Danças indígenas, os ballets na ópera de Carlos Gomes

The ballets in Carlos Gomes’s opera

Maria Luiza Silveira Pinto de Moura (in memoriam) – escritora, bibliotecária do CCLA, Patronesse da Cadeira 37 do IHGG Campinas, e Décio Silveira Pinto de Moura (in memoriam) – escritor, psiquiatra. 

Ao chegar à Itália, desejoso de aperfeiçoar conhecimentos especialmente operísticos, Carlos Gomes já encontrou a grande ópera acrescida de ballet. A ópera italiana já havia aceito a idéia nascida na França, inovação que conquistou grande êxito.

Quando se tecem comentários sobre o ballet nas óperas de Carlos Gomes, o primeiro estímulo é provocado por O Guarani, O Escravo e pela dança indígena do Colombo, desde que tais danças jogaram em um mundo onde éramos desconhecidos, temas ligados ao nosso povo e problemas somente aqui vivenciados.

O entusiasmo que nos possui para escrevermos sobre o tema reside em que esses bailados, que poderiam ser rejeitados pela platéia, foram não somente aceitos como admirados. A audácia do nosso maestro, além de glorificar temas brasileiros, contribuiu com algo novo que haveria de crescer no estudo da dança e da corporeidade.

Muitas acusações injustamente se fizeram a Carlos Gomes por ele realizar-se na Itália, como se ele pudesse ter opção. Em todas as atividades, quem desejasse aprender, aperfeiçoar-se, ou mesmo ser respeitado em pesquisas, era imprescindível estudar na Europa. Também na música, portanto.

Mas, os ballets de O Guarani, O Escravo, e a dança indígena de Colombo provam o patriotismo do grande maestro e a eterna ligação ao Brasil, aonde estava preso pelo coração.

E claro que todos os ballets nas diferentes óperas, por determinação da metodologia de trabalho, deveriam estar presos em um contexto, e esse era dado pelo enredo escolhido. Como vemos, Carlos Gomes teve liberdade de escolha para livros de autores estrangeiros. O coração o levou, pelo menos por três vezes, a temas brasileiros.

A ausência da pátria dava-lhe sofrimento pela saudade do berço em que estava adaptado. Assim qualquer fenômeno lhe lembrava o Brasil. E entre todos os assuntos que já possibilitavam focalizar a pátria, escolhe o tema indianista, visivelmente orgulhoso por saber-se bisneto de uma indígena. Entre os índios, seu bisavô seria chamado Cariboca (cari – branco; boc ou boca – procedência, origem). Portanto essa evidência não era tão próxima. Contudo louvava-se dela e soube dignificá-la, escolhendo enredos onde os índios são dignos e heróis. Aqui, vê-se que ainda foi maior homem que compositor.

E digno de nota que Carlos Gomes poderia, sem risco, colocar o ballet ligado às danças da cultura branca, pois as estórias não focalizavam somente índios. Mas, ele conseguiu antever a grandeza da contribuição, colocando danças desconhecidas e músicas em ritmos também ignorados.

Em estudo publicado por João Itiberê da Cunha, lê-se observação sobre a dança dos tamoios: Pode ser (e é mesmo provável) que não tenha nada de tamoio, mas é interessantíssimo… Sem sermos especialistas em danças indígenas, todavia, somos concordes à observação e compreendemos como natural a conduta do compositor. Senão vejamos: O ballet propriamente dito depende menos da responsabilidade do compositor do que do responsável pela coreografia. Ao assisti-lo, o espectador guarda lembrança geral do espetáculo e não de cada movimento corpóreo. Já não ocorre o mesmo com a música, que deve agradar quanto a linha melódica, andamento, harmonia e ritmo. Cada compasso é mais facilmente notado quando destoa.

Nessa razão, Carlos Gomes teria forçosamente que apresentar para a Europa uma música que caricaturasse a indígena, estilizando-a como tradução para a cultura branca. Nosso maestro não estava apresentando ballets para uma platéia de índios, mas para o público do Teatro Alla Scalla de Milão.

Naquela época a Europa já começava a viver a transformação cultural que a industrialização provocaria. Em 1848 já estava publicado o manifesto comunista de Friedrich Engels e Karl Marx, como logo mais tarde surgiria a Rerum Novarum do Papa Leão XIII, os três homens que primeiro compreenderam as modificações da cultura e da vida ocidental.

