Ambulantes em Campinas: estratégias de resistências e sobrevivência no cenário urbano (1929-1940)

Flávia de Matos Rodrigues – historiadora, professora. Mestre em História Econômica pela USP. Analista de Educação na Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas.

Resumo: A partir do estudo de requerimentos de ambulantes, comunicados de fiscais, de Relatórios de Prefeitos e da legislação municipal, presentes no Arquivo Municipal de Campinas, a importância da atividade ambulante é problematizada no cenário da formação urbana campineira, entre 1929 e 1940, articulando três questões: a atividade como necessária à população, fazendo parte dos costumes e cultura dos habitantes; sua presença ligada à impossibilidade e dificuldade de encontrar outro trabalho e sua importância fiscal mediante o pagamento dos impostos e taxas.

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Marcado pelo aumento da população urbana e pelo crescimento econômico, o período entre 1929-1940 em Campinas, constitui-se de investimentos em áreas agrícolas, industriais, fábricas de beneficiamento e no comércio. Ao mesmo tempo, o município assistia a expansão dos serviços de água e esgotos, ao reemplacamento de ruas e a um acréscimo de loteamentos.

As repercussões econômicas e territoriais desse processo influenciaram propostas sobre a necessidade de um projeto de melhorias urbanas. Imprensa, empresários dos setores imobiliário e industrial fizeram alarmes sobre a necessidade de modernização da cidade. Eram a favor de seu alinhamento nos ideais de progresso e desenvolvimento[i], colocando diante do governo a exigência de um modo de vida normalizador de viver em cidades.

Nesse momento, a desmunicipalização dos impostos promoveu restrições à autonomia dos municípios e problemas financeiros aos cofres da cidade. Assim, a remodelação do centro acarretaria a valorização da região e, com isso, aumentaria a arrecadação da Administração Municipal. Essa última, interessada nos benefícios à gestão pública, assumiu o papel de interventora e incorporou o discurso das elites econômicas, que preconizava a necessidade de transformações nas formas de organização espacial, a reformulação da cidade e a sua definição nos padrões da modernidade.[ii]

Em 1934, o Plano de Melhoramentos Urbanos de Prestes Maia foi instituído com diretrizes voltadas para a modernização, circulação e delimitação de espaços. Segundo o projeto, Campinas deveria possuir um trânsito rápido, moderno, tanto para os veículos como para pedestres que, a partir de então, usariam o centro como local de passagem. Tais medidas tiveram como resultado o advento de obstáculos para a apropriação e ocupação do solo para a maioria da população e originaram uma segregação espacial, presente até hoje.

Os obstáculos, financeiros, espaciais e legais, tornaram-se proeminentes, e a permanência nas ruas e calçadas da cidade, característica típica dos ambulantes, apresentou-se como um problema para a Administração Municipal. A documentação consultada confirma-nos que as primeiras décadas do século XX foram marcadas pela intensificação das ações dos fiscais e normatização das atividades urbanas.

No período, às portas dos comércios estabelecidos, nas ruas, praças e calçadas encontrava-se grande parte dos vendedores ambulantes. Essencialmente vendedores urbanos, alguns perambulavam pelas ruas, enquanto outros mantinham-se fixos em pontos estratégicos, como próximo ao Mercado Municipal.

Entre os anos de 1931 e 1932 havia cerca de 200 vendedores ambulantes, com registro na Prefeitura e com diversos perfis: homens, mulheres, jovens, brasileiros, imigrantes, pobres, idosos, desempregados, chacareiros. Eram vendedores com ou sem local fixo de atividade, que comercializavam alimentos, verduras, frutas, doces, tecidos, armarinhos, bilhetes de loterias, utensílios domésticos e pessoais, e objetos diversos. Obtinham os artigos por meio de algum intermediário entre as fábricas e o comércio ou, então, produziam aquilo que vendiam.

A faixa etária era variada, mas, a idade avançada e as doenças eram os principais motivos para recorrer à ocupação ambulante com registros. Ao mesmo tempo, a idade não aparece como justificativa principal para os pedidos de isenção de impostos ou de licenças. Contudo, entre esses solicitantes há uma presença majoritária de homens, adultos acima de 40 anos de idade, pobres, analfabetos e com alguma deficiência física.

