The pleasure of writing.
Por Sérgio Eduardo Montes Castanho – educador, professor da Unicamp. Titular da Cadeira 35 do IHGG Campinas.
A gente vai levando, diz Chico Buarque na música conhecida. Mas precisaria do Chico para dizer isso? O que há de diferente nessa frase? Não seria uma banalidade como tantas outras: É, parece que vai chover? No entanto, o mesmo poeta, em outra joia do seu repertório, solta coisas do tipo: um dia chove, no outro faz calor. E daí, pergunta-se o amigo incrédulo, misto de espanhol de Salamanca com italiano da Sicília, onde está a poesia? Isso até eu faria!
E no entanto – diz a poesia-música – é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar. Quem viveu os duros dias de 1964, quando a cultura florescente da sociedade civil foi cortada pelo aço frio das baionetas, há de entender o que queria dizer o poeta com: mais que nunca é preciso cantar. E quem naqueles tempos sofreu a mordaça da censura há de perceber a carga profunda de ironia do poeta quando se limitava a dizer que num dia chovia, noutro fazia calor. Era isso o que ele queria dizer? Evidentemente, não. Ele queria denunciar as prisões arbitrárias de amigos e companheiros de ideais, queria bradar contra as cassações de lideranças políticas, contra o fechamento da UNE e do ISEB, contra o cerceamento dos sindicatos e de todo o movimento popular, mas não podia. Então, não podendo fazer uso do rude violão do protesto, sacava a lira cândida da ironia e, dedilhando-a com ar angélico, saía-se com os suaves comentários meteorológicos.
É que a poesia, como toda arte, trabalha em sintonia com o conjunto da cultura da sociedade. Ela se presta, ou deve prestar-se se for boa, para melhorar a vida da gente. O poeta não é um ser desencarnado falando coisas sublimes sobre temas elevados. Ela ou ele, poeta, põe o dedo na ferida, participa da vida cotidiana, gosta de futebol, cachaça, política, toma partido, xinga, usa palavrão, tem obrigação de ser mais livre (para usar o paradoxo de Sartre sobre a condenação à liberdade).
Quando Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor, nada mais fez do que retomar uma tradição clássica. Desde os gregos antigos a arte é considerada uma imitação que dá uma entortadinha na coisa imitada, de maneira a permitir ao público superar a situação retratada. Disse Pessoa: O poeta é um fingidor: finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Em outras palavras, ao se voltar ao cotidiano, os poetas apropriam-se do que nele é banal e supera-o, contribuindo para que o público que os lê, ouve ou assiste ganhe condições críticas diante do mundo que sua arte apresentou transfigurado.
Era fim de tarde, estava em Sousas, essas coisas fervilhavam na minha cabeça, fiquei pensando, olhando as copas altas das árvores do outro lado do rio, andando, acompanhando o voo elegante de uma garça, pensei que ia ouvir o canto misterioso das atibáiades, as ninfas do Atibaia, mas nesse dia elas se recusaram, não se fizeram ouvir, estavam em greve, com o saco na lua, o Brasil tinha perdido uma partida importante… Como cantar se os gritos de gol estavam entalados na garganta? É isso aí: a poesia tem tudo a ver com a vida, com aquilo que pulsa. Mas também tem uma coisa: se as atibáiades não querem cantar, respeito-as, mas sigo na minha toada, fazendo poesia do cotidiano.
Quando comecei a frequentar as musas — ou sua prima menos afetada, a prosa? Para fazê-lo, era preciso que o autor escrevesse e tivesse aprendido a escrever, seja uma crônica, um poema, quer um conto, um romance. Ficava a indagação: como a gente se inicia na arte de lidar com as palavras e por elas transmitir experiências, emoções, ideias? Até hoje não sei responder a essa pergunta geral. Se eu fosse um filósofo, como Aristóteles, que escreveu a Poética e ditou regras de como compor o Poema, eu o faria. Não sou. Quando, muito, um curioso dos caminhos filosóficos, que às vezes percorro na ânsia por ver claras e distintas as coisas que neste mundo se mostram obscuras e confusas.
Quando comecei a escrever? Será que alguém consegue lembrar-se desse momento? Não digo o ditado que a professora primária lia e a gente copiava, a saudosa dona Noêmia Asbahr, sua filha dona Teresinha, no prédio que até hoje existe ali na Campos Salles, sede da loja maçônica Independência. Credo, a gente morria de medo, não que tivesse acesso aos lugares dos ritos maçônicos, das reuniões, não tinha, era tudo bem fechado, a escola só ocupava algumas salas do prédio e mais o quintal, lindo, cheio de árvores frondosas. Mas às vezes, abelhudos, conseguíamos entrar nesses locais misteriosos, a sala das sessões, com espadas atrás das cadeiras, os símbolos na parede, aquele olho dentro do triângulo, diziam que era do arquiteto do universo, o deus dos maçons, dos pedreiros-livres. Brrr! A gente sentia um frio na espinha! E o dia em que entramos no porão? Fomos indo, sala após sala e, de repente, estávamos numa em que se guardavam objetos de algum rito funerário. Foi um espanto, saímos correndo quando demos com um caixão de defunto, panos pretos e roxos, candelabros prateados, o Toninho Bocaletti, o Mílton Jampaulo, eu – tinha mais alguém? O fato é que desatamos numa correria desabalada pelos corredores até nos sentirmos seguros no quintal, pisando a terra conhecida, embaixo do pé de uma frutinha gostosa, como é que chamava? Esqueci, parecia uma goiabinha, uma delícia.
