História, estória, causo

Sérgio Eduardo Montes Castanho – historiador, professor na Faculdade de Educação da Unicamp. Titular da Cadeira 35 do IHGG Campinas 

Há muito tempo escrevi uma crônica com o título que encima este texto. Vou reescrevê-la agora, com algumas alterações no ponto de vista.

Começo lançando uma indagação à solércia do leitor: existe diferença entre “estória” e “história”? Não por insegurança, respondo em cima do muro que sim e que não. Que sim, porque o nosso folclorista Luís da Câmara Cascudo inventou a palavra “estória” para com ela designar os contos e narrativas populares. Muita gente de peso embarcou na canoa sem furos de mestre Cascudo e saiu por aí cascando estórias de arrepiar os cabelos. Muito professor de língua pátria elevou a voz e explicou a diferença entre a ciência que estuda os movimentos da sociedade no tempo, que é a história, e a lenda transmitida oralmente e também por escrito pelo povo, a estória.

Tempos houve em que eu não gostava de usar a palavra estória como narrativa do ocorrido. Achava esse uso um tanto cafona, uma espécie de kitsch linguístico. Cheguei a escrever que estória é uma palavra sem história. Certamente eu remava contra a corrente da língua. Muitos doutos escavadores do passado de nossa língua já mostraram que nas dobras do tempo, no século 13, já se escreveu “estoria” em vez de “história”. Disso há registro. Por essa mesma centúria já se grafou “ystoria” e “hystoria”. É certo que, seja com es, seja com ys ou com hys, era uma só palavra com os dois sentidos. Não se tratava de uma palavra artificial ao lado de outra com autoridade histórica. Acabou vingando “história”, derivada do étimo latino “historia” por sua vez tomado de empréstimo ao grego “historía”.

Por fim, como ficamos, professor? A resposta seria: – Ficamos com história para designar o acontecido social e sua narrativa científica e com a mesma palavra para o gostoso relato, em noite de plenilúnio, do aparecimento do lobisomem. Seria. Até que mestre Cascudo mandou chamar de estória o raconto da mula-sem-cabeça. Mais ainda: João Guimarães Rosa deu o título de “Primeiras estórias” a seu maravilhoso livro de contos. Aí, então, cessa tudo que a velha musa canta ou, cansada, deixou de cantar – e vamos usar estória sem medo de escorregar. Ou seja, todo causo é uma estória. Um momento, “causo”? O pobre falante dá um nó na cabeça. “Quer dizer”, pensa ele (ou ela, para não incorrer em política incorreção), “que além de estória também posso falar causo?” Descendo do pedestal de suprassumo falante e derreado para o degrau de simples murmurante, vê-se ela (ou ele, pelo mesmo motivo) a engolir, numa só colherada, história, estória e causo.

Que dizem disso os antepassados do Dr. Google, nossos imensos Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss?

Vamos começar pelo Aurélio. No verbete “estória” do seu Dicionário o mestre não perde tempo: manda ver “história” e ponto final. Já no verbete “causo”, o Aurélio (que tempos atrás era sinônimo de dicionário, assim como gilete era sinônimo de lâmina de barbear) não deixa margem a dúvida: é o relato, de gosto popular, de acontecimentos reais ou fantásticos. E o grande dicionarista deita larga sinonímia, comprazendo-se com a exploração da palavra que o gênio do povo forjou a partir de “caso” e mediante contaminação com “causa”. É muito alegre ler Raul Bopp, autor da magnífica rapsódia amazônica “Cobra Norato”, que assim escrevia em Putirum: “Joaninha Vintém, conte um causo”.

E Houaiss, que diz ele? “O mesmo que história”, na pegada de Aurélio. Mas dá autoridade à palavra ao firmar sua genealogia do francês antigo “estoire”. Quer dizer então que Cascudo não inventou essa estória, apenas adaptou-a do velho falar gaulês! E “causo”? É bom português? Para o grande dicionarista, linguista de primeira, tradutor sem par do Ulisses de Joyce, causo é “o que aconteceu; acontecido, caso, ocorrido”. Tem pedigree? Para Houaiss, não. É “dialeto brasileiro”, nasceu aqui, fruto do cruzamento de “caso” com “causa”.

E aqui vem um ponto que me parece relevante. Não se trata daquele ponto que é o exagero de quem relata um causo, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Não. É coisa importante para quem lida com a teoria histórica. A história, no seu sentido próprio e maior, é a ciência que estuda a trama social no tempo, além de ser essa mesma teia da sociedade à medida em que se tece.  Mas a mesma palavra “história” pode ser empregada tal qual “estória” como conto, narração, caso, enredo. Pois bem: essa história, embora parente de causo, dele é diferente. Isso porque a história é contada para resgatar a memória das gentes e dos fatos e até para dar uma lição, quando então é uma fábula, tem uma moral. É por isso que a gente pergunta: qual é a moral da história? Já o causo, não. Ele é contado para encher o tempo, sem maiores preocupações nem de resgatar memória nem de corrigir costumes. É por isso que na cidade grande não se contam causos. O tempo já está cheio. De trabalho, de chateação, de medo, de competição, de vergonha.

O causo é típico da roça, do sertão, do terreiro, do alpendre, da luz mortiça do lampião ou da luz clara da lua e das estrelas, sempre à noite, quando a gente encontra a preguiça num moirão e afina o ouvido para escutar o relato do sucedido mascando a ponta dum capim seco. O causo pode até assustar. Mas ninguém leva muito a sério.

É por essas e por outras, principalmente por outras, que andam dizendo que esta vida é um causo!

Imagem: de PublicDomainPictures por Pixabay 

3 comentários

  1. Parabéns pelo texto, pois agora entendi, de quando, eu era pequeno e meus avós e tios falavam causo ao contar algo quando moravam no interior (no sítio).

    Abraços
    Amauri Paes

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