Ação cultural decolonial

Regina Márcia Moura Tavares – antropóloga, consultora universitária internacional. Titular da Cadeira 25 do IHGG Campinas

Se partirmos da ótica do economista Celso Furtado, que vê o desenvolvimento das sociedades como “um processo criativo de invenção da história pelos homens, como a ascensão desses mesmos homens, enquanto indivíduos, coletividades, na escala de realização de suas próprias potencialidades” (1984, p. 63), teremos dificuldades em evidenciar o nosso atual grau de desenvolvimento, pelo simples fato de que circunstâncias histórico-sociais nos impediram de ensejar uma proposta mais livre de criação cultural.

As sociedades de longa tradição colonial, hoje em desenvolvimento, nunca puderam alçar grandes voos na área da criatividade consequente – aqui designada como aquela que tem como referencial a herança cultural da população e é dirigida à expansão das potencialidades do indivíduo e da coletividade – porque adquiriram o hábito de internalizar valores criados fora delas mesmas, transformaram-se sob a pressão de fatores exógenos reproduzindo padrões de comportamento surgidos em outros contextos culturais, muitas vezes até sem correspondência com suas bases materiais. Há muito, elas se vêm impondo valores estéticos, morais e tecnológicos alienígenas, inclusive através do ensino alienante e alienador praticado desde os colégios jesuíticos, bem como através de uma museologia comprometida com modelos europeus.

Sabe-se que a história evolutiva de cada povo se consubstancia em sua existência criativa face aos desafios permanentes que se lhe impõem a adaptação ao habitat e ao meio social. Sua herança cultural será sempre o produto desta interação permanente entre o saber acumulado por gerações anteriores e a solução encontrada para o novo problema, sendo o conhecimento deste patrimônio, por parte dos indivíduos da sociedade, essencial a um desenvolvimento autorreferido; ou seja, a incorporação de novos elementos trazidos pelo avanço do pensamento humano deverá ser sempre de forma seletiva e não simplesmente mimética.

A assertiva “quem não sabe de onde vem, não sabe para onde vai” é profundamente verdadeira! A caminhada consciente, responsável, democrática e esperançosa de um grupo social, de uma cidade, de uma região ou de um país, sobretudo nesse momento da globalização econômica, está a exigir uma cumplicidade entre as ações preservacionista e político-econômica. O ato de preservar é um momento importante de uma proposta educacional mais ampla na qual os sujeitos são preparados não somente para a manutenção dos padrões culturais vigentes, mas, principalmente, para uma ação criativa na direção de novas soluções para os problemas emergentes, porém, sempre referidas à herança cultural do próprio grupo.

Nosso país necessita ser reinventado por nós mesmos, sem xenofobia, compreendendo a razão do viés trazido pela expansão da cultura europeia num determinado momento histórico, cientes de que estamos num mundo em permanente comunicação. Nossas ações culturais e políticas deverão ser plenas de criatividade, com a percepção clara de que somos um país singular, com formação étnica variada extremamente rica a qual precisa ser resgatada e revista, oportunizando uma nova trajetória nacional. Como intelectuais e agentes culturais temos condições de realizar uma intervenção social não mutiladora refutando a manutenção de pretensões classistas embutidas nos conceitos de erudito e popular, fato histórico e outros, os quais deformam a reflexão. Todo o desenvolvimento dos países terceiro mundistas estará comprometido se uma revisão conceitual não se fizer de maneira a corrigir o curso, perversamente orientado, do processo cultural.

Sabemos que a identidade nacional é sempre um processo de construção que se fundamenta numa interpretação. Acreditamos, porém, ser possível um envolvimento progressivo, e cada vez mais real, do povo na condução dessa mesma construção. Melhor dizendo, temos a certeza de ser possível expandir os limites da intelectualidade responsável deslocando as manifestações culturais de sua esfera particular e articulando-as com uma totalidade que a transcende.

