A comunidade judaica em Campinas: franceses, russos e poloneses (1870-1930)

The jewish community in Campinas (SP, Brazil): french, russian and polish (1870-1930).

Ariel Elias do Nascimento – historiador, professor na Universidade Federal de Tocantins, TO.

A memória é fragmentada. O sentido da identidade depende em grande parte da organização desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados. O passado é assim o descontinuo. A consistência e o significado desse passado e da memória articulam-se à elaboração de projetos que dão sentido e estabelecem continuidade entre esses diferentes momentos e situações. Por outro lado, o projeto existe no mundo da intersubjetividade. Por mais velado ou secreto que possa ser, ele é expresso em conceitos, palavras, categorias que pressupõem a existência do Outro. Mas, sobretudo, o projeto é um instrumento básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos. Assim ele existe, fundamentalmente, como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo. (Gilberto Velho, 1999).

A noção de projeto, definida acima por Gilberto Velho pode aplicada para o caso da coletividade judaica campineira, a qual, segundo nossas observações, acumularam uma experiência que proporcionou um diálogo importante com a cidade de Campinas. Enquanto este diálogo baseava-se nas amizades que se solidificavam pelo comercio, em relação ao seu próprio grupo, estes viviam em uma comunidade coesa, ligada às tradições familiares, religiosas e alimentares.

Esta experiência vivida e acumulada pelos judeus em Campinas, juntamente com a memória trazida por eles, constitui processo de formação da identidade judaica local baseado no convívio com os moradores da cidade, sejam eles nacionais ou estrangeiros. Convivendo em um ambiente múltiplo de línguas e culturas, a coletividade judaica estabelece seus limites na mesma área na qual se localiza seu espaço privado, ampliando as formas de relacionamento entre o grupo e a sociedade que a cerca; assim, nesta área em ente as culturas ali presentes, a manutenção e prevenção da língua e da religião são conseguidas e mantidas através da criação de um espaço próprio, longe da multiplicidade social; este lugar que concretiza o sonho de uma comunidade unida, é também responsável pela formação de judeus mais liberais e, consequentemente, melhor aceitos na sociedade adotiva.

Contudo, para compor toda esta luta de preservação de cultura, foi necessário resgatar os primórdios da imigração para a cidade, de forma a percebermos as diferenças entre os judeus das diferentes origens e culturas que nela se instalaram: franceses, russos e poloneses.

Basicamente, dois são os motivos que proporcionaram a permanência dos judeus em Campinas. Para a coletividade francesa o que importava era ampliar seus negócios no interior de São Paulo através de um entreposto comercial próspero e que apresentasse vantagens comerciais. Para russos e poloneses, a permanência é garantida pela existência da estrada de ferro que possibilita interligação com outras cidades, garantindo a ampliação do comércio realizado pelos então caixeiros viajantes.

A construção de uma identidade própria é o objetivo central dos judeus em Campinas. Uma identidade que ao mesmo tempo significasse a realização de seus sonhos, uma vitória contra a assimilação e que preservasse os aspectos mais importantes e fundamentais de sua cultura; o projeto pensado e construído resultou na formação do Centro Israelita “Beth Jacob”, consolidando o conceito de coletividade.

A cidade compreende o espaço geográfico que absorve pelos seus poros, a diversidade cultural existente no período, destinando-se um papel de mediadora no que tange à movimentação pessoal e à assimilação cultural.

As imigrações para a cidade de Campinas mudam todo o cenário existente na urbe. Os imigrantes que enfrentam o seu cotidiano trazem novas cores, novos ares, novas línguas, roupas, costumes. Aqueles que aqui procuraram refugio dos problemas enfrentados na Europa, instigam a população citadina, na vivência diária, a adaptar-se a novos padrões trazidos de outras terras.

A imigração judaica em Campinas possui diferenciadas fases, com suas características próprias, as quais foram compondo, cada qual em sua época, ritmos outros para os moradores da cidade; dialogando com os da terra, os judeus que aqui decidiram fixar morada, consolidaram laços de amizade, de trabalho, de comercio, de forma a ampliar os contatos e a assegurar vida harmoniosa na cidade que os adotou.

A cidade, como espaço social proporciona um constante diálogo entre as diferenciadas culturas que nela vivem, estabelecendo direta e indiretamente uma troca cultural que colabora para com uma vivência singular no ambiente urbano. No caso em questão, a presença judaica, que é percebida através das casas comerciais existentes desde 1850, juntamente com outros imigrantes das mais diversas origens, configuram uma mistura das diferentes sociedades ali instaladas, perfazendo um universo multifacetado e polifônico.

