Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, escritor. Titular da Cadeira 3 do IHGG Campinas.*
O presente ano de 2021 marca os setecentos anos de morte de Dante Alighieri, nascido em 1265, em Florença, e falecido em 14 de setembro de 1321, em Ravenna.
Seria, naturalmente, ocioso destacar a singular relevância do autor italiano dentro do panorama da literatura universal, figura ímpar no quadro da evolução da história literária e, sobretudo, poética. Produziu, ao longo de sua trajetória intelectual, trabalhos que se intitularam De Vulgari Eloquentia, Da Monarchia, Convivio, nos quais demonstra seu profundo conhecimento em áreas como a literatura, a história, a linguística, a filosofia, a teologia, a política, o direito, tudo o que viria igualmente a transportar para a sua obra máxima, já no terreno da poesia. E, com efeito, seu legado maior, e incomparável, foi de natureza poética, assinalado por suas três obras: Vita Nuova, onde se contêm os sonetos dedicados a Beatriz; Rime, conjunto poético reunido após sua morte; e, escrito já em seu período de exílio, sua culminante e monumental Commedia, que, desde Boccaccio, passou a ser conhecida como Divina Comédia.
A propósito, para o leitor interessado no tema, recomenda-se a leitura do breve mais precioso livro intitulado Dante, Poeta do Absoluto (indicação de nosso amigo, o médico Sílvio Carvalhal), cujo autor, Hilário Franco Júnior, perfaz a proeza de sintetizar o tempo histórico, a trajetória pessoal e a obra do poeta florentino, em pouco mais de cem páginas, em linguagem fluente e substanciosa (Ateliê Editorial, 2000).
Assim como, entre outras obras literárias icônicas, o Ulisses, do irlandês James Joyce, Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust, Grande Sertão; Veredas, de Guimarães Rosa, a leitura da Commedia constitui missão para toda uma vida, eis que cada momento de seu percurso, ainda quando fragmentário, vem continuamente proporcionar novos e inesgotáveis enfoques, infindáveis percepções e iluminações.
Juntamente com Charles Baudelaire, Dante figura entre os poetas de minha predileção e de incessante leitura. Curiosamente o corrente ano de 2021 marca duas efemérides relativas a um e a outro: os setecentos anos da morte de Dante e o bicentenário do nascimento de Baudelaire.
A obra de Dante, no espaço do CCLA, já foi objeto de um artigo, Dante Alighieri e o Visconde de Inhomirim, trazendo à luz, graças ao excelente trabalho de pesquisa e resgate empreendido por nosso companheiro de Diretoria, Genaro Campoy Scriptore, a figura de Francisco de Sales Torres Homem, médico, político e escritor do período imperial, autor, entre outros trabalhos, de estudos sobre Dante.
Quando, em fins de 2015, iniciei minha colaboração com o Correio Popular, através de seu “Caderno C”, o texto inaugural foi exatamente dedicado ao poeta florentino, com o título de A garota de Florença: é como modesta contribuição que reproduzo a seguir aquele escrito, dando sequência às homenagens inauguradas pelo texto de nosso companheiro de Diretoria.
A Garota de Florença
Uma jovem passa a caminho do mar. Das mesas de um bar, espalhadas pela calçada, um grupo de fregueses espia a sua passagem, e dois deles resolvem compor uma canção em homenagem à moça.
A cena acontece no Rio de Janeiro, em algum dia do ano de 1962. A jovem será mais tarde identificada como Helô Pinheiro e contava então com 15 anos de idade. Os dois clientes do bar que decidiram converter em canção o encantamento causado por ela eram Vinicius de Morais e Tom Jobim. A canção se intitularia Garota de Ipanema, e se transformaria na segunda canção popular mais executada em todo o mundo.
Cena semelhante aconteceu, séculos atrás, em outros tempos, em outra latitude. Uma jovem, de cerca de 18 anos, passa a caminho da igreja. Em seu trajeto depara-se com um moço que, sem que ela o saiba, há muitos anos a admira. Ao passar por ele, ela, pela vez primeira, lhe dirige uma saudação.
O ano é de 1283; o cenário é a cidade italiana de Florença. A jovem chama-se Beatriz Portinari. Seu admirador é Dante Alighieri, que, inebriado pela saudação e pelo sonho que lhe advém na noite daquele encontro, decide compor uma canção em homenagem a ela.
Mas os tempos são outros, outra é a linguagem, a retórica. A canção de Dante é escrita sob a forma de um soneto. E escreverá não um, mas vários sonetos, que serão reunidos no volume intitulado Vita Nuova. Mais que isso, na terceira parte da Divina Comédia, escrita anos depois, Beatriz passa a conduzir o Poeta, substituindo Virgílio, pelos caminhos do Paraíso.
O mais célebre desses sonetos é aquele que assim se inicia: “Tanto gentile e tanto onesta pare / La donna mia, quand’ella altrui saluta, / ch’ogne lingua deven tremando muta, / E li occhi non l’ardiscon de guardare” (algo como: Tão gentil e tão honesta parece a minha dama, quando ela saúda a outrem, que a língua se torna, tremendo, muda, e os olhos não se cansam de mirá-la).
Na estrofe seguinte, destaca-se esse verso: “Ella si va, sentendosi laudare” (Ela se vai, sentindo-se louvar). Há, nele, dito em voz alta, certa cadência, uma sensualidade, um doce balanço, que permite até mesmo a visualização da jovem que se afasta, cheia de graça e vivacidade, sabendo-se admirada por quantos a veem passar.
Beatriz desposaria outro, o enlevo de Dante jamais ultrapassaria a mera contemplação, e ela morreria muito jovem, com apenas 25 anos.
Por que lembrar-se hoje, em pleno século 21, no final de 2015 (quando escrevi este pequeno artigo), daquele acontecimento de 1283? Pelo menos por duas razões, uma de caráter histórico, outro de caráter pessoal. A primeira é porque no ano de 2015 comemorou-se 750 anos de nascimento de Dante (1265-1321). A segunda razão é porque, em data recente, após uma visita à “Casa di Dante” (pequeno mas expressivo museu instalado na casa onde o poeta residiu em Florença), fui surpreendido, já na rua, pela visão de uma placa, endereçada não só aos turistas, mas aos peregrinos como eu, indicativa de um local identificado como “Chiesa di Dante”. Aproximei-me da referida igreja, em cujo pórtico se informa que ali foram sepultados os corpos de integrantes da família Portinari… inclusive da própria Beatriz. Entrei, e apesar da penumbra própria do interior desses templos, localizei a pedra tumular sob a qual repousam as cinzas de Beatriz.
Como não se comover? Ali, num recanto da igrejinha até então desconhecida, descansam os restos mortais daquela jovem que, muitos séculos atrás, tanto havia encantado Dante, ao ponto de ele a designar como sua dama de eleição e, mais que isso, signo permanente da feminilidade e da beatitude. Ali, ainda que desfeita em pó, pulsa a memória daquela Garota de Florença, que há mais de setecentos anos passava a caminho da igreja, cheia de graça, de gentileza e de perenidade.
* Luiz Carlos Borges também é secretário geral do CCLA.
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