Cristiane Fernandes Lopes Veiga – historiadora, professora. Sócia correspondente do IHGGC em Votuporanga, SP.
Resumo:
A década de 1820 foi marcada por mudanças importantes na vida de homens e mulheres, livres ou não, naquele que foi durante mais de três séculos o Império atlântico português. Neste texto lançamos um olhar sobre a participação feminina no cotidiano da antiga Vila de São Carlos – atual Campinas – descrita nas listas nominativas dos habitantes da capitania de São Paulo.
Free women in Campinas during the Independence year (1822)
Abstract:
The 1820 decade pointed out important changes in the lives of men and women freed or enslaved living in what was the Portuguese Atlantic Empire. In this work, we propose to look at the women’s participation at the Vila of São Carlos – actually Campinas city – everyday life described in the nominative lists of the inhabitants of the “capitania” of São Paulo.
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Nos primeiros anos, desde a primeira ocupação até meados do século XIX, Campinas passou de produtora de gêneros de subsistência a importante centro exportador de açúcar e, mais tarde, de café. Em 1774, o bairro de Campinas do Mato Grosso, antes pertencente à paróquia de Jundiaí, foi elevado à freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas de Mato Grosso. Passados 23 anos, a freguesia tornou-se vila de São Carlos. O impulso inicial do povoado, que serviu de pouso de tropeiros cujo destino eram as minas de Goiás e Mato Grosso, atendia às necessidades da Coroa portuguesa: ocupar o território, fornecer gêneros para alimentar as tropas que iriam defender os domínios no sul, bem como para aqueles que seguiam para as minas.
Desde finais do século XVIII, a vila dedicava-se à cultura da cana-de-açúcar para a exportação de açúcar. As lavouras de milho, feijão e arroz estavam por toda parte, assim como os pequenos lavradores que delas cuidavam. Escravizados e pessoas livres circulavam pelos bairros da vila. No início eram poucos, mas com o tempo passaram a compor uma população heterogênea de africanos cativos, mulatos e pardos escravizados ou livres, portugueses e brancos nascidos na vila ou acolhidos por ela para morar ou trabalhar.
Em 1800, as lavradoras produziam basicamente milho e feijão, eram pardas e naturais de vilas e de cidades da capitania. Dentre as 42 chefes de domicílio, 31 delas não possuíam escravos, apenas D. Gertrudes Camargo Penteado, natural de Cotia e mãe de seis filhos, era senhora de engenho. Viúva aos 40 anos, tinha o maior plantel de escravos dentre as chefes de domicílio da vila: sete cativos que produziam açúcar branco, mascavo e aguardente, além de mantimentos para o gasto.
A vida na vila de São Carlos, no ano de 1822, sofreu ares de mudança com a chegada da cultura do café, alguns anos antes. Homens e mulheres que ali viviam e trabalhavam continuavam a ser basicamente agricultores, apesar de o núcleo urbano contar com músicos, sapateiros, pedreiros, ferreiros, carroceiros entre outras ocupações descritas nas listas de população da vila.
Desde 1765, o governador e capitão-general da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, pedia aos capitães-mores que fornecessem listas dos habitantes das vilas e seus domicílios. Com estas listas em mãos, os representantes da metrópole pretendiam conhecer melhor, tanto a produção, quanto o contingente de homens adultos que estariam aptos a servir à Coroa, bem como aplicar os impostos referentes às culturas da colônia. Estes mapas de população serviam também como uma forma de orientar com maior precisão a ocupação do território e garantir sua defesa.
Durante a segunda metade do século XVIII, se intensificou o esforço das autoridades lusas em promover a agricultura de gêneros de subsistência, uma vez que sem eles não se poderia alimentar nem cativos, nem colonos, nem as tropas que garantiriam a ocupação do território atlântico luso. O esforço para desenvolver essas culturas tinha o objetivo de garantir o domínio do território que ganhou impulso com a ascensão do Marquês de Pombal ao poder.