Neste sentido, o primeiro capítulo de minha dissertação apresentada ao IFHC da Unicamp, em 2002, revela o percurso trilhado pelos judeus, caminho com destino muito incerto, no qual a única certeza era o desejo de sair do olho do furacão europeu. Aos que sobrevivem da viagem, a custa de recursos próprios ou subsidiados, a memória é a bagagem que lhes resta como possibilidade de retomar à vivência de outrora. Uma bagagem leve, mas carregada de simbolismos, sons, cheiros, aromas, gostos, saudades … são estes os ícones que irão impulsionar a coletividade a se unir, ora com maior intensidade, ora com menor para formar, através de projeto de vida unificado, una comunidade coesa.

Contudo, de nada serve toda esta experiência vivida e sentida se não for aproveitada em algum lugar. Assim, a cidade, como espaço social, cultural, religioso, econômico, assegura o constante diálogo da coletividade no interior de seus limites; é disto que tratamos no segundo capítulo: da cidade como mediadora e palco para a atuação desta classe de atores que é a coletividade judaica, percebida através de suas casas comercias e residenciais na área urbana.

Por fim, resta-nos tratar da construção da tradição judaica campineira, a qual está influenciada e quase que determinada pelo processo de formação do Cento Israelita e sua política para com seus correligionários. A questão da assimilação no seio da sociedade que adota estes imigrantes judeus, sejam eles franceses, russos ou poloneses, é fator importante na desta tradição.

Este caminho conduz ao questionamento da formação de uma identidade sobre a qual se impõe uma pergunta: depois de longos anos de residência na área urbana, a cultura judaica foi ou não absorvida pela cidade adotiva?

Assim, o ponto central versa sobre a presença judaica na cidade e os fatores que consolidaram sua permanência e o estudo da questão da assimilação como ponto de encontro de diferentes identidades em uma cidade que também busca estabelecer sua própria face.

A assimilação pode ser analisada em etapas que correspondem às diversas gerações das famílias que se estabeleceram na cidade. Quanto à primeira geração, ou os imigrantes propriamente ditos que entram e estabelecem residência na cidade, estes possuem objetivo claro, qual seja o de preservar ao máximo a cultura, a língua, as suas tradições. Toda esta memória é mantida e assegurada, mesmo em face do contato estabelecido com a sociedade campineira, vez que este se vinculava muito mais aos aspectos comerciais, embora gerasse amizades que garantiam o surgimento de vínculos de permanência na cidade. Isto sem levar em consideração a chegada de outras famílias, o que sempre trazia um motivo maior para permanecer em sua judaidade.

Por sua vez, a segunda geração, ou os filhos dos imigrantes, já está por demais ligada à sociedade local, dependendo de suas instituições, como escolas, clubes, teatros etc.

A vida judaica em Campinas, desde a chegada dos primeiros imigrantes, nos idos de 1850, confere particular dialogo de interação com a cidade e seus moradores, registrando-se constante convívio na área central da cidade, estabelecendo-se, porém, clara separação entre o mundo que transita as margens da porta de entrada dos ambientes e das moradas judaicas.

Este diálogo permitiu, contudo, que esta coletividade assimilasse parcialmente alguns aspectos da cultura local, tendo em vista as necessidades de dar passos para fora de sua morada: era preciso aprender a língua local e manter amizades com pessoas de outras raças e credos.

Em tempos áureos, a coletividade manteve uma escola bem estruturada para a juventude Israelita, composta pela segunda geração de imigrantes; suas aulas e seus professores estavam incumbidos de manter a cultura, uma judaidade correspondente à de seus pais que, na Europa, falavam, pensavam e viviam sua cultura dentro da própria casa, na rua, na escola, pois que a família possuía liberdade suficiente de se mostrar judia dentro de seu próprio schteti.

Neste sentido, e mesmo com estes problemas, eles transformam o sonho em realidade, pois que saem do projeto ao concreto ao organizar formas definitivas de espaços próprios, como a Escola Iidiche, bem como sua própria casa e, por vezes, seu comércio, no intuito de manter as tradições longe do alcance dos processos de assimilação, não expondo ao público em geral às múltiplas faces da cultura israelita, restringindo sua ação e seus gestos aos espaços privados de sua coletividade. Contudo, não se pode afirmar que apenas a formação da Escola e do Centro Israelita garantissem imunidade contra a assimilação. O imigrante judeu teve de se ajustar aos status encontrados na cidade, modificando alguns dos aspectos de sua arraigada cultura, pois que houve a necessidade em adaptar-se ao mundo em que agora vive.

