The beautiful legs of Carmen Miranda.
Por Rubem Costa – educador, jornalista. Titular da Cadeira 20 do IHGG Campinas.
O sentimento anti-getulista era muito forte naquela época. Em 1930, o ditador havia deposto Washington Luiz e assumido o poder. Campinas fora bombardeada na Revolução Constitucionalista de 1932. Pouco tempo depois de promulgada a Constituição de 1934, sob argumentos obscuros, um outro golpe de estado foi perpetrado por Getúlio Vargas.
Com a imposição do Estado Novo, em 1937, os intelectuais tentaram resistir criando a expectativas oposicionistas. Pois foi no embalo de uma saga que aqui se desenvolveram os festejos monumentais do bicentenário de fundação da cidade, em 1939. Uma arregimentação de vida para equilibrar o dissabor de uma derrota iníqua. Celebração que, por anos a fio, perdurou na crônica como verdade histórica até que inconformados pesquisadores – penetrando nos alfarrábios cartorários, onde a verdade é implacável – puseram à evidência a catarse que dominou a cidade naquele ano célebre, aclamando um equívoco (crasso no campo histórico, mas profundamente humano na manifestação mística do ser): uma confusão de datas que repousa na sublime emoção que acalenta a vida. Comemoração equivocada – todavia profundamente amada – que, com um travo amargo de ironia, terminou – paradoxalmente – por outorgar a Campinas o privilégio de ser talvez a única cidade no mundo a celebrar em dose dupla, no espaço de trinta e cinco anos – 1939 e 1974 – o bicentenário de fundação.
Advirto que não estou usando de ironia na assertiva, nem desejando por a ridículo o maior evento de todos os tempos da cidade. Posto que, se assim fosse, estaria a rir de mim mesmo: campineiro de quatro costados, nascido em casa, há mais de noventa anos, na rua José Paulino – esquina de Marechal Deodoro, coração da urbe. Eis que, sem qualquer prévio exame, abracei, como tantos outros, de corpo e alma, a ideia histórica, divulgando o mito com meu trabalho profissional, já que – repórter do jornal Diário do Povo – aos vinte anos, fui testemunha ocular e partícipe entusiasta do acontecimento que mexeu com a vaidade da gente e acalorou o orgulho do povo.
Vale lembrar que a euforia era tanta que, já em janeiro – ao delinearem-se os primeiros passos da comemoração — a prefeitura municipal, a cuja frente se encontrava Euclydes Vieira, como preambular anúncio dos festejos, promoveu a realização no Teatro Municipal de um espetáculo carnavalesco com a participação das maiores figuras da nossa música popular. Um acontecimento impar na vida cidade. Privilégio, entanto que, paralelamente, antes do espetáculo, durante o dia, ensejou uma ocorrência inusitada para a época, tanto que aparece citada por Ruy de Castro na biografia que fez da atriz e interprete musical Carmen Miranda. Acontece que a Pequena Notável fora requisitada pelo cinema americano e se despedia, em última tournée, dos palcos brasileiros.
Conta o biógrafo que em Campinas, no bairro do Botafogo, numa colisão do automóvel que dirigia com um bonde, a artista ficou ferida, mas que, embora com uma perna comprometida, não deixou de participar do espetáculo programado para a noite.
O registro da ocorrência me leva a uma observação de ordem pessoal. Admitindo ser o brilhante biógrafo, pelo menos diante de meus noventa e tantos anos, pessoa ainda jovem, suponho que só pode ter tido a informação do acidente através de jornais da época, posto que já vai longe o tempo da ocorrência. Assim, talvez seja eu a última testemunha ocular do fato, pois estava presente no instante em que Carmen Miranda, numa afirmação plena de imperícia automobilística, depois de chocar-se com uma árvore abalroou em seguida o bonde número 9, que rodava na lentidão de sempre, parando em cada esquina, a uma velocidade máxima de 10 Km por hora. Por coincidência, viajava eu no coletivo na hora do acidente. Residindo na rua Saldanha Marinho, voltava no elétrico para casa quando presenciei ao abalroamento. Como repórter registrei a ocorrência, acentuando na notícia que o carro avariado, um studbaker preto novinho em folha havia sido importado naquele mesmo mês. Só não contei na matéria que, para auxiliar a linda moça sair do carro, cuja porta estava avariada, tive de pelas pernas nuas, isto é, sem meias, puxá-las.
De qualquer forma, fui à noite assistir ao espetáculo no Teatro Municipal que, lotado, mantinha-se obviamente integro, em pé, porque Ruy Novais, que anos depois o mandou para as urtigas, felizmente não era ainda prefeito da cidade.
Foi uma apresentação monumental para a época. Carmen Miranda, mesmo estando no auge da carreira, nunca se apresentava só. Numa afirmação de amor fraterno, trazia sempre consigo a sua irmã Aurora que não sabia cantar, mas recebia aplausos à sombra da mana. Mas, naquela noite, enriquecendo o elenco, participavam também, o Rei da voz, Francisco Alves, o Seresteiro Silvio Caldas, e a dupla Henricão & Carmen Costa cantando Boneca de Piche.
No intervalo do show, como participação artística da cidade apresentou-se, em número de sapateado, um jovem chamado Nelson Peres que, tempos depois vestido de cowboy, sob o codinome de Bob Nelson, interpretando Oh, Suzana em falsete de voz ao modo tirolês – Olrereriiiiiche – iria tornar-se a sensação dos programas radiofônicos do pais. Devo dizer que Nelson Peres (1918-2009) nasceu e cresceu no bairro do Botafogo – na avenida Andrade Neves – onde seu pai fundara um estabelecimento hoteleiro denominado Pensão Dalva. Atuou inicialmente na Rádio Tupi, transferindo-se após para a Rádio Nacional. Na década de 1940 foi uma das atrações do Casino Atlântico. Faleceu no Rio de Janeiro, onde residia como servidor aposentado da Imprensa Oficial do Estado.
Assim, ecoando para a história do bicentenário naquela noite tão distante, aconteceu o inesquecível em Campinas:
Em Boa Noite, Amor, Chico Alves saudou;
Em No Tabuleiro da Baiana Carmem Miranda sambou;
Em Chão de Estrelas” o Caboclinho serestou.
Almirante entoou Touradas de Madrid;
Henricão, negro retinto – todo de branco – e Carmen Costa – toda de baiana – se explicaram:
Venho danado com meus calo quente
Quase enforcado no meu colarinho
Venho empurrando quase toda gente, Eh! Eh!
Pra ver meu benzinho. Eh! Eh!
Nego tu veio quase num arranco
Cheio de dedo dentro dessas luva
Bem que o ditado diz: nego de branco
E sinal de chuva. Eh! Eh!
Grito de carnaval comemorando os duzentos anos de Campinas.
Sou testemunha ocular, sim senhor!
Referência bibliográfica:
COSTA, Rubem. Bicentenário de Campinas: a saga que a cidade amou, 1739-1939. Campinas: Komedi, 2013.