Por anos, incentivar o plantio de lavouras de gêneros de subsistência foi uma preocupação permanente dos sucessivos monarcas e administradores portugueses. Mas os altos preços do açúcar, principal produto de exportação do período, sempre deixava pouco espaço para o cultivo de outros produtos agrícolas, provocando vários períodos de fome durante o período colonial. Em 1768, uma carta do capitão-mor dos Prazeres em Iguatemi para o Morgado de Mateus, ilustra as dificuldades que as autoridades enfrentavam durante as expedições aos sertões da capitania. Ele informava que havia plantado roças de milho e pedia o envio de farinha, toucinho e feijão, pois os produtos que havia levado, estragaram.
Martinho de Melo e Castro e D. Rodrigo de Souza Coutinho, sucessores de Sebastião José de Carvalho na condução dos negócios da metrópole, continuaram a fomentar a agricultura em toda a América portuguesa baseados em princípios fisiocratas. Eles deveriam equilibrar a necessidade de obter o máximo de lucro com os produtos de exportação sem deixar de estimular gêneros de subsistência. D. Rodrigo incentivou o envio de material impresso para ajudar os produtores brasileiros a aumentar sua produção e, sob os auspícios da tipografia do Arco do Cego, promoveu a publicação do livro O fazendeiro do Brasil, editado por Frei Veloso. Mas, os plantadores não deram a atenção devida a essa obra.
Em 1800, em carta ao capitão-general que foi indicado para a capitania de São Paulo, Bernardim Freire de Andrada – que nunca assumiu -, o príncipe regente D. João recomendava a elaboração de quadros estatísticos sobre o estado da povoação, culturas, produção e balanço anual para ser enviado ao reino, bem como o incentivo à cultura da pimenta, canela, cânhamo, milho, feijões, legumes e hortaliças.
Desde as primeiras listas de população produzidas em 1765 na capitania, as informações são desiguais de ano para ano. Nem sempre os responsáveis primavam pela acuidade e uniformidade de dados, tais como: o nome, a idade, a cor, a naturalidade e a ocupação. As dificuldades eram muitas na coleta destas listas. A primeira delas era o recenseador entender as instruções para relatar o que se deveria registrar; depois, chegar até o domicílio; superar a desconfiança dos moradores dos fogos ou domicílios; registrar idades que talvez nem os membros do domicílio sabiam e mesmo anotar quem eram “pardos” ou “brancos” nesse período.
Apesar de todos estes problemas, as listas nominativas da vila de São Carlos nos fornecem informações a respeito do cotidiano daqueles que ali moravam. No ano da Independência, a vila estava dividida em 6 companhias de ordenança e tinha 720 fogos (unidades produtivas ou domicílios), deste total 120 (16,6%) eram chefiados por mulheres, sendo 71,7% (86) delas viúvas, 12,5% (15) casadas, mas com marido ausente ou não declarado, e 15,8% (19) solteiras. Destas, 63 (53%) vêm descritas como brancas e 57 (47%) como pardas. Outra informação a ser destacada, é a naturalidade destas mulheres. Apenas 15% (18) eram nascidas na vila de São Carlos, ou seja, 85% das chefes de domicílios em 1822 vieram de fora da vila, de cidades como Itu, Santana de Parnaíba, São Paulo, Jundiaí, Nazaré, Atibaia, Araçariguama, entre outras localidades da capitania. Por fim, quanto à ocupação, 1/3 delas eram agricultoras (ou viviam de lavoura), 26 costureiras, 13 fiandeiras, 8 viviam de jornais ou de seu trabalho, 7 eram senhoras de engenho, 4 tecelãs, 5 foram descritas como “nada”, 4 tinham venda, uma era quitandeira e uma era moradora nova e não declarou ocupação ou não tinha colhido ainda – este pode ter sido também o caso daquelas mulheres cuja ocupação vinha descrita como “nada”.
