Africans slavery and abolitionism in Campinas, SP, Brazil.
Por Fernando Antônio Abrahão – historiador, pesquisador. Titular da Cadeira 11 do IHGG Campinas.
No Brasil, o Abolicionismo tomou impulso a partir de setembro de 1871, com a Lei Rio Branco. Popularmente conhecida como a Lei do Ventre Livre, seu teor dava liberdade aos filhos de escravos nascidos dessa data em diante; aos cativos que entraram no país após a Lei de 1831 (que, por influência inglesa, proibiu o tráfico de africanos); e aos cativos que indenizassem seus senhores.
Essa última hipótese seria inviável se o governo não criasse o Fundo de Emancipação, composto de um percentual do imposto sobre o comércio de escravos, conhecido como imposto de meia sisa. Pela Lei Rio Branco, a verba arrecada deveria ser distribuída aos municípios, para se efetuar as indenizações.
Muitos anos depois, em setembro de 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe (ou Lei dos Sexagenários) aperfeiçoou a extinção gradual do elemento servil, ou o que dizia ser. Seu texto determinou, principalmente, a libertação de cativos com 60 anos de idade ou mais, e o preço máximo de indenização a ser paga aos senhores.
Quase três anos depois, a 13 de maio de 1888, a Lei Áurea eliminou o regime de trabalho escravo no Brasil.
Com base nessas leis abolicionistas, especialmente as de 1871 e 1885, presume-se que os registros de ações judiciais para a libertação de escravos devem ser significativos em Campinas, afinal ela foi berço de renomados personagens do movimento republicano e o abolicionismo também foi sua bandeira política, certo? Não foi bem assim.
A nossa análise dos arquivos do Fórum local esclareceu os resultados desse processo gradual de libertação. Lembremos que o rico conjunto documental do Judiciário de Campinas está preservado no Centro de Memória – Unicamp (CMU), que o disponibiliza aos pesquisadores interessados.
Outro apoio ao nosso estudo veio do site de Internet do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que oferece os Censos oficiais do Brasil. Deles interessa aqui saber que, em 1874, a população de Campinas formava-se de 31.397 habitantes, sendo 43,6% cativos; no Censo de 1886, apesar da proximidade com o fim da escravidão, 24,2% da população de 41.253 habitantes ainda viviam sob o regime de trabalho escravo.
Essa grande concentração de escravizados foi acompanhada de intenso comércio local dessa mão de obra. A afirmação está amparada por documentos de outro arquivo preservado e disponibilizado no CMU, o da Coletoria de Rendas, que registra os tipos e os valores dos impostos auferidos no período. O imposto de meia sisa taxava 5% do valor da transação de cada cativo. Se ele ou ela fosse comercializado por R$2.000:000 (dois contos de réis), o
Por efeito da grande população de escravos e de seu largo comércio para suprir de mão de obra as fazendas cafeeiras cada vez mais produtivas, a arrecadação de impostos deveria ter contribuído significativamente para rechear o Fundo de Emancipação e, consequentemente, subsidiar um número significativo de ações judiciais de indenizações aos senhores.
Então, o que se vê na documentação? Identificam-se apenas 152 processos desse tema no Fundo Judiciário, perfazendo a média de pouco mais de 8 ações por ano, no período de 1871 a 1888. Dentre todas as formas possíveis de se iniciar uma ação de liberdade, o uso de verba do Fundo de Emancipação representa apenas 4,6% do total (7 de 152). Esses números apontam para a insignificante parcela do imposto destinado ao Fundo de Emancipação, assim como para avaliações demasiadamente caras dos cativos. Uma característica não exclui a outra, mas ambas concorreram para a tênue abolição gradual da escravidão em Campinas.
E os escravos identificados nos documentos: quem eram e o que faziam? 54,4% eram mulheres e 45,6% homens. Dentre os casos em que constam as suas idades, 12,7% eram menores; 28,2% tinham entre 18 a 39 anos; 26,9% tinham entre 40 a 59 anos; e 8,1% tinham mais de 60 anos. Sobre suas aptidões verificam-se que 41,5% trabalhavam na lavoura; 46,4% faziam trabalhos domésticos variados; e 12,1% possuíam especializações, entre outras, de pedreiro, serralheiro e carpinteiro. Nesses casos, era comum que o senhor alugasse esse escravo especializado por determinado período a terceiros. Há casos de contratos desse tipo lavrados em cartório. Outro dado relevante: 72,4% das ações resultaram positivamente para os cativos.
Em 1882, o movimento republicano ganhava ainda mais força. Em Campinas, seu principal líder era Francisco Glicério, que se comunicava com militantes de todo o país. Um de seus principais interlocutores na Capital da Província de São Paulo foi o conterrâneo Manoel Ferraz de Campos Salles. Em algumas cartas enviadas a Glicério, Campos Salles externou sua preocupação com a distribuição do Fundo de Emancipação. Observe-se:
Glicério
Como sabe, já foi distribuída a 3ª quota do Fundo de Emancipação e, no entanto, creio que nesta província há municípios em que ainda não se aplicou a 2ª quota, que aliás foi distribuída em novembro de 1880. Suponho que Campinas está no número das que não aplicaram aquela quota, e preciso que você me informe a respeito, com exatidão e brevidade.
Pretendo dirigir um pedido de informações do governo nesse sentido, mas quero andar seguro. Não particularizarei Campinas, falarei em geral.
Hoje não houve sessão. Adeus.
Do amigo
C. Salles.
8-fevereiro-1882
Porém, de maneira geral, os documentos mostram que o abolicionismo em Campinas não foi intenso como se imaginava. As ações eram ponderadas com a falta de mão de obra e de um mercado de trabalho estável. A documentação judicial evidencia a quase inocuidade das primeiras Leis. Decerto, o trabalho escravo definhou somente após as subvenções do governo de São Paulo para a imigração de trabalhadores europeus, deliberada em 1882, mas efetivada realmente em 1886, quando começaram a chegar em São Paulo as grandes ondas de imigrantes italianos.
Referências:
ABRAHÃO, Fernando Antonio. As ações de liberdade de escravos do Tribunal de Campinas. Campinas: CMU Publicações, 1992.
ABRAHÃO, Fernando Antonio. A Correspondência passiva de Francisco Glicério. Campinas: CMU Publicações, 1996.
ABRAHÃO, Fernando Antonio. Padrões de riqueza e mobilidade social na economia cafeeira. Campinas, 1870 – 1940. São Paulo: FFLCH – USP (Tese de Doutorado), 2015.
GALDINO, Antonio Carlos. Campinas, uma cidade republicana. Política e eleições no Oeste Paulista (1870-1889). Campinas: IFCH – Unicamp (Tese de Doutorado), 2006.
PUPO, de Celso Maria de Mello. Campinas, Município no Império. São Paulo: IMESP, 1983.