O primeiro bicentenário de Campinas

Campinas, SP, Brazil: first bicentennial tribute (1739-1939).

Por Rubem Costa – educador, escritor. Titular da Cadeira 20 do IHGG Campinas.

Nos primórdios de 1939, iniciavam-se em Campinas os preparativos para comemoração do bicentenário de fundação da cidade. Festejos que, inaugurados em 3 de setembro, iriam estender-se solenemente até meados de dezembro.

A referência a esse acontecimento – ocorrido na terceira década do século XX – não mais aparece, como tal, em nosso calendário histórico. Por isso a informação exótica pode parecer estranha às gerações de hoje que, desde muito, se acostumaram com a data oficial da fundação de Campinas, atualmente comemorada no dia 14 de julho e não em 3 de setembro. Efeméride, aliás, de fácil memorização por coincidir com outra de repercussão universal, a tomada da Bastilha em 1789. Apenas como citação, é de se registrar que o Correio Popular, tradicional matutino campinense, como acontece todos os anos no pré referido dia, publicou alentado caderno para engalanar os 243 anos da cidade, evidenciando que Campinas surgiu como urbe bem depois do indigitado 1739.

Óbvio que não é preciso contar nos dedos para, acacianamente, numa aritmética simples, constatar que estamos diante de um “imbróglio”. Eis que, se a cidade tinha (2017) 243 anos, como apontam os registros em curso, é porque evidentemente foi fundada em 1774. Consequentemente, como (e por quê) haveria de ter, então, comemorado o bicentenário em 1939?

Parece estranho, mas comemorou. E exuberantemente com uma festa sem precedentes nos fastos da urbe. Com repercussão nos quadrantes do país. Ocorrência gentílica que outorga a Campinas uma faculdade exclusiva: a de ser, talvez, a única urbe no mundo com o privilégio de celebrar, por duas vezes, no espaço de 35 anos (1939 e 1974), os 200 anos de sua fundação. Até, num mau trocadilho, poderia dizer-se que houve um bibi de muito lustro em sete lustros.

Motivo? Tudo porque, como diria o velho conselheiro Acácio, não há canção que não tenha autoria. E, como não podia deixar de ser, aconteceu em razão de um deslize de pesquisa ou, mais propriamente, de uma equívoca interpretação histórica que, cantada em prosa e verso, acirrou o sentimento cívico da gente campinense.

Advirto que não estou usando de ironia na assertiva. Campinense de quatro costados, nascido em casa, há 87 anos, na Rua José Paulino esquina de Marechal Deodoro, coração da cidade, repórter do Diário do Povo aos 20 anos, fui testemunha ocular e, por força do ofício, partícipe entusiasta do evento que mexeu com o orgulho da gente da terra.

Para se compreender melhor a eufórica assertiva que transcende à lógica, parece-me oportuno fazer um rápido preâmbulo dissertativo sobre a efervescência política que agitava o espírito comunal do homem paulista na década de 30 do século passado.

De relance, num quadro extremamente sinótico, é preciso lembrar que 1930 foi um ano crucial para os brios políticos de São Paulo. A deposição, a 24 de outubro daquele ano, do presidente da República, Washington Luiz, carinhosamente alcunhado Paulista de Macaé, porque, mesmo nascido no Rio, tinha sido, também, presidente do Estado, foi um golpe traumático para a gente bandeirante. Traumático e virulento porque, paralelamente, Júlio Prestes de Albuquerque e Lins, homem de São Paulo – candidato do governo deposto à Presidência da República – era, igualmente, escorraçado sob o estrépito das alpercatas de jagunços embiocados em gibão e chapéu de couro, que, acompanhando o riso mordaz da “gauchada” de poncho, guaiaca e boleadeira, repetiam em voz alta uma frase ferina de Getúlio Vargas. A afirmação de que iria de pala e bombachas amarrar o “pingo” no obelisco em frente ao Catete, que era, então, no Rio, a sede do Governo da República. E amarrou. Escárnio aos brios de um povo altivo. A locomotiva da nação fungou.