O tempo também representou algum desgaste para a coletividade que perdeu membros importantes para o seu funcionamento. A procura por outros centros urbanos que possibilitassem a melhoria dos padrões de vida, foi motivo de mudança para alguns, principalmente comerciantes. Assim aconteceu com o Shoret da cidade, que além desta função também realizava o Bar Mitzvá, MeierRoisenblat, que se transferiu para a cidade de São Paulo. A própria Escola Iidiche também não conseguia manter seus professores por períodos superiores a dois anos; melhores oportunidades terminavam por levá-los a outros centros. Esta rotatividade dificultava visivelmente o aprendizado do iidiche, da cultura e da história judaica pelas crianças.

A partir de década de 1940, até os dias de hoje, a coletividade campineira reúne-se não mais no Centro Israelita, mas na Sociedade Israelita-Brasileira “Beth Jacob”; o mesmo prédio, mas agora acrescido com uma sinagoga. Entretanto, os antigos e arraigados vínculos religiosos no seio da coletividade, como a Escola, desapareceram, forçando com que os costumes e as tradições permanecessem restritos somente às festas e celebrações religiosas, como o Shabat, o Rosh Hashaná, o Iom Kipur, o Chanucá, o Simchat Torá e o Pessach. A interação cada vez maior com o novo ambiente, sempre incrementada a cada nova geração, culminaram na perda da identidade de origem e sua consequente substituição pela identidade adotada.

Judeus residentes em Campinas (1870 -1890)

Abraao Frainer Jacob Kacak
Achiles Bloch Jacob Kiehl
Adão Hoffman Jacob Kruth
Alberto Israel Jacob Stucki
Alberto Moretzsohn Jaques Netter
Alexander Simon Joao Jacob Boemen
Alphonse Levy Joaquim Jacob Boemen
André Jacobson José Jacob Baumer
Antonio Isaac Lazare Abraham
Antonio Luiz Moretzsohn Leon Hertz
Auguste Klein Luiz Isaach
Bernardo Keiller Misael Kolleger
Bernardo Levy Nephatalhih Henry Bloch
Biajani Abel Nestor Leyy
Charles Levy Raphael Levy
Daniel Jacob Romain Barrére
Francisco Xavier Moretzsohn Samuel Abraham
Germano Jacob Tneodrr F. Marks
Germano Klabinoks Victor Levy

Judeus residentes em Campinas (1900 -1928)

Abrahão Pasmanik José Rosemberg
Abram Steinberg Jose Schick
Abram Zaidenberg Lavid Bronspiguel
Aroldo Malens Leon Marchevsky
Aron Guz Leopoldo Cuperman
Aron Malens Lejzer Liberman
Bassia Stachman Luis Cardoja Koperstein
Bernardino Epstein Luis Orenstein
Bernardo Guz M. Colliar
Bluma Roisenblit Marcos Churguin
Boris Strachman Marcos Frug
Boruch Strachman Maria Guz
Dora Kuperman Marta Medaljon
Elias Kaplan Mauricio Kuperman
Elisa Medaljon Mauricio Malens
Estelinha Epstein Moyses Bronberg
Eva Kilburd Moyses Strachman
Fany Raskin Moyses Tulermam
Geni Ruperschnik Noemy Churguin
Gitla Kilburg Otília Churguin
Golde Kaplan Paulo Duchovne
H. Hozenzercig Rachel Kaplan
Ide Leib Kilburd S. Failoor
Isaac Meyer Steinberg S. Lukin
Isaack Raskin S. Posanski
Isidoro Faivischow S. Posnerauz
J. Faiveche (mulher) S. Vainberg
J. Goudelman (mulher) Salomão Blac
Jacob Churguin Salomão Malens
Jacob Medaljon Samuel Bromer
Jacob Voloch Samuel Rubinsk Neto
Jacques Grinberg Samuel Savizkis
Jaime Frug Samuel Strachman
Jaime Pasmanik Samuel Voloch
Jayme Medaljon Simão Goudelman
Joao Cardoja Syma Steinberg
José Koperstik Tobias Kilburd
Jose Marchevsky Wolff Kopel
Jose Roisenblit

Referência bibliográfica:

NASCIMENTO, Ariel Elias do. A comunidade judaica em Campinas: franceses, russos e poloneses (1870-1930). Campinas: IFCH – Unicamp. [dissertação de mestrado], 2002.

As teses e dissertações estão disponíveis no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp http://repositorio.unicamp.br

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