Imaginário urbano: a iconografia campineira do final do século XIX

The urban imaginary: Campinas (SP, Brazil) iconography at the end of the 19th century.

Sonia Aparecida Fardin – historiadora, pesquisadora e curadora de acervos visuais em Campinas.

Não existe, penso, projeto de pesquisa que não seja, de uma maneira ou de outra, reflexo de situações e de condicionamentos existenciais que o pesquisador viveu e continua vivendo, Vivências que, na maioria dos casos, interpelaram-no em momentos dados, em níveis determinados de sua existência sem que lhe fosse possível – geralmente – entendê-las mais adequadamente. Vivências todavia que, ao mesmo tempo, se acumularam e se sobrepuseram nele como camadas sedimentares, constituindo lentamente um terreno mais fértil. Mesmo que não entenda sempre as leis, as propriedades e todos os mecanismos, ele sabe que o terreno se tomou, na sua riqueza múltipla, mais firme sob seus pés. Mais humilde e menos falador, ele procura então não mais questionar as coisas deste mundo a partir de suas ideias e sim deixar as coisas do mundo trabalharem suas ideias. (Etienne Samain, professor da Unicamp).

Campinas, última década do século XIX. Rua Dr. Quirino, esquina com a Bernardino de Campos, próximo à Praça Bento Quirino; um dia de sol, possivelmente logo após o meio dia. Um rosto anônimo invade o espaço do enquadramento delimitado para receber o registro fotográfico. Seu olhar, talvez involuntariamente, coloca-se ao alcance da máquina e presencia o ato de produção de uma imagem da cidade.

Um outro rosto, um outro olhar sem nome identificado, manipula o equipamento fotográfico ele que acredita ser capaz de capturar e eternizar o real.

Estes dois olhares anônimos estão registrados no mesmo ato fotográfico; um pela presença inusitada, outro pela ausência denunciada. Ambos levaram o meu olhar a penetrar nas imagens que registram a elaboração da visão da Campinas do final do século XIX e motivaram a minha dissertação de mestrado, apresentada ao IFCH – UNICAMP em 2001.

Meu objetivo inicial foi conhecer as imagens e estabelecer com elas uma relação de diálogo para problematizar o entendimento das fotografias como “imagens / objeto”, ou seja, embora carregadas de força indiciária, o registro fotográfico é sempre uma elaboração.

Descrever a trajetória, o percurso realizado, desde a motivação iniciai até a definição do projeto de pesquisa que originou a dissertação é importante não apenas por exigência da natureza de um texto acadêmico. É uma necessidade impressa pelo próprio arcabouço teórico, entendendo a fotografia como documento iconográfico e, também, como um artefato, um objeto construído no terreno das relações simbólicas e comerciais da sociedade capitalista.

Os objetos / fotografias com os quais me deparei estão há décadas incorporados a uma instituição museológica. O Museu da Imagem e do Som de Campinas (MIS), é uma instituição pública municipal, criada em 1975, com o objetivo de preservar acervos audiovisuais, e onde trabalhei por mais de vinte anos. Entre 1999 e 2001, para a elaboração da dissertação, me dediquei a estudar duas coleções desse acervo: a Coleção do próprio Museu, composta de doações diversas de imagens realizadas por profissionais a serviço da Prefeitura de Campinas, com 3.670 imagens. Foram produzidas por órgãos públicos municipais e contemplam diversos aspectos da vida urbana campineira, destacando-se as atividades culturais, comerciais e as obras públicas, além de um grande número de imagens de ruas e logradouros. A outra é a Coleção Biblioteca Municipal Manuel Zink. composta de 686 imagens reunidas e preservadas pela entidade, incorporada ao acervo do MIS em 1993, por meio de um acordo entre as coordenações do Museu e da Biblioteca.