Dissolvidos o Congresso Nacional, o Senado, Câmara de Deputados, Assembleias legislativas e Câmaras municipais de todo o país, São Paulo, força propulsiva da economia brasileira, depois de 1932, teve a governá-lo um “tenente-interventor”. Lembram-se da letra da marchinha carnavalesca que Lamartine Babo surrupiou aos irmãos Valença, mas na qual, em alusão jocosa aos desmandos da ditadura, introduziu a letra: “Os teus cabelos não negam – mulata, mulatinha meu amor, já fui nomeado seu tenente-interventor.”? Música que, em que pese ao fato de ter-se transformado no grito do carnaval de todos os tempos, não ganhou força poética suficiente para aplacar o ânimo ferido da gente bandeirante.Campinas, berço de Campos Sales, quarto presidente da República, não se aquietou. Era núcleo, parcela da dignidade vilipendiada. Em 1932, vibrou com a Revolução Constitucionalista. Mandou seus filhos para o front. Perdeu nas armas, sofreu, mas não silenciou. Como o apóstolo que dá nome ao estado, pelejou a boa peleja, combateu o bom combate, guardou a fé. Continuou ruminando suas crenças. E crenças políticas, como lembrava o grande Le Bom, têm por sustentáculo fatores afetivos e místicos. Em sua gênese a razão é quase nula, porque constitui um ato de fé elaborado no inconsciente. A crença de origem política tem esse fundo místico que domina inteiramente o pensamento e somente pode ser dirimida ao longo de muito tempo. Assim aconteceu com Campinas. Amargando a derrota de 1932, a cidade, obviamente, não se curvou. Dois anos após, 1934, com o dinheiro doado pelo povo – desde os mais ricos aos mais pobres – iria erguer, no pórtico do Cemitério da Saudade, o mausoléu aos filhos que morreram em batalha. Ali, um soldado de bronze em pé, guardando o Pavilhão de São Paulo, alonga o olhar para o futuro, numa afirmação de fé e esperança. E, junto à laje granítica que Marcelino Vélez concebeu, o príncipe dos poetas brasileiros, Guilherme de Almeida, declamando a grandeza do homem, iria escrever: “Bandeirantes, por vós nessa jazida / Velam as pedras que esta morte é vida”.

Era um incentivo para que Campinas não se dobrasse às vicissitudes da política dominante. Um brado de orgulho e fé na grandeza de um povo.

Mas, nos três anos seguintes, o bandeirante, o homem de crença, de novo, iria sofrer outro profundo golpe em sua crença de cidadão livre.

Exatamente em novembro de 1937, rasgando outra vez a Constituição, que, por decorrência da imposição resultante da Revolução de 32, fora outorgada ao Brasil em 1934, o mesmo Getúlio Vargas viria decretar à nação o abjeto Estado Novo, de que resultou a suspensão de todos os direitos e garantias individuais. Momento em que o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), dirigido por Lourival Fontes, rastreando o pensamento do homem livre, censurava a imprensa, enquanto a polícia de Felinto Muller impunha um novo e irônico conceito do direito de agir. Uma definição de liberdade extremada entre duas preposições – de e para. O que importava em dizer que, no jornal, ironicamente, tínhamos plena liberdade “de” pensar, mas nenhuma “para” expressar. Uma traição desprezível aos direitos humanos e uma afronta à dignidade do ser.

Se a sombra dos esbirros de Getúlio tinha o poder de enuviar a fala, não tinha, todavia, o dom de apagar a crença.

A história se compõe de fenômenos simultâneos, em que se enredam a crença do homem e a visão de um povo. Em cada fase passam-se fatos, embora nem sempre contemporaneamente compreendidos, mas conjugados a substratos psicológicos que determinam o comportamento coletivo.

Foi isso que ocorreu em Campinas naquele fim de década. Amordaçado em seus direitos de afirmação, o homem político, sem perceber, conduzido pela lei da compensação, voltou-se imperativamente para a afirmação de sua grandeza.

Consubstanciando-se em intérprete do difuso sentimento coletivo, o jornalista João Batista de Sá, mais conhecido nas lides da imprensa como Jolumá Brito, firmado apenas em hipótese levantada, na primeira metade do século XIX, em um dos Almanachs que, naquele longínquo tempo, Ricardo Gumbleton Daunt costumava publicar –, deliberou que Campinas havia sido fundada por Barreto Leme no ano de 1739.

