A descoberta do Brasil segundo Langsdorff – parte 1

THE DISCOVERY OF BRAZIL ACCORDING TO LANGSDORFF – PART 1

Cecília Prada – jornalista e dramaturga, (prêmio Esso de Jornalismo / Reportagem, em 1980).

Resumo: A Expedição Langsdorff é reconhecida internacionalmente como uma das mais importantes expedições científicas do século 19. Mesmo assim, quase 200 anos após seu início (1822), a aventura do barão de Langsdorff permanece desconhecida no próprio território cujos recursos e riquezas naturais ajudou a revelar.

Dizimada pela malária e por acidentes vários em plena selva – dos 39 homens que a integraram somente 12 sobreviveriam –, prejudicada por numerosos desentendimentos entre alguns de seus membros e marcada pelo trágico afogamento de seu melhor pintor, o jovem Adrien Taunay, a expedição organizada pelo barão russo-alemão Georg Heinrich von Langsdorff terminou envolvida irremediavelmente em controvérsia e mistério. O fato culminante foi a loucura irreversível que atingiu o próprio Langsdorff, em maio de 1828, após ter contraído malária – e provocou o final da expedição em 1829, um ano e meio antes do prazo previsto para seu término. Do ambicioso itinerário original traçado ela pudera cumprir somente metade – assim mesmo um trajeto notável, pois abrangia um percurso, fluvial e terrestre, de 17 mil quilômetros, a partir do Rio de Janeiro, e atravessando São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Amazônia.

Outras expedições da época, menores e menos ambiciosas – como as de Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich Philipp von Martius, Auguste de Saint-Hilaire, ou a de Maximiliano Alexandre, príncipe de Wied Neuwied –, que não contaram com tantas adversidades, tiveram logo divulgação adequada entre o público europeu e viram seus acervos científicos incorporados imediatamente a importantes instituições. A Langsdorff, desbaratada pelas trágicas circunstâncias, não teve a mesma sorte e sofreu ainda dois grandes reveses: seu volumoso arquivo, com mais de 800 documentos importantíssimos – inclusive os minuciosos diários escritos pelo barão –, fora enviado à Rússia, país patrocinador da expedição, mas durante nada menos do que um século foi dado como completamente extraviado. Constava de centenas de caixas que continham diários, anotações de viagem, desenhos, aquarelas, mapas, espécies minerais, animais e vegetais, vocabulários indígenas, material etnográfico e correspondência diversa, que permaneceram em uma sala fechada, ainda em suas embalagens originais. Somente foi descoberto por acaso em 1930, por ocasião de uma reforma efetuada no antiquíssimo prédio da Academia de Ciências de São Petersburgo (nessa época, Leningrado). Mas algumas peças preciosas desse arquivo nunca puderam ser recuperadas – como os diários do astrônomo Rubtsov, membro da expedição.

Além disso, as extraordinárias coleções mineralógicas, etnográficas, botânicas e ictiológicas, avulsas, que Langsdorff foi remetendo com regularidade germânica à Rússia de 1813 – ano em que chegou ao Brasil na qualidade de cônsul-geral daquele país – a 1827 (“muitos caixas”, costumava dizer em seu português peculiar), foram dispersadas entre várias instituições e sofreram alguns reveses e desgastes. Os piores foram os causados pela inundação que atingiu Leningrado em 1924 e pelas consequências do bloqueio da cidade na 2ª Guerra Mundial.

Apesar disso, tão grande é a importância desse acervo que mesmo durante o século 19, a expedição foi tida em grande conta – na Europa – por cientistas, estudiosos e instituições oficiais. Do final do século 19 até hoje, mais de 400 obras, em dez idiomas, foram publicadas sobre ela, em todo o mundo. Em 1914, uma nova expedição russa à América do Sul foi organizada por membros do Instituto Biológico Pietr Lesgaft, e com ela veio o cientista e linguista Guenrikh Manizer. Na Biblioteca Nacional e nos museus do Rio de Janeiro ele estudou a fundo os pormenores da grande viagem. De volta à Rússia, aperfeiçoou suas pesquisas e conseguiu completar, em 1917, a primeira biografia de Langsdorff. Mas contraiu tifo e morreu seis meses depois, o que fez com que seu livro permanecesse inédito na Rússia até 1948, e no Brasil até 1967.

A lenda negra de Langsdorff

No Brasil, enquanto isso, uma “lenda negra” ia-se formando, injustamente, sobre a figura de Langsdorff e sua expedição. Responsável por essa visão foi o primeiro historiador que, entre nós, dela se ocupou – o visconde Alfredo d’Escragnolle Taunay, que em 1875 publicou e comentou, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, uma das variantes do diário de campo escrito pelo pintor Hércules Florence, entre 1825 e 1829. Como sobrinho do pintor Adrien Taunay, o visconde não podia deixar de expressar o ressentimento da família contra o que julgava ser uma irresponsabilidade do chefe da expedição, no referente à sua trágica morte. Procurou incriminá-lo, buscando no texto (objetivo e imparcial) de Florence argumentos para provar que mesmo antes de ter sido atingido pela malária Langsdorff apresentava sinais de desequilíbrio mental.

