História da moderna composição musical em Campinas: Maria Penalva, Raul do Valle e Marco Padilha

History of modern Campinas musical Composers (SP, Brazil): Maria Penalva, Raul do Valle e Marco Padilha.

José Alexandre dos Santos Ribeiro – linguista, musicólogo. Titular da Cadeira 34 do IHGG Campinas.

A professora, cantora lírica, bacharel e mestra em música pela Unicamp e compositora Maria Penalva é irmã do padre José Penalva, um dos nossos personagens do artigo anterior. Trata-se de uma mezzo soprano de dotes artísticos e técnicos invejáveis e uma eficientíssima professora de teoria musical, cujos ensinamentos dotaram seus alunos com sólidos conhecimentos na matéria.

Por outro lado, após ter completado a graduação em música, Maria Penalva fez o mestrado do curso e baseou sua tese na elaboração e análise estrutural e formal de uma obra verdadeiramente monumental e única, cuja execução, que ilustrou a sessão de defesa da tese (e foi depois gravada em CD), foi realizada pelo pianista Achille Picchi, a convite da autora.

A peça, cujo título já deixa clara a sua ambiciosa e bem realizada proposta, chama-se Setenta variações transatonais para piano e é de 1996, tendo dado a Maria Penalva a nota A com louvor, por unanimidade da banca examinadora.

O tema da peça é uma série dodecafônica mais os acordes dela resultantes, a que se seguem as variações, didaticamente concebidas, sequencializadas e baseadas em modelos buscados em Haendel, Bach, Beethoven e na música gregoriana, e a peça termina por uma fuga baseada na fuga IV do 1º volume de O cravo bem temperado de Bach.

As variações abordam formas como a chacona, o cânone, a forma de sonata, a forma de rondó, as formas sacras gregorianas, o prelúdio e, como já dito, a fuga.

Em comentário que escreveu sobre a peça, o compositor brasileiro Almeida Prado, que foi um dos mestres de Maria Penalva, diz, entre outras coisas, que, com essa peça, Maria Penalva se coloca no nível de uma Dinorá de Carvalho, nossa primeira Grande Compositora Brasileira. Essas 70 Variações abrem novas perspectivas sonoras.

A obra de Maria Penalva inclui canções de câmara, peças pianísticas e também peças para órgão: recentemente, o organista Júlio Amstalden fez um recital no órgão da Matriz do Carmo, que incluiu a execução de um prelúdio coral e fuga muito bem estruturado e de estilo bem atual, feito por Maria Penalva em 1992.

Mas seis anos antes, em 1986, ela compôs uma peça para piano particularmente interessante, que se chama Prosopopéia, palavra grega cujo sentido básico é personificação. A peça é uma breve série de cinco tipos de variações sobre um tema exposto inicialmente como um prelúdio e que volta a aparecer no final da peça, como um poslúdio, que a encerra assim, ciclicamente. As cinco partes que compõem as variações apresentam, respectivamente, cinco diferentes processos compositivos, como segue: prosopopêion I, serial; prosopopêion II, acordes; prosopopêion III, contraponto; prosopopêion IV, fantasia; prosopopêion V, minimal – o que torna a peça uma densa e didática amostragem da composição contemporânea. Existe da peça uma gravação ao vivo, realizada em 1996 na Unicamp, em execução do pianista Geraldo Ribas.

Outro importante e criativo compositor de Campinas no século XX é Raul do Valle (1936). Nascido em Leme, ele tem vivido sua vida profissional ativa e a expansão de sua criatividade em Campinas e, portanto, pode e deve ser considerado como um compositor e professor de música campineiro.

Raul do Valle pode ser considerado como um dos mais criativos e apetrechados compositores brasileiros da atualidade. Tendo estudado música (composição e regência) com Camargo Guarnieri, em cuja escola se formou pelo Conservatório Musical de Santos, foi em seguida para a Europa, onde estudou com Nadia Boulanger, Olivier Messiaen, Pierre Boulez e Iannis Xenakis, em Paris, além de ter estudado em Genebra, com Alberto Ginastera.

Além disso, participou de Oficinas de Criação com John Cage, Andre Boucourechliev e outros, bem como se especializou em música eletroacústica, com Guy Reibel e Pierre Schaeffer, no Groupe de Recherches Musicales de Paris.