Curioso é que, aos olhos dos especialistas, dos pesquisadores de nosso passado, dos verdadeiros historiadores, a eleição da data não tinha qualquer lastro cartorial, tanto que o próprio Jolumá, em artigo datado de 3 de agosto de 1939, assim confessa:

“Há pouco tempo, doutos membros do Instituto Histórico de São Paulo pretenderam que Campinas não tem duzentos anos, que as comemorações de seu bicentenário de fundação, que hoje se iniciam sob o mais intenso entusiasmo do povo herdeiro das mil tradições que a terra campineira guarda orgulhosamente em seu seio, que as festas de culto ao seu passado são extemporâneas”.

Mas, em seguida, replica:

“Quando, talvez, os ilustres antepassados daqueles que hoje ocupam um lugar de consócio na mais alta guardadora de todas as glórias de nossas vilas, dos nossos municípios, de nossas cidade, e, afinal, de nosso Estado, não pensavam sequer no fastígio de nosso torrão, já o Dr. Ricardo Gumbleton Daunt, o orgulhoso herdeiro da família Tracy da Inglaterra, que desde 1847 pertencia ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, autoridade, portanto, incontestada, escrevera a memória dos PRIMEIROS TEMPOS DE CAMPINAS, fixando pela tradição de que Campinas nunca se apartou no seu passado, que em 1737 o antigo bairro de Anhumas era cultivado por José de Souza Antunes etc.”.

Como se vê, um posicionamento ufanístico sem lastro documental, historicamente vago, que todos aceitaram, aplaudindo até o estilo gongórico do tonitruante texto de abertura do mencionado artigo de fundo (atual editorial) publicado pelo Diário do Povo, a 3 de agosto de 1939:

“Foi ao clarão dos primeiros raios de sol mordendo a ramaria verde das árvores frondosas dos antigos campinhos de Mato Grosso, que, há duzentos anos passados, as plantas dos pés abençoados de Barreto Leme vieram beijar o solo sagrado desta terra, cujo destino grandioso havia de atestar aos pósteros que o fundador desta cidade tinha o ânimo varonil dos bandeirantes. Rasgadores de florestas, planta dores de cidades. Não demos vasa ao sentimentalismo daqueles que, hoje, estremecem ao pensar nesse passado pleno de vitórias, cujos flósculos, se foram de Campinas, pertencem, hoje, à coroa de glória do Brasil”.Eis aí, no emaranhado das metáforas, subtraindo-se à censura do DIP, uma cidade a expor aos olhos da ditadura o seu papel de força atuante da nação. Manifestação quase inconsciente de suas crenças, de seus latentes anseios de liberdade. Campinas permanecia insciente no erro histórico, mas proclamava aos céus a grandeza de sua gente.

Essa afirmativa não é retórica. Ela provém de um homem como eu que, então, era o repórter encarregado de promover a cobertura jornalística de todo o evento. Comemorações que, como já disse, se estenderam ao longo de cinco meses, de agosto a dezembro de 1939.

É surpreendente descobrir como a emoção hipnotiza o homem. O erro histórico era flagrante, mas ninguém se importava em dar conta do equívoco, ainda que a cidade fosse uma conjugação de grandes e lúcidas inteligências, como Euclides Vieira, o prefeito que seria, mais tarde, senador da República; Nelson Omegna, fúlgida cultura, professor de sociologia, orador ímpar, que se tornaria depois deputado federal e ministro do Trabalho; José Carlos de Ataliba Nogueira e Lino Moraes Leme, professores de direito nas Arcadas; dom Francisco de Campos Barreto, bispo diocesano; Luso Ventura, Paranhos Siqueira e Júlio Mariano, expoentes do jornalismo, Joaquim de Castro Tibiriçá, futuro prefeito, presidente da comissão de festejos e outros tantos nomes, apenas para exemplificar.

É um mistério essa imanência de percepções insuspeitas no espírito do homem político ou religioso. Sentimentos intraduzíveis que, mesmo sob a luz de indisputável realidade, o leva a resistir à plenitude da razão. Bem que o citado Gustavo Le Bom, estudando a psicologia das revoluções, há mais de um século já advertia: “Quando a personalidade normal é desagregada sob a influência de fortes acontecimentos, ocorre a aquisição de uma intensa crença. Ela passa a orientar todos os elementos do entendimento, como o ímã agrega em curvas regulares o pó de um metal magnético”.

