A suprema elegância do samba: notas sobre Campinas

The supreme elegance of samba: notes about Campinas (SP, Brazil).

Bruno Ribeiro – jornalista, escritor e letrista de sambas.

O samba não é somente um gênero musical, mas uma cultura viva que engloba também dança, poesia, vestimenta, culinária, religiosidade e, sobretudo, filosofia de vida. A mais sólida e importante manifestação cultural do Brasil nasceu provavelmente na Bahia, migrou com os escravos africanos para o Rio de Janeiro onde incorporou ao batuque duro a harmonia das cordas – e para o interior de São Paulo, onde misturou tradições negras, brancas e em menor escala, indígenas. Tornou-se patrimônio nacional.

O termo que define esta cultura adveio, possivelmente, de uma antiga dança de escravos, na qual os participantes tinham de dar (sam) e receber (ba) umbigadas uns nos outros. A relação ancestral de troca, evocada pelo samba, se perpetua, de certa forma, até os dias de hoje, através da prática da roda de samba feita nos quintais dos subúrbios e nas mesas de botequim. Foi ela, a roda, e não a indústria fonográfica a responsável pela sobrevivência do género até quase meados do século 20. Combatido pela polícia e pela família burguesa – eterna guardiã da moral e dos bons costumes – o samba resistiu a incontáveis tentativas de extermínio.

Em Campinas também o samba foi proibido. Aos negros capturados em plena alegria do ritmo restava a prisão e, não raro, o desaparecimento. Na matéria que motivou o convite para a publicação deste livro, Nenê do Cavaco, um dos maiores sambistas da cidade, revela que até a década de 1950 o preconceito racial era a tal ponto segregacionista que ele não podia ir sentado no bonde; tinha de viajar de pé, colocar-se “em seu devido lugar”. A perseguição, consequentemente, estendia-se ao samba. Os negros tinham de ser eliminados junto à sua cultura, a favor de uma mentalidade excludente e elitista.

Engana-se quem acredita que as manifestações de origem africana ou afro-brasileira gozam de perfeita aceitação na atual sociedade. É fato que a emancipação do negro, o avanço de suas lutas, conquistou espaços sociais dignos de sua importância e grandeza com o passar dos anos, incorporando suas tradições ao imaginário coletivo do povo brasileiro, que é miscigenado e essencialmente democrático. Mas é fato também que, por representar uma ameaça aos valores da elite econômica que detém o controle do País, sua cultura ainda encontra todo o tipo de obstáculos para que seja dignamente difundida e compreendida por todo o conjunto da nação. No lugar da repressão policial de outrora, está a indústria cultural a serviço do ritmo pop transnacional, capaz de diluir ideologias e cimentar raízes. O objetivo é a destruição de tudo o que é nacional e verdadeiramente popular; o povo que preserva sua identidade é um empecilho para os planos de criação de uma só música, uma só língua, um só mercado.

Mais do que nunca, o samba tem se mostrado a pedra no sapato das gravadoras multinacionais, dos meios de comunicação de massa e da própria crítica de arte nativa, colonizada pelo senso-comum que atribui ao pop-rock valores idealizados de “juventude”, “poder aquisitivo” e “modernidade”. Jovem e moderno como poucos gêneros conseguem se manter no decorrer do tempo, o samba dá provas de sua atualidade através das novas gerações de sambistas que não param de nascer nos redutos do Rio e de São Paulo. Eles honram o passado de resistência de nosso povo.

De origem negra, mas não excludente, o samba, hoje, é brasileiro, urbano e multirracial. Pode estar fora da programação das rádios – que chamam de samba o pagode romântico – e das páginas de cultura dos jornais – que, com exceção de alguns cadernos específicos, não lhes dedicam o espaço merecido. Sim, o samba pode estar fora dos festivais de TV e do ranking das músicas mais baixadas pela internet; mas, paradoxalmente, não está fora do dia-a-dia da população, o que assegura a curiosa contradição.