Sua obra musical inclui peças sinfônicas, de câmara e eletroacústicas e já lhe deram muitos prêmios, convites e honrarias. Além de membro da Academia Brasileira de Música, desde 1994, Raul do Valle é membro-fundador da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, da Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica e das Academias Paulista e Campineira de Música.

Professor titular do Departamento de Música da Unicamp, pelo qual se doutorou em música, criou nessa universidade, em 1983, o Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS), onde se fazem pesquisas avançadas de música contemporânea.

Em 1974, a convite da Comissão Municipal Organizadora das Comemorações do Bicentenário de Campinas, que lhe foi feito pessoalmente pelo então prefeito Lauro Péricles Gonçalves, Raul do Valle compôs a Missa da nova e eterna aliança, que foi solenemente executada na Catedral Metropolitana da cidade, em missa solene celebrada a 14 de julho daquele ano.

Mas, queremos fazer menção especial a uma pequena peça musical composta por Raul do Valle em 1993, especialmente para o V Concurso Nacional de Música de Câmara, da Faculdade Santa Marcelina de São Paulo: trata-se de Vitrais, uma peça de movimento único, em estilo atonal e para flauta e violão. A peça, inteligentemente, tira partido das diferenças e especificidades timbrísticas dos instrumentos a que ela se destina (o violão e a flauta). Ambos os instrumentos exigem executantes competentes, porque todas as suas potencialidades virtuosísticas são exploradas pela peça, que termina de forma brilhantíssima, com sons em staccato ff. da flauta, emoldurados por uma vigorosa escala descendente do violão.

Encerro este artigo com a referência a Marco Padilha. Nascido em Campinas em 1955, fez estudos iniciais de piano, teoria musical e composição com o compositor campineiro Orlando Fagnani. Após bacharelar-se em piano e matérias complementares pelo Conservatório Musical Carlos Gomes de Campinas, graduou-se em música pela Unicamp, estudando composição com Almeida Prado e música eletroacústica com Raul do Valle, além de aperfeiçoar-se em piano com a pianista e professora Isabel Mourão, em São Paulo.

Tendo sido convidado a participar de eventos musicais importantes no Brasil e no exterior, como o Panorama da Música Brasileira Atual (Rio de Janeiro) e o Festival de Música Nova (Santos), tem suas obras editadas no Brasil (pela Editora Irmãs Vitale) e na Alemanha (pela Tonos Musik Verlag de Darmstadt).

Em 1992, Marco Padilha foi convidado a enviar uma obra sua para disputar sua participação no Festival Internacional de Música de Zurique (Suíça) que, naquele ano, era dedicado à música brasileira. A obra com que Padilha participou do referido festival foi Mystagogós – Hommage à Olivier Messiaen (o grande compositor e pedagogo musical de vanguarda da França, que tinha morrido naquele ano e que foi um dos grandes professores, tanto de Almeida Prado quanto de Raul do Valle, ambos, como se viu, professores de Padilha na Unicamp). A peça, que foi executada e gravada ao vivo pelo Conjunto de Música Nova de Zurique é uma obra de movimento único, que usa todos os naipes sinfônicos, com piano obligato, percussão vigorosa, ritmos impositivos e harmonia segura e moderníssima.

Após essa marcante estreia mundial de Mystagogós op. 14 (Mystagogós é palavra grega que significa mestre dos mistérios e era atribuída, na mitologia da Grécia clássica, aos sacerdotes que tinham a incumbência de ensinar os mistérios de Zeus e de outros deuses aos seus seguidores), exprimiu, como título da peça de Padilha, a maneira como, metaforicamente, ele via o papel de Messiaen na música contemporânea a seus renomados alunos, dentre os quais se inclui, por exemplo, Pierre Boulez (1925), que vem sendo considerado, após a morte de Messiaen, a mais importante personalidade viva da música mundial, e a importante pianista francesa Yvonne Loriod, que foi aluna de Messiaen e sua segunda esposa. Ela escreveu uma carta a Almeida Prado, elogiando a peça com que Marco Padilha homenageava o marido dela, o que não deixa de ser outro galardão para o compositor.

