O encontro imaginário de dois meninos

The imaginary meeting of two boys.

Luiz Roberto Saviani Rey – professor de jornalismo e escritor. Titular da Cadeira 14 do IHGG Campinas

Nós tínhamos de nos cruzar, não é, meu caro? Um dia nossos caminhos haveriam de se cruzar! Seria impossível isto não acontecer. Desde minha tenra idade você estava lá, com esse rosto plácido e instigante, quieto, calado, como a perscrutar coisas. Como a ruminar ideias, sem responder a nada. Desde meus cinco, seis anos, que eu sabia de você. Meu pai contou-me histórias fabulosas sobre a coragem dos paulistas, a luta que encetou com outros dois mil campineiros nos montes de Eleutério, os tiros que levou e a correria morro abaixo, varados de balas dos mineiros.

Meu pai me levou a muitas festividades do 9 de Julho junto ao Mausoléu dos Voluntários, no Cemitério da Saudade. Ele sempre alinhado e eu com meu terninho e a gravatinha iguais aos seus, perfilados, ouvindo hinos e poemas sobre a bravura do povo paulista. Que lindo era aquilo! Sentia-me orgulhoso! Passear com as mãos presas às de meu pai, trêmulas, ele emocionado e derramando lágrimas, e eu observando aquelas colunas de cimento, os nomes dos heróis tombados, a bandeira de treze listas e… seu rosto de menino, ali, como o meu rosto, o rosto de um menino morto! Como? Porque?

Os homens de terno diziam seus discursos e iam embora, a banda tocava e os músicos partiam, todo mundo ia embora, e eu sentava-me com meu pai nas escadas do Mausoléu para comermos os lanches. “Quem é aquele menino, pai?” E ele, ano a ano, meus anos primaveris, contava-me sobre a sua morte, sobre como o herói escoteiro das tropas constitucionalistas, havia sido atingido pelas bombas disparadas de um avião Vermelhinho do Getúlio, o ditador.

Havia ódio e tristeza na voz do meu pai. E eu pude perceber o quanto aqueles valores revolucionários de 1932 estavam ainda presentes naqueles anos da minha infância, incrustados em sua alma de imigrante espanhol, mas de homem convictamente paulista, convicto de seus ideais e das atitudes que tomou. Ele, meu pai, também menino, mentindo a idade às autoridades para poder lutar com os irmãos mais velhos na Guerra Paulista! Pois é, meu caro Aldo Chioratto, demorou muito, mas nos encontramos, finalmente cruzamos nossos caminhos.

Durante dias e dias, sentado à minha mesa de trabalho, conversei consigo, observando seus olhos tranquilos, seu rosto sereno, para retirar um pouco de sua essência, na minha modesta qualidade de escritor e de jornalista. Dialogamos bastante e eu pude compreender sua dimensão de menino escoteiro, de menino herói da Guerra Paulista. Nós tínhamos de nos cruzar. Era impossível que isso não acontecesse. Alguém tinha que resgatar a sua memória e deixar sua história em um livro para a posteridade. Foi um prazer imenso conhecê-lo!

Durma em paz, amiguinho!

Este é o prólogo do livro: O menino herói da Guerra Paulista, que tive o prazer de publicar em 2014. Trata-se de um histórico romantizado do bombardeio de Campinas e da morte do escoteiro Aldo Chioratto, de 9 anos, e, também, das vicissitudes da participação do batalhão formado por 2 mil voluntários da cidade nos episódios da Revolução Constitucionalista de 1932, com o qual espero estar contribuindo para um resgate histórico, pincelado da paixão e da dor que marcou a população da cidade naqueles anos ditatoriais esquecidos e apagados pelo tempo, e que caracterizaram a bravura, o heroísmo, a voluntariedade de um povo nobre e disposto a pegar em armas para fazer valer seus interesses ante um governo bonapartista e discricionário.

Sei que há muito mais histórias sobre a presença campineira no movimento de 1932, e, também, históricos mais densos sobre ele próprio, relatos interessantes que preencheriam vários compêndios. No meu livro há recortes, encurtamentos de um foco específico e, por que não, por conta de custos, mas com o esforço de não se perder o contexto e a essência. Imagino que carecerá de uma segunda edição, mais apurada.

Espero que as minhas linhas agradem e que o livro possa ser elencado no vasto material de qualidade produzido por historiadores, pesquisadores e escritores desta cidade que, a cada dia, se agiganta mais e mais, deixando sobre seu passado um lastro de ignorância, de abandono e de indiferença. Por uma Campinas que recobre suas histórias e não perca o elo com seus feitos dignificantes e contribuintes para a construção do Brasil como nação livre e soberana.

Escrevo sobre Campinas e seu passado e todas as vezes em que me deparo com episódios envolvendo minha cidade, sua História e suas glórias e infortúnios, vem-me à mente minha própria trajetória de ser originário de família de imigrantes malsucedidos, das dificuldades para estudar e me fazer alguém, de ser desterrado e desapropriado, mas com muito ardor por seu torrão natal. Nesses momentos, acorrem-me os versos magníficos do ilustre poeta brasileiro Ferreira Gullar, no Poema Sujo: A cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa.

Referência bibliográfica:

REY, Luiz Roberto Saviani. O menino herói da Guerra Paulista. Campinas: Pontes Editores, 2014.

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