Após a defesa da dissertação, as imagens que analisei foram deslocadas dessas coleções e agrupadas em uma Coleção denominada Fábrica de Fumos Liberdade, o trabalho de pesquisa durante o mestrado foi fundamental para essa decisão e o avanço na compreensão do acervo do MIS.

Ao primeiro olhar, essas imagens, entre as quais está a imagem da Rua Dr. Quirino acima apresentada, formavam um conjunto de informações visuais com características físicas e estéticas semelhantes, como: formato, material utilizado e perspectiva estética. Estas semelhanças suscitaram indagações sobre uma possível origem comum, devido também, ao fato de apresentarem nos versos marcas de cola e resíduos de papel de mesma textura e coloração, o que indicava o descolamento de um mesmo álbum.

Assim, os primeiros questionamentos surgiram da observação das imagens enquanto artefatos guardados por várias décadas, de forma assistemática e com precários registros sobre quem as produziu, para quem foram produzidas e mesmo quem as preservou e as doou ao MIS. Portanto, despertou a minha atenção o vazio de informações que as rodeavam, em contraposição à eloquência de seu Studium, tal como colocado por Roland Barthes,

um afeto (…) a aplicação a uma coisa (…), uma espécie de investimento geral (…) Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las… pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato feito entre os criadores e os consumidores. (Barthes, 1984, p.47).

Percebi estar diante de um conjunto de informações visuais que poderiam ter sido produzidas com a função de dar visualidade, com o propósito de registrar, comunicar e monumentalizar aspectos do mundo visível; no entanto, percebi também que toda uma enorme gama de informações não visíveis estava também ali representada.

Mais do que submeter perguntas a este conjunto de imagens, eram elas que geravam questionamentos. A eloquência de informações contidas em cada uma e de forma ainda mais gritante quando reunidas em um conjunto, definido pela técnica que as originou, propiciaram questionar a possibilidade de uma origem comum. Essa eloquência tornava mais inquietante a ausência de registros sobre os sujeitos protagonistas das relações de produção, circulação e consumo nelas materializadas.

Seguindo essa inquietação, a primeira formulação da pesquisa sobre a iconografia e o imaginário urbano de final de século XIX em Campinas, foi estudar a atuação dos fotógrafos na cidade no final do Século XIX e a cadeia de produção e consumo de imagens fotográficas no período.

Como ponto de partida, utilizei os Almanaques para um levantamento dos fotógrafos que atuaram na cidade. Com a leitura dos Almanaques de 1871 a 1900 – publicações muito populares daquela época -, confirmei a presença organizada comercialmente e atuante de fotógrafos oferecendo seus serviços aos campineiros, já desde 1862.

No decorrer da pesquisa, recebi do saudoso professor José Roberto do Amaral Lapa, orientador da pesquisa em sua fase inicial, a sugestão de examinar reproduções de 20 desenhos, que ele recebera do emérito colecionador João Falchi Trinca para o Centro de Memória – Unicamp (CMU). Os desenhos são produções digitalizadas de originais da Fábrica de Fumos Liberdade, para servirem de brindes que acompanhavam os maços de cigarros. A data até então estimada de confecção dos desenhos, até aquele momento, era a primeira década do século XX.

Ao examiná-los, verifiquei que as fotografias selecionadas serviram como matrizes para realização de 15 dos 20 desenhos. 15 fotografias e desenhos representam os mesmos edifícios e espaços públicos, com as mesmas perspectivas, ângulos e enquadramentos. Fui então em busca das outras imagens fotográficas e localizei, também na coleção MIS, duas imagens não originais, mas reproduções fotográficas, realizadas entre 1970 e 1980, de imagens que também correspondem a dois dos desenhos oferecidos pelo professor Amaral Lapa. Infelizmente, os originais dessas reproduções não foram localizados. Localizei no acervo do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), na Coleção da também saudosa Maria Luiza Pinto de Moura, as reproduções de outros cinco desenhos. Totalizando 25 desenhos, dos quais haviam 17 fotografias correspondentes.