Ambulantes de doces, frutas, amendoim e quitandas, atuando no centro e bairros próximos, eram os mais numerosos entre os que pagavam o imposto de licença. Nesse universo, a presença das mulheres não foi excepcional: eram mais de 30% dos vendedores de doces registrados. Muitas destas vendedoras deveriam adquirir seus produtos a partir de fábricas, fosse comprando diretamente ou de algum outro comerciante. Ao mesmo tempo, é possível supor que as vendedoras garantiam fregueses e diminuíam custos fazendo doces caseiros. Os gastos seriam decorrentes apenas da compra de ingredientes, e não da dívida por doces não vendidos. Mas, o trabalho feminino fora de casa era entendido como pernicioso e desmoralizante e, em espaços que as distanciavam do estereótipo criado pela sociedade, mulheres que reclamaram ou escreveram solicitações à Prefeitura foram poucas, o que explica, também, seu apagamento em documentos “oficiais”.

A preferência pela venda de hortaliças e frutas, tal como os doces, era motivada pelo custo. No entorno da cidade ainda existiam chácaras e sítios, e muitos ambulantes vendiam o que plantavam no quintal de casa. Essas mercadorias ajudavam no abastecimento da população, tendo clientela garantida. O negócio entre ambulantes e comerciantes estabelecidos também existia. Vendedores de rua adquiriam mercadorias negociando com lojas ou quitandas. Esses fatos ajudam a corroborar a ideia de que a população sustentava e necessitava desse comércio, assim como a contribuição dos ambulantes para a receita municipal afirma sua importância econômica e social.

De acordo com a Lei Municipal n°116 de 1906 e com a de n°520 que a substituiu em 1937, todo ambulante, para comercializar, deveria obter a licença municipal e, em seguida, pagar o imposto decorrente dela. Esse imposto, cobrado no início da atividade, e depois anualmente, tinha valores e formas de pagamentos variáveis, de acordo com o valor da mercadoria nas fábricas e no comércio da cidade.

A licença para exercer a atividade somente seria autorizada depois do envio do requerimento ao prefeito que, após averiguação da Repartição Fiscal, decidia pelo deferimento ou não do pedido. Obtida a autorização, ficavam sujeitos ao imposto referente à mercadoria comercializada, ao horário de atividade determinado por lei e às multas da fiscalização. Além da licença, os vendedores de rua deveriam portar consigo uma chapa de ambulante, contendo o nome registrado na Repartição Fiscal, o artigo que vendia e o número da autorização municipal.

A contribuição fiscal permitia dividir a profissão de ambulante em clandestinos, irregulares e legalizados. Clandestinos eram aqueles que preferiam não possuir a licença e não pagavam as taxas advindas dessa; os irregulares, apesar de possuírem a autorização, não estavam em dia com o fisco.

A fixação dos ambulantes em lugares determinados pela Administração Municipal já aparecia como uma maneira de regular o espaço e a atividade ambulante. O próprio governo municipal conferia a alguns vendedores pontos fixos para comercializar, por meio do pagamento da taxa de “estacionamento”. Apesar de ser um elemento da normatização, a fixação tornou-se uma estratégia de resistência e sobrevivência adotada pelos sujeitos envolvidos.

Havia muitas razões para os ambulantes deixarem de pagar o imposto de licença, ou nem ao menos requererem a autorização municipal. A falta de licença era a maior causa das apreensões de mercadorias e imposição de multas, mas, o valor da mesma influenciava na decisão de solicitá-la ou permanecer na clandestinidade.

A opção em ter a licença e pagar o imposto anual, dependendo da localização, poderia ser vantajosa em alguns casos, enquanto em outros, era mais lucrativo viver na clandestinidade. Escapar dos fiscais no momento da cobrança do imposto ou recusar-se a ter a licença, que os obrigava a esse pagamento, eram meios para aumentar a renda. Esse poderia ser o caso de Arthur Maluf que, em 1934, solicitou ao prefeito, em escrita direta e objetiva, a devolução de mercadorias apreendidas pelo fiscal Chiavegnato. Porém, foi na manifestação do fiscal que identificamos releituras de normas e controles.