Se as mídias insistem em tratá-lo como mera manifestação exótica, folclórica e carnavalizada, as comunidades que têm se voltado para a preservação de suas raízes demonstram que ele é uma cultura indomável e independente. Em São Paulo, projetos culturais resgatam valores solidários intrínsecos à roda de samba e conseguem a adesão de centenas de pessoas, de bairros inteiros, que saem da frente da televisão para cantar sambas que jamais chegaram ao disco. A tradição oral cumpre sua função em projetos como Nosso Samba (Osasco), Morro das Pedras (São Mateus) e Cupinzeiro (Barão Geraldo, Campinas). Neles, o samba recupera seu discurso de resistência para contrapor a aceitação pacífica de uma cultura diluída pela indústria da música e da moda. com essa mesma vitalidade que novos grupos de samba têm levado o gênero aos bares de Campinas. Ao contrário dos projetos culturais, eles não buscam o discurso, mas contribuem também para romper preconceitos e, mais importante, criar um público novo – e jovem para o samba. Os bares campineiros, que sempre estiveram de portas abertas para o gênero, mas que a partir da década de 1990 voltaram-se contra ele, começam a redescobrir seu potencial a partir do ano 2000, com o movimento Revivendo o Samba, capitaneado pelo Quarteto de Cordas Vocais, no Centro Cultural Evolução – que depois se desdobraria para a Rua César Bierrembach, quase rebatizada de Rua do Samba.

De lá para cá, bares e espaços alternativos da cidade trataram de dar guarida aos grupos que, encorajados pelos meninos do Quarteto, viram no samba uma possibilidade de ascensão artística e não de classe social – rompendo com a mentalidade que passou a predominar no circuito do pagode, a partir do final dos anos 80. Dentre estes bares, o primeiro e mais corajoso foi o Tonico’s Boteco, na Rua Barão de Jaguara, no Centro da cidade. Certa noite, em meio às incontáveis tulipas de chope, o proprietário Paulo Henrique Oliveira convidou-me a elaborar um projeto que trouxesse, todos os meses, um grande nome do samba carioca para o botequim. Não bastava dar visibilidade ao samba; para o Paulo era preciso fazer com que o próprio conceito de botequim voltasse a fazer parte do universo cultural da população. Samba e boteco, irmãos siameses, tinham de se reencontrar. E isto aconteceu da melhor maneira possível: o projeto Mestres no Boteco fez tanto sucesso que o bar se tornou referência até mesmo no Rio de Janeiro, o paraíso dos botequins.

Fui testemunha das muitas vezes em que o Paulo Henrique não conseguiu cobrir o investimento – por se recusar a cobrar mais do que o justo pelo couvert do artista – e, nem por isso, desistiu de tocar em frente o projeto. Na segunda edição do Mestres no Boteco, os sambistas nem esperavam o convite e se adiantavam: ligavam para o bar e já faziam questão de serem acompanhados pelo Quarteto de Cordas Vocais – que foi até citado no livro Heranças do Samba, organizado por Aldir Blanc e lançado em 2004.

Passaram pelo palco do boteco nada menos que Moacyr Luz, Luiz Carlos da Vila, Nelson Sargento, Monarco, Nei Lopes, Tia Surica, Guilherme de Brito, Noite Ilustrada, Delcio Carvalho, Zé Renato, Marcos Sacramento, Niltinho Tristeza, Tantinho da Mangueira, Walter Alfaiate, dentre outros. Muitos se apresentaram mais de uma vez, sempre com casa lotada. E isso sem falar nos valores da cidade, que voltaram a ter um local para divulgar seu trabalho. Graças aos projetos, aos grupos locais e ao Tonico’s Boteco, o samba em Campinas passou a integrar o circuito nacional das boas rodas e dos bons shows do gênero — algo que nunca havia ocorrido anteriormente.

Quando o Paulo Henrique disse que pretendia editar um livro reunindo as minhas melhores entrevistas e matérias sobre samba – publicadas, em sua maioria, no Caderno C do jornal Correio Popular, entre os anos 2000 e 2005 -, confesso que pensei em declinar do convite, pelo temor de parecer pretensioso demais. Afinal, que importância poderia ter alguns textos datados, já divulgados na imprensa? Depois me convenci de que matérias de jornal nem sempre servem para forrar gaiola de passarinho no dia seguinte; algumas podem se tornar documentos que contam um pouco da história da cidade e do País. As matérias que Paulo Henrique e eu selecionamos retratam justamente essa época de redescoberta pelo qual tem passado o samba, em Campinas. Ajudarão, no futuro, a compor o painel cultural da cidade num período em que uma cultura, perseguida e combatida no passado, voltou a atrair a atenção de jovens de todas as classes sociais.

Mas a história não termina por aí; a luta continua e a esperança é de que, para além dos bares, o samba possa, um dia, fazer parte da vida de todo o conjunto do povo. Porque não somos os únicos a acreditar que uma nação sem identidade cultural estará eternamente condenada ao subdesenvolvimento. Em todos os níveis.

Referência bibliográfica:

RIBEIRO, Bruno. A Suprema Elegância do Samba – notas sobre Campinas. Campinas: Pontes, 2005.

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