Leopoldo Amaral, cronista e historiador de Campinas

Leopoldo Amaral, chronicler and historian of Campinas, SP, Brazil.

Por Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, advogado. Titular da Cadeira 3 do IHGG Campinas.

Também foi músico. Ele próprio registra a sua participação, tocando trompa na memorável orquestra da Sociedade Carlos Gomes, de curta, porém intensa, trajetória no concerto-baile realizado em 1º de maio de 1881, nos salões do Clube Semanal de Cultura Artística. Compositor, ele figura como um dos nomes ilustres da arte musical, na Campinas do final do século XIX, como registra Lenita Waldige Mendes Nogueira, em sua valiosa obra Música em Campinas nos últimos anos do Império. Uma de suas composições de maior popularidade foi a mazurca Vespertina; um quarteto para cordas de sua autoria encontra-se no arquivo de manuscritos musicais do Museu Carlos Gomes.

Mas o enfoque que aqui será dado ao campineiro Leopoldo Augusto do Amaral Gurgel (nascido em Campinas, em 20/12/1856, onde faleceu, em 31/5/1938) será o de seu trabalho como historiador. Historiador muitas vezes quase involuntário, visto que suas valiosas contribuições para a construção da história da cidade, de seus personagens, de suas efemérides, de sua arquitetura, monumentos e instituições, com frequência nascem elas, de uma maneira inteiramente natural, de suas deliciosas crônicas em torno de tudo quanto ele teve oportunidade de presenciar e vivenciar.

É ele o articulador do importantíssimo almanaque A Cidade de Campinas – 1901, precioso retrato, em seus textos e ilustrações, do que era a cidade no alvorecer do século XX. É autor, sobretudo, de Campinas recordações, livro editado em 1927 pela Seção de Obras do jornal O Estado de S. Paulo, reunindo as crônicas e memórias escritas ao longo daquela década.

Nesses escritos, Leopoldo Amaral faz desfilar ante nossos olhos toda uma infinidade de figuras célebres que traçaram a história de Campinas ao longo daquele período decisivo para a definição do perfil da cidade, aqueles anos que se estendem entre as três últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte. Mostra-os, inclusive em sua intimidade, pois Amaral, como jornalista e ativo integrante da vida cultural, social e política da urbe, teve oportunidade de conviver com todos eles, de lhes testemunhar momentos de humor, de entusiasmo, de desalento.

Aí nos encontramos, em mais de um momento, com Carlos Gomes, particularmente em seu primeiro retorno à cidade, após as glórias conquistadas na Europa, sendo recebido com festas e retribuindo com igual euforia; com os integrantes do Clube Republicano, Campos Salles e Francisco Glicério à frente, nas reuniões em que apregoavam ardorosamente os novos ideais, prestes a ser consagrados no plano político; Coelho Netto e sua decisiva atuação como animador cultural, promovendo reuniões de intelectuais em sua residência, ajudando na fundação do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), escrevendo uma peça teatral (Pastoral), destinada a ser encenada na cidade e que se constituiu num dos espetáculos marcantes do velho Teatro São Carlos; o futuro bispo Dom Nery, surpreendido inclusive em sua participação, ainda como estudante do Colégio Culto à Ciência, interpretando o barão de Cotia, numa peça de França Júnior; e César Bierrenbach, Saldanha Marinho, Ruy Barbosa, Santos Dumont, Sara Bernhardt – que aqui chegou para se apresentar no vetusto Teatro São Carlos, no dia 4 de julho de 1886, em trem especial, num domingo de sol deslumbrante e de céu deliciosamente azul, saindo do carro entre grandes demonstrações de júbilo da multidão que a aguardava.

São muitos os eventos sociais registrados em suas páginas, como os carnavais e os bailes de outrora, as exposições de escravos que ocorriam na então Praça da Matriz, as Festas do Divino que se encenavam no Largo do Rosário.

Também vão registradas as instituições, dos mais diversos matizes, criadas no decurso daqueles anos pelo espírito empreendedor dos campineiros; o CCLA, o Colégio Culto à Ciência, o Liceu Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora, a Santa Casa de Misericórdia, a Sociedade Portuguesa de Beneficência, o Circolo ltaliani Uniti, a própria Sociedade Carlos Gomes, de início mencionada.

Bem como sua arquitetura e seus monumentos, que ainda hoje figuram entre os símbolos permanentes da cidade: a épica edificação da Catedral, então Matriz Nova; o monumento-túmulo a Carlos Gomes, os monumentos a César Bierrenbach, a Thomaz Alves, a dom João Nery, a Matriz Velha, a Igreja de São Benedito.