Essa visão, aliada à ignorância do amplo material que nessa época já se divulgava na Europa, contaminou os poucos que se ocuparam no Brasil da expedição, como Cândido de Mello Leitão e Rubens Borba de Morais. Este último, ainda em 1968, referia-se a ela como “malfadada” e dizia que “as coleções enviadas a São Petersburgo foram reconhecidas como de pouco valor do ponto de vista científico”. Até hoje é muito escasso o material disponível para pesquisa, no Brasil. Nem uma só linha sobre o assunto pôde ser achada pela Internet. E o verbete “Langsdorff” da Enciclopédia Delta-Larousse dá a expedição como “nunca realizada”.

Na verdade, o conjunto de documentos e coleções guardados até hoje na Rússia e em outros lugares da Europa[1] contém dados preciosos sobre a história socioeconômica, a etnografia, a estatística, a geografia física e econômica, a toponímia, muitos ramos da zoologia e botânica, a meteorologia e a mineralogia do Brasil do século 19. Representa uma verdadeira radiografia do período e mostra, como diz Komissarov, que “o globalismo ecológico de Langsdorff é o traço substancial de sua visão de mundo”.

A busca do tesouro perdido

Entretanto, após a redescoberta do arquivo na União Soviética, também no Brasil, a partir de 1940, algumas pessoas começaram a se interessar pelo assunto e pela riqueza do acervo guardado no exterior. Com as circunstâncias da Guerra Fria e o habitual fechamento de informações por parte da União Soviética, resultaram infrutíferas todas as tentativas de se obter notícias sobre o material lá existente – sem resposta ficou, entre outras, uma carta do historiador de arte Gilberto Ferrez, encaminhada por Jorge Amado à Academia de Ciências da URSS.

Informado do assunto pelo diretor do Patrimônio Histórico, Rodrigo Melo Franco de Andrade, o diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, dom Clemente da Silva Nigra, monge beneditino, começou a pesquisar e escrever sobre a expedição. Em 1966 publicou pela Universidade de Yale (EUA) o livro O Barão George Henrique de Langsdorff, 1774-1852 – O Grande Cientista Esquecido do Brasil, obra que no Brasil só contou com uma edição mimeografada, apresentada em um Colóquio Teuto-Brasileiro no Recife, em 1968.

Dom Clemente visitou por duas vezes os arquivos da Academia de Ciências de Leningrado, em 1963 e 1965. Da última vez integrou uma missão cultural do Brasil, chefiada pelo jornalista Assis Chateaubriand, a quem conseguira interessar pela causa Langsdorff. Chateaubriand fez publicar, na década de 1960, extensas reportagens sobre o assunto na revista O Cruzeiro. Muito embora dali por diante o intercâmbio entre pesquisadores e cientistas soviéticos e brasileiros houvesse se estabelecido, somente após o advento da perestroika e a abertura para o mundo dela resultante foi que os esforços do governo de Brasília se viram recompensados. Em 1985, por ocasião da visita do Ministro das Relações Exteriores, Olavo Setúbal, à URSS, foi organizada uma exposição com o material recolhido pela Expedição Langsdorff. Dois anos mais tarde um acordo cultural entre os dois países permitiu que o material dessa mostra fosse emprestado ao governo brasileiro, para exposições em Brasília, Cuiabá, São Paulo e Rio de Janeiro.

Quatro simpósios internacionais foram realizados, sobre a grande expedição : em 1974 em Leningrado; em 1988 na Universidade de São Paulo; em 1990 na Universidade de Hamburgo; e em 1992 no Museu Imperial de Petrópolis. A Associação Internacional de Estudos Langsdorff (AIEL), fundada em Brasília em 1990, publicou o acervo inédito de Langsdorff, os livros: Expedição Langsdorff (Alumbramento) e Diários de Langsdorff (Cia. Aluminis), e desenvolveu o chamado “Projeto Langsdorff de Volta” – uma missão científica que refez o trajeto da expedição original, comparando os dados colhidos hoje com os existentes há quase dois séculos.

[1] Nota do Editor: o acervo do Centro de Memória – UNICAMP possui os microfilmes dos documentos dessa expedição, que foram doados pelo professor Boris Komissarov, em 1994.

Referências:

SILVA, D.G.B. (org.). Os Diários de Langsdorff. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 3 volumes, 1997.

Continua na próxima segunda-feira.

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