As 15 fotografias originais, as duas reproduções e os 25 desenhos comprovaram-se ser resíduos visuais de um projeto de divulgação institucional no qual a cidade de Campinas foi o tema, mas não havia registro de autoria, nem das fotografias, nem dos desenhos.

O conjunto desses documentos marcados pela relação visibilidade / representação evidencia, ademais da finalidade pré-determinada: o discurso visual, geral e simbólico, de algumas características sociais, culturais e econômicas sobre a cidade de Campinas, na virada do século XIX, também a compreensão da cadeia local de produção e de consumo de imagens nesse período.

Para concluir, apresento algumas informações sobre os fotógrafos atuantes na cidade, entre 1862 e 1900.

Henrique Rosen – Alemão, chegou Campinas em 1862, início da fase industrial da fotografia. Fundou a Photographia Campinense, situada na rua Direita, 28. Atuou na cidade quase que com exclusividade no local até 1883.

Pedro Ricardino – Brasileiro, era conhecido na cidade como marceneiro. Teve efêmera atividade fotográfica ente 1871 e 1872. Foi proprietário da Nova Photographia, situada na Rua de Baixo, 65.

Julius Nickelsen – Sueco, natural de Hamburgo, onde durante cinco anos trabalhou em uma das primeiras oficinas fotográficas daquela cidade. Veio em 1878 para o Rio de Janeiro, para trabalhar na Casa Henshel & Benque, onde atuou até vir para Campinas e associar-se a Rosen. Depois comprou a Photographia Campinense, que se denominou Nickelsen e Ferreira e depois Nickelsen C., situada na rua Barao de Jaguara, 48. Nickelsen casou-se com Luise Hempel Nickelsen, viveu em Campinas até 1919, quando aposentou-se e transferiu-se para São Paulo, onde faleceu em 1929.

Bernardino Ferreira – Português, natural do Porto, veio para o Rio de Janeiro em 1862, atuando no comércio até 1866, Entrou como aprendiz na oficina de Christiano Júnior, em 1870 foi trabalhar no estabelecimento Henschel & Benque. Conheceu Nickelsen na corte e veio a convite deste para Campinas, a fim de formar sociedade.

Jacques Vigier – Prussiano, natural da província do Rheno, veio para o Brasil em 1861, com 22 anos. Inicialmente atuou no Maranhão. Foi premiado na primeira exposição provincial de S. Luiz do Maranhão com uma medalha de prata, primeiro prêmio conferido aos produtos fotográficos. Atuou também na Corte. Em 1879 veio para Campinas, associando-se ao estabelecimento de Henrique Rosen. Manteve-se à frente da Photographia Campinense durante a viagem de Rosen à Europa, em 1880. Com a volta do titular retirou-se do estabelecimento e abriu seu próprio, a Photographia Vigier, na rua Direita, 35. Instalou-se então grande competição entre ele e Rosen. Em 1888 voltou para Europa e deixou seu estabelecimento para Sophian Niebler.

Sophian Niebler – Alemão, chegou em Campinas provavelmente no final da década de 1870. Em 1880 anunciou-se como proprietário da Photographia Alemã, na rua do Góes, 44. Niebler não obteve grande sucesso no mercado fotográfico na década de 1880, porém, ao contrário de Ricardino, manteve-se atuando também como pintor, retratista a óleo e professor de pintura e desenho. Somente no final dos anos de 1880 ele atingiu um relativo progresso, quando comprou o estabelecimento de Jacques Vigier, na Rua Barão de Jaguara, 35.

Sainatti & Filho – Estabelecimento fotográfico, em 1900, estava instalado na rua 13 de Maio, 108.

Referência bibliográfica:

FARDIN, Sonia Aparecida. Revelações do imaginário urbano: iconografia campineira do final do século XIX. Campinas: IFCH – Unicamp, [dissertação de mestrado], 2001.

As teses e dissertações estão disponíveis no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp: http://repositorio.unicamp.br  

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