Podemos admitir que o grande povo ainda não tivesse entendimento para o fenômeno, mas sabemos que a revolução industrial modificou os costumes, começaram as lutas trabalhistas, ideologias novas, tudo o que havia de proporcionar em cada qual vivências, e estas se manifestaram na transformação do modo de sentir o mundo, na exigência de emoções mais rápidas e variadas.

Basta a observação de que em uma ópera não haveria mais lugar para a música modal, cheia de melismas e sem ritmo. Entretanto, o cantochão nascera na Europa. Assim sendo, a música autêntica dos índios não seria tolerada. É música criada em meio físico, onde a vida na floresta, a tranqüilidade dos rios, os cantos despreocupados dos pássaros conduzem à composições musicais quase comparáveis a cantus planus e as danças em movimentos lentos e estereotipados.

Em 1955 tivemos oportunidade de ouvir uma coleção de 21 discos, ainda em acetato, que uma pesquisadora gravou entre os índios, provavelmente Bororos, e desejava vendê-la ao Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA). Não havia verba na entidade e não conseguimos que se cotizassem pessoas para adquirí-la e doá-la ao Centro. Mas, para avaliar a compra tivemos oportunidade de ouvir. Eram músicas que cantavam fenômenos da natureza, tais como a alva, o crepúsculo e outros, assim como a morte de elementos da tribo (em ritual da morte), e a morte festiva de inimigos, a que se junta a comemoração da vitória e o triunfo.

Impressionou-nos o ritual da morte de membros da tribo, em que a mesma melodia é tocada em duas flautas afinadas em intervalo de quarta, o que tornava muito mais triste a música. As demais eram um tanto monótonas.

Carlos Gomes colocou nos ballets a música de sua autoria e, não qualquer transcrição autêntica. Proporcionou ao mundo o conhecimento de instrumentos indígenas que ele mesmo providenciou, ritmos até então lá desconhecidos e, também, conhecimento de visu da indumentária, tudo o que favoreceu o aparecimento no palco de uma dança característica, isto é, etnológica. A coreografia das danças não nos foi dado a conhecer, como é óbvio, por terem sido levadas em teatros europeus e na época em que não éramos nascidos. A algumas versões recentes levadas no Rio de Janeiro e em Campinas assistimos e não foram tão semelhantes por falta de paradigmas. Com relação a essa parte, se houve sugestões do compositor foram dadas fora do Brasil.

Mesmo que algum de nossos antepassados tivesse assistido, não nos conseguiria transmitir por comunicação verbal. Aliás, nem seria válido porque, para marcação no espetáculo, os coreógrafos conduzem-se ao seu alvedrio. Em tempos atuais será possível a realização de filmagem para guia futuro. Os que tivemos oportunidade de assistir tinham beleza pela indumentária, pelos instrumentos presentes no palco e pelo número de elementos no corpo de bailado; os movimentos não eram tão amplos e não conseguíamos identificar os passos como modificação da dança clássica de onde os diversos tipos de bailados tiraram origem. Mas, assim mesmo com auxílio do colorido da indumentária e das pinturas do corpo, a alegoria sempre alcançou o nível do belo.

Nota do editor: nos posts seguintes os saudosos autores nos dão o prazer de conhecer suas impressões sobre sete obras em que Carlos Gomes inseriu no ballet o apelo regionalista ou étnico. 

Referência bibliográfica: 

MOURA, Maria Luiza S. Pinto de e MOURA, Décio Silveira Pinto de. Os ballets na ópera de Carlos Gomes. (s.d.). Ilustrações de Egas Francisco. Campinas : Cia. Aluminis. 62p. (pp. 1-9).

4 comentários

  1. Magnifico! sem palavras pela postagens!! Magnifico e aplausos pelos saudosos amigos!! Aula ótima! Obrigada por compartilhar ! Parabéns IHGGC

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    1. Para além das composições musicais, este cuidadoso artigo nos anuncia um Carlos Gomes pedagógico que nos ensina, como o fez a uma Europa novecentista sedenta de modernidade, o valor da cultura brasileira, sobretudo pela beleza dos cantos de nossos pássaros, graciosas danças e indumentária dos nossos indígenas, que por vezes, ainda habitam em nós! Belíssimo trabalho dos autores. Saudades de Maria Luiza e seus conhecimentos sobre Campinas.

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