Nas suas descrições da Campinas de outros tempos, Leopoldo Amaral procura imprimir um caráter de totalidade, sem nada excluir movido por eventuais preferências políticas ou ideológicas. Assim, relata-se as profundas repercussões causadas na cidade, em 15 de novembro de 1889, pela notícia da Proclamação da República, a partir do recebimento do telegrama endereçado a Bento Quirino, em sua casa comercial Santos, Irmão & Nogueira, comunicando que Marechal Deodoro à frente da tropa proclamou a República, e, embora adepto incondicional do ideário republicano, é com indisfarçável afeto que relata a visita a Campinas, feita exatos cinco anos antes pela princesa Isabel (13 de novembro de 1884, data memorável na história local). Seu afeto e admiração vêm ilustrados pelo episódio ocorrido no Bosque dos Jequitibás, quando um dos integrantes da comitiva quis inscrever, a canivete, no tronco de jequitibá, as iniciais de Sua Alteza e foi por ela admoestado, expressando o seu horror a tudo quanto é ofensa à natureza.

Da mesma forma, se são abundantes as referências às figuras ilustres da elite campineira, não faltam alusões a personagens mais modestas, quando não obscuras e esquecidas, integrantes de classes sociais mais humildes. Lembra que no episódio da encenação da Pastoral, as mais diversas classes sociais se fizeram presentes, no elenco e na orquestra de apoio, nesta figurando desde um estimado deputado federal (1º violino), até um modesto artífice (trombone).

É ainda o caso de Vitoriano dos Anjos, o entalhador das magníficas peças de ébano que ainda hoje podem ser admiradas no interior da Catedral de Campinas: Vitoriano dos Anjos viera para Campinas em 1853 […]. O referido artista baiano ficou residindo em Campinas, com sua família, durante o resto de sua longa existência. Aqui, veio a falecer no dia 31 de julho de 1871, decrépito e pobre.

Se, por um lado, no texto dedicado à fundação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, responsável pela construção do estratégico ramal de Campinas a Jundiaí, o empreendimento é atribuído ao esforço conjunto de acionistas representados por capitalistas, lavradores – ou seja, a elite financeira –, vem rememorada, no outro extremo, a figura emblemática de mestre Tito, velho preto africano, que lançou as bases para a construção da Igreja de São Benedito e foi o responsável pelos seus alicerces, de suas primeiras paredes e telhados.

O mestre Tito – (Tito de Camargo Andrade, era o seu nome) gozava de muita estima e popularidade nesta terra. Curandeiro, conhecia como ninguém as raízes de plantas medicinais, das nossas matas e perito aplicador de sanguessugas, era muito procurado por médicos daquele tempo, que preconizavam, como maravilhoso, esse recurso terapêutico, em certas moléstias.

Viera muito moço de seu país distante – África –, trazido como escravo, e aqui foi ele vendido por um traficante qualquer, vindo a ser propriedade do capitão-mor Floriano de Camargo Andrade, que foi tronco de muitas famílias campineiras. Conquistando a estima do seu senhor, mestre Tito conseguiu libertar-se, adotando então o sobrenome Camargo Andrade.

Mestre Tito então concebeu o projeto de edificar uma igreja, dedicada a São Benedito, em terreno anexo a um antigo jazigo e cemitério. Obteve, para esse fim, a concessão de uma licença pela Câmara Municipal e permissão dada pelas autoridades eclesiásticas de São Paulo. Empenhou-se a seguir na coleta de donativos, por meio de subscrições, já de porta em porta, percorrendo as ruas da cidade, revestido de opa, sob os raios ardentes do sol.
Não conseguiu ver consumado o seu projeto: alquebrado pela velhice de seus 80 anos e pela doença, faleceu em 29 de janeiro de 1882. Sua obra seria posteriormente concluída graças aos esforços de uma benemérita, Ana de Campos Gonzaga, nesse empreendimento final contando-se inclusive com a participação do arquiteto Ramos de Azevedo na elaboração da planta da fachada do templo, finalmente inaugurado em 1885.

A saga de mestre Tito é reveladora de que a tenacidade da gente campineira, responsável pela construção de tantos monumentos, templos e instituições, não se constituía em apanágio exclusivo de suas elites, mas se estendia a todos os segmentos da sociedade, inclusive àqueles que emprestaram a sua contribuição, nem sempre reconhecida, de forma obscura e anônima.

Dentre esses construtores da cidade, figura, sem dúvida, a linhagem daqueles que lhes edificaram o perfil cultural e espiritual: um deles é precisamente Leopoldo Amaral, historiador de Campinas.

Referência da foto:

http://pro-memoria-de-campinas-sp.blogspot.com.br/2008/12/personagem-leopoldo-augusto-do-amaral.html

2 comentários

Deixe uma resposta