicitações da Justiça por perícias científicas são mais frequentes na medida em que as técnicas e as tecnologias vão sendo aperfeiçoadas. Ademais dos resultados desses exames pioneiros, registre-se a preocupação dos técnicos com as descrições minuciosas dos procedimentos, bem como com as referências bibliográficas.
No caso de Marieta, o fato de os exames bioquímicos não confirmarem a autoria de Henrique foi tão importante para a absolvição do réu quanto foi o depoimento de sua esposa, que refutou qualquer suposta traição conjugal do marido. O caso de Durvalina é emblemático, típico crime passional com atenuantes para a absolvição do assassino, ou sejam, a contradição dos três laudos, a diferença social dos casados, o poder econômico do réu e os seus bons antecedentes. Felizmente, o desenvolvimento das técnicas periciais trazem atualmente melhores resultados, mas a sociedade também deve transformar seus costumes, afim de que os números de registros de crimes de ódio contra as mulheres decresçam até o nada.
Referências bibliográficas e documentais:
ABRAHÃO, Fernando Antonio. Crimes e criminosos da Campinas cafeeira: 1880-1930. Campinas: Ed. Pontes, 2018.
ARANHA, Adalberto José Q. de Camargo. Da prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 137.
CORREA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 25-26.
HOMICÍDIO: CMU, TJC, CJ, 114. Ano 1903. Vítima: Marieta Dolo. Réu: Henrique Angelim. Centro de Memória – Unicamp, CMU.
HOMICÍDIO: CMU, TJC, CJ, 2656. Ano 1935. Vítima: Durvalina Trevisan Fenley. Réu: José Pleasant Fenley. Centro de Memória – Unicamp, CMU.
Artigo didático e oportuno neste período de inúmeros crimes de ordem passional. Esclareço que o Instituto Agronômico do Estado de São Paulo é o nome oficial do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Na época possuía os laboratórios de análises químicas dos mais completos do País. Esta instituição científica realizava, já na década de 1950, análises da água da chuva para determinação de amônia, resíduo proveniente da emissão de gases das emergentes indústrias em Campinas. Em pequenas quantidades, a amônia liberando o nitrogênio para o solo após as chuvas, se constituía em fertilizante para os cafezais e pastagens que dominavam a região.
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Agradeço os votos e os esclarecimentos do nosso tão importante IAC, uma das glórias de Campinas.
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