Desta forma, no ano da fundação do Primeiro Império Brasileiro, a vila de São Carlos era formada por mulheres que em algum momento de suas vidas chegaram para morar e trabalhar naquela que seria a Princesa do Oeste Paulista. Costureiras, tecelãs, fiandeiras, donas de vendas, ou mulheres que viviam de jornais (quantia recebida por dia de trabalho) ou de esmolas concentravam-se na primeira companhia. Joana Rodrigues morava na referida companhia, era tecelã e mãe de seis filhos. Viúva aos 40 anos e natural de Santo Amaro, tinha uma agregada de 45 anos. Não possuía escravos.
A ausência de escravos era uma realidade para grande parte das chefes de domicílio da vila. Esse era o caso de Brígida Gomes de 60 anos, branca, viúva e natural de Mogi Mirim. Sem filhos, sem escravos e sem agregados precisava sobreviver com o fruto de seu trabalho como fiandeira. Assim era a vida da maioria das mulheres arroladas na primeira companhia: algumas viviam de pedir esmolas, como Luciana, de 35 anos, solteira, de Jundiaí, não tinha sobrenome, mas dividia seu domicílio com Joana Pires, ambas viviam de esmolas. Uma prática que seria regulamentada pela Câmara de Campinas na segunda metade do século XIX.
O comércio de gêneros alimentícios também ocupava algumas mulheres. Mariana Rodrigues era quitandeira, tinha 28 anos, era casada e natural da vila, tinha dois escravos. O marido não aparece no fogo. Já Ana Maria, de 28 anos, veio de Itu e era mãe de um menino e uma menina, de dois anos e de seis meses, respectivamente. Viúva, sustentava os filhos com a venda dos seus gêneros.
A presença de muitas viúvas era comum nas populações do passado. A preponderância da viuvez entre as mulheres pode ser atribuída a alguns fatores: a elevada taxa de mortalidade entre homens; a ida desses maridos para locais desconhecidos sem nunca mais voltarem, levando as esposas a se dizerem viúvas; ou a baixa taxa de recasamentos entre viúvas. Estas mulheres, de fato, desfrutavam de maior liberdade durante a viuvez e um novo matrimônio lhes colocaria sob a tutela de outro homem. Consequentemente, muitas das mulheres viúvas optariam por permanecer sós em domicílios compostos por filhos, alguns com a presença de agregados e escravos.
Os fogos da Vila eram compostos em sua maioria por famílias nucleares: chefe/ mãe e filhos. Em 80% (97) deles havia pelo menos um filho morando com a mãe e em apenas 28% havia agregados. Esses agregados poderiam ser pessoas com algum vínculo familiar ou afetivo com a chefe do domicílio, arrendatários de terras que serviriam como mão-de-obra na falta de escravos e filhos. Porém, é mais provável que as mulheres da vila de São Carlos tenham usado seus filhos como mão-de-obra, pois a maioria não possuía escravos nem dispunha de agregados para ajudá-las.
Na futura cidade de Campinas os escravos estavam nas mãos de poucas pessoas. Em 74% (89) dos domicílios chefiados por mulheres não havia nenhum escravo, enquanto que apenas sete proprietárias concentravam 86% dos escravos em planteis com mais de 10 cativos. Todas eram senhoras de engenho, apenas uma dentre elas era natural da vila, as demais nasceram em Itu (5) e em Santo Amaro (1). O menor plantel encontrado foi o de Margarida de Arruda, natural da vila, com 11 cativos: três homens, três mulheres e cinco crianças. Já D. Ana Matildes de Almeida, natural de Itu, viúva aos 37 anos, tinha oito filhos e nove agregados arrolados em seu domicílio. Seu engenho contava com os braços de 81 escravos e mais quatro de seus agregados, que se dedicavam à fabricação de açúcar e de capados, além de mantimentos para o sustento da casa.