Segundo Chiavegnato, uma pessoa o teria informado que havia um vendedor ambulante sem licença atuando próximo à Rua 11 de Agosto, no Centro da cidade. Logo após a verificação e comprovação da presença de Arthur Maluf, o fiscal afirma que o ambulante fora avisado por “alguém” que ele o estava seguindo. Tal aviso teria possibilitado a fuga de Arthur, que saíra correndo, mas fora alcançado por Chiavegnato. Por fim, o fiscal relata que Arthur Maluf tentou “fazer um acerto”, para que o deixasse ir embora, o qual ele não teria aceito. A descrição destaca a existência de cumplicidades e negociações entre ambulantes e a população, que influenciavam na reivindicação de direitos, criando e estimulando resistências frente ao imposto cobrado.

A situação econômica do município também regulava a concessão das licenças, o valor dos impostos e das multas.  O custo de vida na década de 1930 crescia e sua alta não era acompanhada pelos salários da maioria da população. Durante o intervalo de 1929 a 1940, houve alta nos preços dos gêneros alimentícios. A elevação ajuda a justificar a permanência da isenção dos impostos para alguns ambulantes, desde a década de 1920, assim como a posição ambígua da Administração em relação à presença desses vendedores; ela parecia reconhecer, como imprescindível, a “permissão” da presença desses ambulantes para o abastecimento da cidade, para os cofres municipais e, principalmente, como uma fresta social que possibilitava a sobrevivência daqueles que não conseguiam outro tipo de profissão.

Outro documento, de 1940, mostra-nos que, enquanto leis e normas eram elaboradas, alternativas e oposições que as questionavam – voluntariamente ou involuntariamente – desafiaram sua dominação. José Tavares Júnior, comerciante ambulante de peixes com caixa térmica, enviou ao prefeito, um requerimento no qual reclamava a devolução de seu instrumento de trabalho; uma caixa térmica para vender peixes, apreendida após envolver-se em um conflito com os fiscais da Inspetoria de Alimentação Pública.

Segundo o ambulante, ele havia sido intimado pelo fiscal Sebastião Barbosa a deixar sua caixa térmica com peixes à disposição da Inspetoria de Alimentação Pública para que fosse examinada, sendo a mesma depositada no Frigorífico Municipal para que depois pudesse ser retirada. No dia seguinte, ao dirigir-se ao Frigorífico para retirar seus pertences, José Tavares Júnior não conseguiu, pois a caixa não se encontrava mais lá. José afirmava que estava de acordo com as exigências da Delegacia da Saúde da cidade e, ao solicitar a devolução de seu instrumento de trabalho, ressaltava o seu valor de 100$000 e a sua importância na conservação do alimento que comercializava e que, por não estar de posse dela, estava impossibilitado de trabalhar.

A solicitação foi encaminhada pelo prefeito à Inspetoria de Alimentação Pública, que respondeu que a caixa não fazia parte da apreensão e deveria ter sido entregue ao ambulante, mas fora depositada no Frigorífico, por motivo desconhecido. Segundo o relato, o fiscal Sebastião Barbosa teria telefonado ao estabelecimento e um dos funcionários teria declarado que não sabia se a caixa fora retirada ou furtada. A resposta seguinte, do encarregado pelo Frigorífico, afirma que José Tavares Júnior teria desacatado os funcionários do local e, por isso, fora levado à Delegacia Regional de Polícia, uma vez que não teria razão na reclamação e que a caixa já havia sido entregue ao tio do requerente.

