Tácitos

Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, escritor. Titular da Cadeira 3 do IHGG Campinas.*

Nascido em 1901, o poeta Luís Aranha foi um dos mais jovens protagonistas da Semana de Arte Moderna realizada em fevereiro de 1922, tendo por cenário o Teatro Municipal de São Paulo.

Já a poesia de sua autoria foi publicada de maneira esparsa, em especial na revista Klaxon, porta-voz dos modernistas. O restante permaneceu inédito, mesmo porque logo em seguida, o poeta “emudeceu”: nada mais escreveu – ou, se escreveu, não divulgou – e se dedicou à carreira diplomática.

Apenas em 1984 veio a lume o livro Cocktails, organizado por Nelson Ascher e Rui Moreira Leite, pela Editora Brasiliense, reunindo toda a sua obra poética.

Sua poética não apenas segue – e até mesmo radicaliza – os procedimentos transgressivos e inovadores daquele período, como contém traços “futuristas”, consoante aos preceitos manifestados pelo italiano Marinetti, como denotam os próprios títulos de seus poemas: “Drogaria de éter e de sombras”, “Poema pneumático”, “O trem”, “O aeroplano”, e de versos como “Sou um trem / um navio / um aeroplano / sou a força centrífuga e centrípeta…”.

Nos vários ensaios que integram o volume (escritos por nomes como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, o próprio Ascher) é constante a associação ao poeta francês Arthur Rimbaud, que após os vinte anos se recolheu a um silêncio total e enigmático.

É, também, associado, nesses textos, ao nome de outro poeta integrado ao movimento modernista: Tácito de Almeida. Surpreende que, na pesquisa em torno deste, é dado como nascido em Campinas. E mais: trata-se de um irmão de Guilherme de Almeida. Diferentemente de Aranha, deixou um livro publicado, “Túnel e Poesias Modernistas”, de 1923; porém, como ele, depois disso silenciou, passando a seguir (como o pai), a carreira jurídica.

Quanto a ele, essa opção pelo silêncio representa como que um fatalismo ditado por seu próprio nome. “Tácito” derivado do latim “tacitus”, significa aquele que se cala, que silencia; daí, igualmente, as expressões “taciturnus” / taciturno e “tacere” / calar-se.

E é curioso notar que ainda naquelas primeiras décadas do século vinte outro escritor da Pauliceia tenha adotado o mesmo nome, ou, melhor dizendo, pseudônimo: José Maria de Toledo Malta (1885-1951). Autor de traduções do latim e do francês e de obras técnicas na área de engenharia, ao publicar um romance intitulado “Madame Pommery”, em 1919, optou por usar o nome literário de Hilário Tácito.

Trata-se uma obra de ficção que retrata a cidade de São Paulo naqueles anos de transição entre o século dezenove e vinte; a heroína é uma cidadã europeia que, ao se trasladar para o Brasil, inaugura, em terras paulistanas um bordel de alto coturno, denominado “Paradis Rétrouvé”. Repleto de fina ironia e humor, o livro se destaca por sua escrita elegante, em que ressoam ecos de Montaigne, Rabelais e Machado de Assis, como, por exemplo, nesta frase: “Mas se Mme. Pommery não morreu, em compensação ressuscitou, o que é muito melhor para o desenlace desta história que, em vez de um necrológio, poderá acabar numa apoteose”.

Relegado a imerecido esquecimento, o livro obteve uma reedição em 1977, por feliz iniciativa da Academia Paulista de Letras (no período em que trabalhava em São Paulo, fiz uma visita à ACP, exatamente em busca dessa obra, tendo sido então presenteado com um exemplar, bem como com outros livros de uma coleção da Academia).

De lamentar que, na área ficcional, Hilário Tácito tenha-se reduzido a essa obra, depois disso também silenciando, em novo tributo ao nome adotivo.

E, enfim, naturalmente não se haverá de olvidar do Tácito original: L. Publius Cornelius Tacitus (c.55 / c.117 D.C.), historiador, autor de obras que se intitularam “Dialogus de Oratoribus”, “Agricola”, Germânia”, “Anais” e “Historias”, como informa o “Dicionário Oxford de Literatura Clássica” (Jorge Zahar Editor, 1987), cujo respectivo verbete registra que embora pouco lembrado nos períodos posteriores, inclusive na Idade Média, mais tarde passou a ser objeto de incessante interesse por parte de historiadores e políticos.

Tácito, por sinal, é um dos autores revisitados pelo alemão Erich Auerbach, em sua obra Mimesis, fundamental estudo acerca da representação da realidade nos textos literários, recentemente reeditado pela Ed. Perspectiva (2021).

O texto estudado por Auerbach consiste num relato sobre o momento embrionário de uma revolta das tropas romanas sediadas na Panônia em seguida à morte do imperador Augusto. O episódio é lembrado com minudências, ilustrativas daquela vivacidade da escrita de Tácito, inclusive com a reprodução do discurso proferido por um dos fomentadores da rebelião, um certo Percênio, que, no passado – a tanto vão as minúcias do historiador –, tinha sido um chefe de claques teatrais, bem por isso dotado de uma “língua procaz”. “Reprodução”, nota o autor alemão, ou, mais apropriadamente, observância de uma tradição, de certa convenção dos historiadores da Antiguidade, que, sem terem sido testemunhas presenciais dos eventos narrados, esmeram-se, por motivos estéticos e dramáticos, na redação dos discursos de líderes políticos e de comandantes militares dirigidos a seus comandados, formas de estimulá-los às vésperas dos combates (fórmula presente, por exemplo, em Tucídides em sua “História da Guerra do Peloponeso”).

Por essa forma, Auerbach procura ressaltar que, ainda quando autores, como no trecho citado, procurem representar fielmente a realidade em seus escritos, esse esforço não se mostra isento de uma dose de imaginação e de cultivo da retórica.

Mas aqui já se ingressa num espaço de digressão e tergiversação, pois o objetivo desse modesto artigo é celebrar a memória desse trio literário de Tácitos (sim, é verdade, com a introdução de um Aranha, o que se justifica, por haver este tacitamente tecido a sua teia poética). Ainda que, diferentemente dos seus homônimos brasileiros, o Tácito latino, pela extensão de sua obra, tudo tenha sido, menos – e felizmente – tácito.

* Luiz Carlos Ribeiro Borges também é secretário geral do Centro de Ciências, Letras e Artes e integrante efetivo da Academia Campinense de Letras.

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