O escravo Theodoro contra o Homem-locomotiva

The slave Theodoro against the Locomotive man.

Jorge Alves de Lima – historiador, escritor. Titular da Cadeira 42 e ex-presidente do IHGG Campinas.

Em uma sexta-feira, 4 de setembro de 1885, a população campineira tomou conhecimento de um fato inusitado por meio de anúncio inserido nos jornais Diário de Campinas e Gazeta de Campinas:

Corrida no Hipódromo Campineiro – domingo, 6 de setembro. O célebre corredor Achyles Bargossi, cognominado – homem locomotiva – correrá, às 4 horas da tarde, 32.180 metros. Bargossi fará 20 voltas. Quem quiser competir com ele, a pé ou a cavalo, pode dirigir-se à imprensa ou ao Hotel da Europa. Durante a corrida tocará a banda de música italiana. Os bilhetes estão desde já à venda na casa dos Srs. A. Genoud & Cia, à Rua Direita (atual Barão de Jaguara) – Le Mond Elegant.

O atleta Bargossi fazia grande sucesso na Europa, pois, além de vencer os maiores corredores da época, vencia qualquer cavalo. A vantagem, que no princípio da corrida era para o animal, perdia-se totalmente ao final de muitos quilômetros, ficando o cavalo extenuado e Bargossi apontando como vencedor.

A cidade se alvoroçou, as apostas corriam na base de três a um para o cavalo. O dia da corrida foi de intensa movimentação. O povo afluiu para o Hipódromo do Bonfim a pé, a cavalo, de carruagem, carroça e de bonde de tração animal, superlotando-o, a ponto de não haver lugar vago durante o evento. Na hora marcada, Bargossi, vestindo roupa apropriada e justa no corpo, calçado, entrou na raia, tendo apenas como competidor um belo cavalo montado por um cavaleiro local.

No último instante, para surpresa geral do público, apresentou-se para a corrida um jovem de vinte anos, de nome Theodoro, de cor negra, sorriso largo e franco ostentado na face. Era escravo humilde e trajava uma calça de algodão azul, amarrada com cinta e camisa de chita vermelha. Estava descalço! O seu senhor era o fazendeiro Joaquim Lopes Coelho, proprietário da fazenda Macaco Branco, distante de Campinas 4 léguas, ou seja, quase 28 Km dali.

Refeito da surpresa pela participação de Theodoro, o corredor italiano Bargossi, ao lado deste e do fogoso cavalo, posicionou-se para a corrida.

Às 3h55 da tarde a banda começou e tocar e foi dada a largada, partindo imediatamente o cavalo a toda a velocidade, acompanhado, a longa distância, pelos corredores. O fogoso e belo animal já havia completado quatro voltas quando o seu condutor o retirou da raia, por extremo cansaço. A competição prosseguiu entre Bargossi e o cativo Theodoro, não revelando este a menor fadiga. Todavia, para surpresa da plateia, na 12ª volta, Theodoro ultrapassou a Bargossi, chegando, por um instante, a correr de costas, batendo palmas a ele, em atitude de estímulo e desafio. O povo foi ao delírio, entusiasmado pela performance do escravo, que não cedia passo ao atleta italiano. Às 6h13, Bargossi completou as 20 voltas da peleja, ou seja, 32 quilômetros e 180 metros, em 2 horas e 15 minutos, seguido de Theodoro, que perdeu a corrida apenas na última volta, por uma diferença de 50 metros de distância.

Bargossi foi aclamado, mas o escravo recebeu uma verdadeira ovação popular e foi carregado nos braços da multidão, acompanhado pela banda musical, através das principais ruas de Campinas até ao Largo do Rosário. Neste local, após rápido exame médico efetuado pelos doutores Valentim Silveira Lopes e Guilherme da Silva (hoje nome de rua no bairro do Cambuí), Theodoro foi fotografado pelo célebre retratista Nickelsen e sua foto foi mostrada na Exposição Regional de Campinas, realizada em dezembro de 1885, evento este quando pela primeira vez foi executado o hino de Campinas, O progresso, de autoria do imortal maestro Antônio Carlos Gomes.

Por sua vez, Achyles Bargossi não se mostrou contrariado. Na competição, revelou toda a sua condição de emérito esportista, correndo com método, técnica e elegância. À noite, ao lado de Theodoro, o corredor europeu, gentil e risonho, assistiu no teatro Rink a ópera cômica Princesa dos Cajueiros, de autoria de Artur Azevedo e música do maestro Sá Noronha.

Campinas ficou impressionada com a estupenda performance do escravo Theodoro na competição realizada no Hipódromo do Bonfim. Essa admiração ainda mais se acentuou quando se soube que, na véspera da corrida Theodoro viera da Fazenda Macaco Branco até Campinas para comprar remédios para seu senhor, percorrendo a distância de ida e volta de 8 léguas, ou seja 56 quilômetros em apenas algumas horas.

Contudo, havia ainda mais. Na véspera do evento, ao lado de outros cativos, Theodoro trabalhara pesadamente o dia todo nos serviços da fazenda. E, finalmente, no dia da corrida, veio de sua morada, andando mais 28 quilômetros, chegando sem qualquer descanso, no instante da sua realização. Além do que, Bargossi correu calçado e com roupa apropriada, o que facilitava seus movimentos, enquanto Theodoro estava vestido com simplicidade e descalço; o corredor italiano estava intensamente treinado, tanto no aspecto físico como tático para as corridas de longo percurso; Theodoro era, por condição imposta, exigido no pesado e cruel trabalho escravo e contava tão só com os seus robustos e privilegiados pulmões. Ademais no decorrer da competição, a esposa de Bargossi deu-lhe lenços para cheirá-los, que talvez contivessem sais estimulantes a facilitar-lhe a respiração; Theodoro sequer teve sequer uma gota de água a mitigar sua sede.

Analisando esses fatos, Campinas mais se entusiasmou e valorizou a atuação de Theodoro contra o célebre corredor europeu: liderada pelo delegado de polícia capitão João Gonçalves Pimenta, mediante subscrição popular, deu-lhe o mais precioso bem, a liberdade. No ato da assinatura e da entrega de sua alforria, o antes escravizado passou a adotar o nome de Theodoro Bargossi, em sinal de gratidão ao valoroso atleta italiano.

Referência bibliográfica:

LIMA, Jorge Alves. Crônicas de Campinas: séculos XIX e XX. Campinas: Komedi, 2011.

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