Naquele momento os fundamentos do Instituto Histórico contrários à infundada concepção cronológica, em que pese a frágil contestação do jornalista, estavam largamente difundidos em moldes que não permitiam dúvida quanto à sua impropriedade. A constatação era altissonante. Apenas ninguém ouvia. Entre a lenda e a razão, venceu a saga. Envolvendo homens. Homens agregados em curvas magnéticas pelo ímã das emoções.

Os exemplos foram muitos.

Integrando-se com entusiasmo às comemorações, numa promoção do Centro Acadêmico 11 de Agosto, o Dr. Antônio Cesarino Jr., que antes fora lente de história e geografia no Culto à Ciência e era na ocasião titular da cadeira de direito do trabalho nas Arcadas, pronunciava lá mesmo, na Faculdade de São Paulo, uma conferência sob o tema: “Campinas, seu passado e seus homens ilustres”.

Era a alma do campinense que, transudando da dignidade do ser, diante do regime opressor, protestava com a liberdade permitida à inteligência para afirmar a grandeza de sua gente. Ninguém ficou imune, como bem evidencia o noticiário da imprensa diária, cujas manchetes e matérias de 5 de agosto a 3 de setembro foram estudadas. Transcrevo apenas duas, para não enfadar o leitor, mas para que tenha ideia da amplitude dos festejos.

Dia 6 de agosto: Visita de Jornalistas às obras de Exposição-Feira.

“Os jornalistas campineiros e representantes da imprensa da capital estiveram ontem em visita às obras de organização da Exposição-Feira comemorativa do bicentenário de Campinas que estão se realizando nos terrenos do Hipódromo Campineiro. Além dos militantes da imprensa, estiveram no local, o Dr. Euclydes Vieira, prefeito municipal; Dr. Luiz Albino Barbosa de Oliveira, presidente da Comissão de Festejos; Dr. Horácio Antonio da Costa, inspetor geral da Companhia Mogyana; Dr. Aloísio de Menezes Greenhard, membro do Conselho Federal de Comércio Exterior e diversos membros da comissão de festejos, além de convidados e pessoas de destaque em nossa sociedade…
… Merece especial destaque o pavilhão Bavária que será um bar com apresentação musical. No final de uma das avenidas, está sendo levantada uma estação de rádio com auditório. É pensamento dos dirigentes da feira trazer para Campinas nomes em evidencia nas antenas de São Paulo, Rio e até de Buenos Aires…
… Uma fonte luminosa completará a beleza do local, que será, por certo, ponto forçado de atração para todos que quiserem compartilhar das festividades com que Campinas assinalará a passagem de seus duzentos anos.”.

Dia 3 de setembro (domingo): dia da inauguração.

“Uma área de 100.000 metros quadrados – A colaboração da Cia. Mogyana, da Secretaria da Agricultura e outras instituições – Iluminação feérica”.

Não sei, mas talvez, à moda de Graciliano Ramos, eu represente, neste instante, o último dos viventes desta terra, a quem foi dada a faculdade de, a um só tempo, testemunhar e participar ativamente das comemorações do primeiro bicentenário.

E a exerci impelido pela profissão, pela circunstância de ser, naquele instante, repórter do Diário do Povo, que era o mais antigo jornal da cidade.

Jovem, aos 20 anos de idade, mergulhado naquela multidão longínqua de cidadãos crentes, sequer desconfiava, reconheço hoje, das causas fundamentais acima descritas, aquelas forças imperceptíveis que moviam o ânimo da população marcada por anseios insuspeitos. Integrado no espírito coletivo, esqueci o senso crítico e abracei a lenda para cumprir a realidade que me fora imposta: fazer a cobertura jornalística dos festejos. Só mais tarde, quando, pelos rumos que o destino impõe à vida, já me encontrava separado das lides profissionais da imprensa, é que fui percebendo a mecânica dos sentimentos da cidade.

É difícil para quem não conviveu com aquele momento incomum perceber os matizes emocionais que impediam distinguir o verdadeiro do falso. Momento que é um paradoxo, um silogismo negativo que põe a alma do homem em conflito contra si mesmo. Do homem que escreve sua própria “estória” negando uma realidade histórica. Felizmente, resta, para visão do que foi, o registro que ficou esquecido nas páginas da imprensa, memória pétrea que reflete o comportamento de uma população.

Referência bibliográfica:

COSTA, Rubem. Bicentenário de Campinas: a saga que a cidade amou, 1739 – 1939. Campinas: Komedi, 2013.

 

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