O engraçado é que tudo isso, a maçonaria, o mistério, as primeiras pitadas no cigarro de papel preto, de alcaçuz, docinho, Conchitas, tudo escondido, nada disso era matéria a ser escrita. Hoje é, naquele tempo não era. Gozado. Quando li Mário de Andrade, que não era filósofo mas escreveu uma estética, A escrava que não era Isaura, na ocasião não entendi bem o que ele queria dizer, hoje entendo claramente, tratava-se de sacar a matéria de literatura do inconsciente, fazendo-a consciente e transformando-a em poesia pelo toque da palavra.
Acho que escrever mesmo, no sentido de inventar e redigir histórias começou nos tempos do curso ginasial que fiz no Ateneu, uma escola que se orgulhava de ter os mesmos professores do Culto à Ciência, só que este puxava mais. Tinha um professor de português no Ateneu, jornalista, cronista, pastor protestante, uma figura diferente, diziam que era meio comuna, o que na época era estigma, Ernesto Alves Filho. Escrevia no Correio Popular. Pois ele, com sua didática não muito ortodoxa, acreditava que os conhecimentos eram como o Toddy no copo de leite, desciam para os pés, era preciso chacoalhar o aluno para que o saber subisse para a cabeça, e assim ele fazia, chamava o menino lá na frente e o sacudia até que julgasse que a coisa tinha subido, foi o seu Ernestinho quem por primeiro me estimulou a escrever.
Já nessa época eu escrevia com uma caneta-tinteiro, isto é, uma caneta que trazia no corpo seu próprio depósito de tinta, uma Parker 21 que havia ganho da tia Guida, minha madrinha de batismo. Mas antes disso, cheguei a escrever com uma caneta cuja pena de aço, para escrever, devia ser mergulhada num tinteiro. Um dia ganhei uma caneta dessas toda colorida, um primor de artesanato dos presos. Antes disso, ganhei de minha mãe um jogo com caneta, tinteiro e penas, tudo em prata, joia finíssima. Perdeu-se. Mas ficou na memória. Sem trocadilho, comecei a escrever a duras penas, com as penas de aço enfiadas em canetas de madeira, revestidas de fios coloridos formando desenhos ricos, o artesanato dos habitantes da cadeia pública.
Apesar do áspero aprendizado no Ateneu, foi realmente no curso colegial do Culto à Ciência que me lancei de vez ao braço acolhedor das musas. Vários fatores me levaram a isso. Excelentes professores de língua e literatura portuguesa incutiram-me o gosto pelo idioma e pelas letras. Entre eles avultava a figura sobranceira do professor Francisco Ribeiro Sampaio, o ar imponente, solene, a sobrancelha arqueada e o canto dos lábios comprimido quando se tratava de acentuar a importância de uma passagem literária ou, com o mesmo semblante, quando se punha a admoestar o aluno faltoso. A cultura expressa em língua portuguesa era coisa que se levava a sério. Não conseguiu decorar Inês de Castro? Esqueceu-se da primeira estrofe de Batalha de Aljubarrota? Não sabe Adamastor? Então você leva zero, moço.
Havia outros grandes mestres de português no Culto à Ciência. Tive aulas com dona Mercedes Castro, professora dedicada, pôs ordem na casa, ensinou a boa gramática, incentivou a leitura, organizamos na classe um grêmio literário, comprávamos livros, foi nessa ocasião que li Espumas Flutuantes de Castro Alves: essas brancas ossadas são colunas arrojadas nos infinitos azuis. Dona Mercedes tinha critério tanto na escolha dos temas quanto na correção dos trabalhos, sempre apontando o que havia de bom e os deslizes. O marido dela também era professor da casa, Francisco Galvão de Castro, meio pirado, memória que conhecia o sânscrito, desengonçado, sem muita coordenação motora, não conseguia andar docemente, ia por impulsos, mirava um poste, ia até ao poste, mirava uma árvore, ia até à árvore, diziam que tinha ficado assim por ter perdido a biblioteca em uma inundação.
Além dos professores havia a influência de casa. Nos meus tempos de jovem cultuava-se entre os familiares, especialmente do lado de minha mãe, o mito da cultura literária. Um dos tios, Aristides Lemos, advogado, homem culto, estudara na França, fora redator-chefe do Diário do Povo e me parece que, também, do Correio Popular. Gestos largos, falava discursando. Outros tios, mais moços, influenciados pelo Lemos, sabiam de cor e salteado versos dos grandes poetas.
Mas o fator decisivo veio do próprio ambiente estudantil. O grêmio dos estudantes tinha um jornalzinho, O Culto à Ciência, dirigido por José Alexandre dos Santos Ribeiro, hoje confrade neste Instituto e na Academia Campinense de Letras, e logo fui convidado a escrever um artigo. Foi o maior desafio da minha vida. O artigo era um horror. Mas tinha certa pompa. Parece que houve até quem gostasse. Foi o bastante para encher meu balão. Não parei nunca mais. Já por esse tempo comecei a datilografar. Meu vizinho, o amigo Ralph, emprestou-me um livreto contendo o método de datilografia e lá ficava eu até que consegui escrever sem olhar para o teclado. Até hoje isso me vale grande desenvoltura quando enfrento o computador.
Foi a primeira vez que superei as duras penas. Entrei na era da máquina, bem entendido, da máquina de escrever. Vou contar um segredo: até às margens do Atibaia, onde me refugio da aspereza urbana para me encontrar com a graça das atibáiades, até ali, onde deveria desfrutar apenas do som dos pássaros mascando a ponta de um capim à sombra das faias, até ali tenho um computador onde me sinto compelido a povoar com vida as formas que anseiam por ganhar alma.