Nesta direção, o envolvimento dos Conselhos de Preservação do Patrimônio Cultural e dos Museus, entre outros, se faz absolutamente necessário. Nos primeiros, constituídos por representantes da sociedade civil, deve-se rever a legislação municipal que os vem regendo, incluindo membros para além das universidades, da administração local, das entidades culturais tradicionalmente constituídas. Também, deve-se divulgar neles documentos que possam esclarecer o sentido e os caminhos a serem seguidos para a preservação do patrimônio cultural local, visto a grande maioria chegar com conceitos distorcidos pelo próprio processo educacional a que foi exposta, ao longo dos anos.

Relativamente aos Museus, será importante uma profunda reflexão entre os próprios responsáveis pelo trabalho museológico, anterior à exposição dos bens móveis, pois através dela deverão ser compreendidos, em profundidade, os processos sociopolíticos e culturais dos momentos históricos em que foram produzidos os artefatos que permanecem em conservação. Faz-se necessário o questionamento sobre a natureza dos acervos, antes de se os expor pois, muitas vezes, sob a aparente correção dos fatos cronológicos, do inquestionável valor estético de uma obra de arte e de seu perfeito estado de conservação aninha-se uma interpretação perversa da história de uma população, do caminhar sofrido de um povo.

Compete aos profissionais de Museus  estarem atentos à contextualização do objeto discutindo em seus próprios trabalhos de laboratório o grau de veracidade das informações contidas no setor de documentação, organizando exposições com hipóteses variadas relativas ao mesmo fato e propostas educativas que, com interatividade, possam conduzir o público infantil e adulto a uma postura crítica que lhe permita  uma revisão dos conceitos que tem de si mesmo, do grupo ao qual pertence e mesmo relativamente à vida sobre o planeta. Por serem espaços privilegiados de comunicação pela tridimensionalidade que contêm, a qual fascina as gerações formadas num mundo imagético, os Museus dos países em desenvolvimento não podem e não devem ser deixados nas mãos de pesquisadores e educadores preocupados somente com a contextualização imediata do objeto; precisam de um profissional consciente de seu papel de reordenador dos fatos humanos, uma espécie de mago dos objetos e da vida, capaz de abrir as portas da reflexão para as pessoas que por eles passarem, dando-lhes  a possibilidade de questionarem  paradigmas, de buscarem novas utopias, de reinventarem a história.

Infelizmente, muitos espaços museológicos contemporâneos têm contribuído, principalmente os de História e de Arte, para a perpetuação desse equívoco que realiza o homem comum na percepção de seu entorno. Nos grandes museus nacionais, os de “1ª categoria”, o que se mostra permanentemente a um grupo curioso de crianças em idade escolar, ou mesmo a adultos sequiosos de informações sobre sua gente e sua história, são coleções de objetos os quais, quase que exclusivamente, garantem a preservação do ideário de uma burguesia européia, assumido nas Américas por quem se julgou importante e responsável pela condução das sociedades locais. Não só os artefatos comunicam a história oficial, mas a proposta museográfica não estimula a visão crítica do processo histórico e artístico.

Insistimos no alerta em relação ao contexto político no qual a informação sobre um fato ou artefato foi elaborada, bem como ter muita clareza quanto às suas possibilidades de interferência na compreensão que os Homens possam vir a ter de si mesmos, em seus locais de origem. Parafraseando Paulo Freire, “toda educação é um ato político” e se “a essência do Homem se consubstancia na sua existência, como já disse Kierkegaard, a consciência que ele tem de si mesmo será sempre fruto da percepção crítica de seu entorno”.

As instituições que objetivam preservar a Memória e o Patrimônio de um povo, que é um mosaico de culturas com extenso passado colonial, sobreviverão como espaços verdadeiramente educativos não-formais se conseguirem realizar a façanha de levar as populações a não serem mais prisioneiros do olhar do “outro”, mutilados em sua autoestima, mas capazes de realizarem a trajetória vivencial com que sonharam.

Referências:

FURTADO, Celso. Cultura e Desenvolvimento em época de crise. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
TAVARES, Regina Márcia Moura. Mudança de rumo, já: herança cultural, preservação e desenvolvimento. Campinas: Pontes, 2009.
TAVARES, Regina Márcia Moura: Memória e patrimônio, cartilha de Educação Patrimonial. Campinas: PCN Comunicação, 2019.

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