A concentração da fábrica e do plantel nas mãos da viúva era comum entre grandes proprietárias: as senhoras de engenho, enquanto meeiras dos maridos falecidos, tinham direito à metade dos bens durante a partilha. Durante a divisão procurava-se preservar o patrimônio sempre que possível, mantendo indiviso o engenho que precisava de mão-de-obra e de máquinas para funcionar. Estando a fábrica sob a posse de uma única pessoa, evitava-se a pulverização dos bens familiares, principalmente do engenho, nas mãos dos herdeiros.
As senhoras de engenho concentravam o maior número de escravizados em planteis empregados na cultura de cana e fabricação de açúcar e aguardente para exportação. Porém, assim como as pequenas proprietárias com ou sem escravos, elas precisavam dedicar alguns membros desses planteis às lavouras de alimentos. Anexados às listas de população de 1805, 1810, 1812, 1816, 1812, 1822 e 1826 (que se refere à produção de 1825) há mapas de produção onde estão descritos os gêneros consumidos e exportados na vila.
As variações registradas nesses mapas demonstram como a economia da vila mudou com o tempo, bem como o interesse da administração metropolitana e, depois, dos dirigentes do Império. Em 1798, a paróquia importava de Portugal panos de lã e de algodão, chapéus, meias, bretanha e sal. Em 1805, registrou-se apenas a importação de vinhos de Lisboa, panos de linho e de lã. Nesse mesmo ano, produzia-se algodão, açúcar, aguardente, arroz, madeira, couros, café, milho, feijão, trigo, mandioca, fumo, farinha e toucinho. O algodão, a madeira, o café, a mandioca e o fumo foram totalmente consumidos na vila.
O registro desses produtos permaneceu relativamente uniforme até 1822, quando foi registrado na paróquia a produção de arroz, milho, feijão, farinha, toucinho, amendoim, café e porcos, além de algodão, fumo e mamona. Toda a lavoura de algodão, fumo, amendoim, mamona e café serviu ao consumo da localidade. Quanto aos outros produtos, parte do excedente foi vendida para fora da vila. O açúcar e a aguardente eram os principais gêneros exportados. Segundo o mapa do ano supracitado, a paróquia vendeu 162.000 arrobas de açúcar, tendo sido consumidas ali 1.284. Entretanto, em 1825, declarava-se apenas a produção de açúcar, café e aguardente plantados e fabricados nos engenhos de açúcar, demonstrando uma clara preocupação em se registrar as culturas de exportação da paróquia.
Do início do século XIX até o alvorecer da Independência, a futura cidade de Campinas passou por modificações profundas até se tornar um importante centro econômico e político na Primeira República. O perfil socioeconômico da maioria das chefes de domicílio indicava uma tendência de mudança: viúvas que vinham de várias localidades da província, passaram gradativamente de uma vida concentrada na lavoura de gêneros para subsistência baseada, sobretudo, na mão de obra familiar, a conviver com senhoras de engenho e um número crescente de escravizados os quais dificilmente poderiam ser comprados por estas mulheres com o excedente de suas roças de milho, feijão e arroz. Criava-se, assim, uma clara diferenciação econômica e social que se intensificaria com o passar do tempo, mas que revela a efetiva participação das mulheres livres no cotidiano desta sociedade.
Fontes:
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PROJETO RESGATE. ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Carta de 7 de julho de 1800, doc. 3825, cx. 49. Disponível em: <http: / / resgate.bn.br / docreader /docmulti.aspx?bib=resgate&pagfis>. Acesso em 5 de setembro de 2022.
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SILVA, Maria Beatriz N. da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz,1984.
Texto interessante! Parabéns.
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Parabéns pelo artigo!
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Parabéns, Cristiane. Texto instigante, e desafiador. Certamente, ainda há muito a revelar sobre a participação das mulheres nas atividades econômicas. Desejo sucesso às suas pesquisas.
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