Os compositores da família Gomes (Manoel, Sant’Anna e Carlos), José e Maria Penalva, Paulo Florence, Raul do Valle e Marco Padilha exornam, há 200 anos, a história artístico-cultural da cidade de Campinas. Talvez sejam os mais renomados (e são, por certo, os únicos de quem temos gravações fonográficas disponíveis), mas não são os únicos que merecem divulgação e conhecimento: não falamos, por exemplo, de Azarias Dias de Mello (1840-1912), Elias Álvares Lobo (1834-1901), Emílio Giorgette (1854-1928), José Emígdio Ramos Júnior (1840-1900), José Maurício Júnior (1850-1881), Presciliano Silva (1854-1910), Sabino Antônio da Silva (1843-1900), Carlos de Campos (1866-1927), Orlando Fagnani, José Augusto Mannis e José Antônio Almeida Prado (1943), o maior compositor brasileiro vivo da atualidade, que, durante os longos anos em que foi professor de composição musical na Unicamp, estabeleceu marcados vínculos vivenciais e criativos com nossa cidade, além de, inclusive, tê-la presenteado com uma verdadeira obra-prima de escrita sinfônica moderna, que é a Abertura cidade de Campinas (1976), a qual foi por ele dedicada à nossa Orquestra Sinfônica Municipal, que gravou a peça em 1978, sob regência do maestro Benito Juarez, após ter feito sua estreia mundial em concerto realizado em 1977.

O que se espera é que a Unicamp, por exemplo, que tem Departamento de Música e onde trabalham (ou se graduaram), inclusive, alguns dos nossos compositores aqui mencionados e/ou citados, crie um núcleo de pesquisa sobre a criação musical em Campinas, exumando obras e autores e fazendo estudos analíticos e de divulgação; que os conservatórios e escolas livres de música locais – eventualmente articulados – criem em suas grades curriculares uma disciplina de História e Crítica da Música em Campinas; que nossos conjuntos vocais e instrumentais, bem como nossos solistas incluam músicas e músicos de Campinas em seus respectivos repertórios; e que a nossa Orquestra Sinfônica Municipal continue executando peças de compositores de Campinas em suas temporadas oficiais, com mais frequência, o que levaria, inclusive, outras tantas orquestras brasileiras a fazê-lo.

No Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes, no Centro de Memória – Unicamp e nos empoeirados arquivos de várias de nossas igrejas, há partituras ótimas à espera de serem levadas para as estantes de música e serem transformadas em regalos estéticos, aqui nascidos, para nossos ouvidos.

Aliás, o bom trabalho de pesquisa que musicólogos como o padre José Penalva, os maestros Olivier Toni e Vitor Gabriel e Lenita Waldige Mendes Nogueira fizeram e vêm fazendo, sem dúvida, facilita o trabalho de garimpagem musical em Campinas, cujos resultados práticos todos esperamos.

Referências bibliográficas:

MARIZ, Vasco. A canção brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Ed. Cátedra, 1980.
__________. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1994.
NOGUEIRA, Lenita W. M. Maneco músico, pai e mestre de Carlos Gomes. São Paulo: Ed. Arte e Ciência, 1997.
__________. O Museu Carlos Gomes Catálogo de manuscritos musicais. São Paulo: Ed. Arte e Ciência, 1997.
_________. A Música em Campinas nos últimos anos do Império. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001.
SESSO JR., Geraldo. Retalhos da velha Campinas. Campinas: Ed. Gráfica Palmeiras, 1970.

Um comentário

  1. Talvez seja oportuno lembrar que no próximo mês de março faz 50 anos de um fato que foi historicamente relevante para Campinas: a inauguração de fato do Teatro Municipal “Castro Mendes” com a celebração e encenação de “O Guarani” de Calos Gomes em seu CENTENÁRIO. Esse fato não poderia passar indiferente à cultura oficial de Campinas.
    Aquela celebração se fez com a Orquestra Sinfônica de Campinas, com cantores de Campinas, com cenografia de um grande artista de Campinas.
    Prof. Dr. Rodolpho Caniato( “Dom Antonio de Mariz” em “O Guaraní” do Centenário, em 1970)
    (Ex Professor da PUCC, da UNICAMP, da USP e da UFRRJ aos 91 anos

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