A pandemia de Gripe Espanhola de 1918

Spanish Flu: The influenza pandemic of 1918.

Duílio Battistoni Filho – professor de História, pesquisador. Titular da Cadeira 6 do IHGG Campinas.

Nestes tempos difíceis por causa da pandemia do Coronavírus é bom lembrar o que representou para a humanidade a chamada Gripe Espanhola de 1918, quando a terrível pandemia deixou o saldo de 20 milhões de mortes e 600 milhões de enfermos em todo o mundo. Na Espanha, a imprensa deu maior atenção à epidemia do que no resto do mundo, por isso teve essa denominação. O vírus teria surgido em campos de treinamento militar, nos Estados Unidos da América, e se espalhou em consequência do movimento de tropas. A doença varreu o mundo de forma avassaladora, entre agosto de 1918 e janeiro de 1919, atingindo duramente o Brasil.

Aqui, os primeiros casos remetem à chegada do navio Demerara, vindo de Lisboa, que aportou no Rio de Janeiro com pessoas doentes desde o início da viagem. Metade dos passageiros ficaria na cidade. Durante a viagem havia ocorrido dois óbitos. Dois enfermos foram direto para o Hospital do Isolamento; uma mulher que adoeceu logo após a sua chegada foi internada no Hospital da Gamboa, onde morreu poucos dias depois. Imediatamente foi constituída uma Missão Médica Brasileira encarregada analisar os casos e propor planos de socorro às futuras vítimas.

Como previsto, o número de enfermos cresceu e em poucos dias a quantidade de mortes aumentou assustadoramente. A cidade parecia um imenso hospital, médicos foram infectados e ficaram doentes, faltava comida, mortos permaneciam dias e dias insepultos por falta de covas e de quem as abrisse, farmácias fechavam por não haver mais quem manipulasse remédios. As orações ao padroeiro e aos demais santos e santas foram redobradas e, quando o número de enfermos começou a diminuir, centenas de devotos, agradecidos, percorriam a cidade em procissões.

Os medicamentos compostos de quinino estiveram entre os primeiros a serem apresentados como a grande panaceia contra a epidemia, assim como a vaselina mentolada, a cânfora, gargarejos com água e sal e outros tratamentos, além de muito repouso. Novos e velhos xaropes e comprimidos eram anunciados pelos grandes laboratórios. Comerciantes inescrupulosos, na ânsia de lucrarem muito com a crise, divulgavam cigarros, Água Tônica de quinino da Antártica, vinhos do Porto, tudo para atrair a atenção e a preferência popular. Nos anúncios dos jornais paulistanos muitos produtos eram apresentados como remédios, Cápsulas de Vita, Pílulas Sudoríficas e o Fortificante Vanadiol, uma espécie de tônico reconstituinte. 

Até o presidente da República fez propaganda de um remédio contra a gripe espanhola, como hoje também faz o atual, com uma tal Cloroquina. Por ironia do destino, o próprio presidente Rodrigo Alves acabou como uma dos milhões de vítimas fatais da doença em todo o mundo.

A capital federal da época, Rio de Janeiro, possuía uma população estimada em mais de 900 mil habitantes e o número de óbitos ultrapassou aos 15 mil casos. Em São Paulo, com uma população de pouco mais de 500 mil habitantes, o número de mortos passou de 5 mil casos. Nessa cidade, por causa do delírio da febre, passou a ser frequente e alarmante as ocorrências de disparos de tiros, de facadas, de ferimentos a pauladas, e de saltos para a morte. Pessoas gripadas tentavam ou alcançavam o suicídio, alguns ainda tiravam a vida de pessoas próximas, familiares. Terrível foi o caso da família Shonhardt: mãe e filho, acreditando que o pai, que ardia em febre estivesse possuído pelo demônio, resolveram matá-lo.

Muitas vidas também foram perdidas nas cidades do interior do estado de São Paulo. Em Campinas houve o registro de 6.707 enfermos; a mortalidade total foi de 209 indivíduos, considerada baixa, segundo os números do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo. Por sua vez, o Relatório do Serviço de Saúde Municipal afere um total de mortes pouco maior, de 224 cidadãos campineiros.

A partir da segunda quinzena de novembro de 1918, a doença começou a diminuir e as cidades retomaram a sua vida normal. É impossível calcular quantos foram os gripados e os mortos no país, pois muitos lugares não fizeram registros. O enigma sobre a causa da virulência da doença motivou vários estudos na Europa, Estados Unidos e Austrália. Em 2006, pesquisadores norte-americanos anunciaram que tinham recriado o vírus da Influenza em laboratório, a partir de fragmentos de vírus, congelado, encontrados em um cadáver exumado no Alasca. A resposta imunológica provocada pelo vírus foi tão intensa que os organismos afetados acabaram por atacar e destruir suas próprias células.

A verdade é uma só: devemos confiar nas autoridades sanitárias e na Ciência. Essa foi a lição que a Gripe Espanhola de 1918 nos deixou. Hoje, as pesquisas avançam no intuito de dispormos rapidamente de uma vacina que nos livre do Covid-19. Aguardemos.

Foto do destaque: Desfile de rua na Filadélfia, Estados Unidos da América, desobedece quarentena e causa 12 mil mortes.

Referência Bibliográfica:

Publicado originalmente do Correio Popular, de 9 de maio de 2020.
GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos. vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2005.
RELATÓRIO do Serviço de Saúde de Campinas, 1919.

3 comentários

  1. Ótimo o artigo, como sempre didático e objetivo.
    Consultando literatura à respeito, temos referencias que apontam para o Brasil, números extremamente variáveis quanto às vitimas da gripe espanhola, desde 14 milhões até 50 milhões de pessoas!
    Atualmente quanto à Covid 19 pouco mudou a “precisão” em relação ao número de óbitos diretamente causados por este vírus. São diagnosticados como o vírus “novo Corona” outras causas como pneumonia, infartos, entre outros. Possivelmente surgirão consequências negativas em futuro breve por esta falta de precisão ou de exatidão.

    Curtir

Deixe uma resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s