Os fatos registrados mostram, além da confusão na comunicação, a preocupação de José Tavares Júnior em poder exercer sua profissão. Sem a referida caixa térmica, exigida pela lei para o comércio de peixes, ele estaria impossibilitado de trabalhar, e isto aconteceu durante doze dias, até quando acabou sendo preso por desacato. Também, as solicitações feitas diretamente ao prefeito, permitem perceber noções de bem público desses ambulantes, que podiam encontrar algum apoio na tradição paternalista das autoridades. Em algumas solicitações, os tons são leves, porém claros e objetivos, como recomendavam os “bons costumes” para pedir algo a uma autoridade. Todavia, em outros, a sensação de injustiça e desespero diante da multa, dívida ou impossibilidade de trabalhar e sobreviver tornava o teor dos pedidos mais secos e sem nuances de cordialidade. Apesar das fontes consultadas não apresentarem mobilizações[iii] diretas de ambulantes contra as leis instituídas e normas estabelecidas, nota-se que a adesão e o apoio às regras e mudanças urbanísticas nem sempre ocorreram.

Regidas ou informadas por distintas representações de temporalidade, as artimanhas, tolerâncias, reclamações, recusas, conveniências e solicitações de ambulantes tornaram-se maneiras de viver e dar significados, a um período de alterações urbanísticas, e possibilidades de continuar a existir. Os vendedores de rua faziam dela seu espaço de construção de mundo e de vida, residindo aí uma das causas para que as políticas públicas fossem ineficazes quanto ao seu desaparecimento.

O comércio ambulante era presença marcante e imprescindível à sobrevivência da população, era o meio mais barato e fácil de aquisição de alimentos, assim como fonte de renda para quem vendia. Comprar nos mercados, que começavam a fazer parte da realidade central, acarretaria não somente o deslocamento até o local onde ele estava, como um preço mais alto, afinal, aqueles comerciantes que vendiam no Mercado tinham que pagar, além do imposto pela licença, uma taxa para a utilização das bancas e tabuleiros. Havia uma assimilação e recriação de relações, que possibilitavam a persistência do vendedor de rua no decorrer dos anos, segundo os interesses dos próprios ambulantes e habitantes da cidade, presentes em um desenvolvimento urbano desigual e fragmentado. Sobrevivendo às brechas da sociedade, esses vendedores eram essenciais economicamente e socialmente. Sua proibição generalizada, portanto, deveria provocar um desequilíbrio social, além dos problemas econômicos, e a Administração local parecia ter consciência disto.

O comércio ambulante em Campinas jamais desapareceu apesar da fixação, mudou apenas de roupagem e, hoje, ocupa local estabelecido nas ruas da cidade. A permanência da atividade, ilegal, irregular ou legalizada tornou-se uma representação social em constante processo de reorganização no tempo, dependente das leituras, interpretações e significados que esses comerciantes conferem à realidade presente. Todavia, em um período de crescimento econômico e industrial, ele mostrou-se como resquício da cidade escravista e, por meio de suas reinvenções, persistiu, tornando-se vilão para aqueles que priorizavam, e que ainda priorizam, um conceito específico de modernidade.

Notas e bibliografia

[i] A palestra do engenheiro Carlos Stevenson, em 1933, mobilizou a opinião pública em favor de um plano urbanístico. Seu discurso estava pautado na remodelação da cidade, uma vez que Campinas era um importante centro viário do estado e possuía ruas impróprias à circulação de veículos. Para que a cidade entrasse no rol das grandes cidades modernas era necessária, segundo o engenheiro, uma intervenção em sua estrutura urbana. Muitas de suas propostas foram contempladas no Plano de Melhoramentos de Prestes Maia, em 1934.
[ii] A modernidade aparece como sinônimo de uma constante revolução que perturba, confunde; uma vez que tudo que havia sido criado até aquele momento deveria ser destruído para dar lugar a algo novo, ordenado e definido em seus lugares. Concebida sob o imaginário de que o que a constitui deve ser rápido, tecnológico, industrial, mutável, a modernidade possibilitaria tudo acontecer e “desacontecer”.
[iii] A referência é no sentido de mobilizações como as de movimentos reivindicatórios organizados.

RODRIGUES, Flávia de Matos. Ambulantes em Campinas: estratégias de resistências e sobrevivência no cenário urbano (1929-1940). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

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