Regina Márcia Moura Tavares – antropóloga e museóloga. Titular da Cadeira 25 do IHGG Campinas.
No ano de 1976, em edição de domingo do mês de outubro, o jornal Correio Popular, da cidade de Campinas, abria matéria sobre o destino de Joaquim Egídio com os seguintes dizeres:
O distrito de Joaquim Egídio, embora não oficialmente fundado em 1842, praticamente parou no tempo: o número de habitantes há muito vem registrando o mesmo índice, oscilando entre 8 e 9 mil. Apesar da vida simples da maioria, os problemas que a população encontra atualmente, segundo moradores, parece que aumentaram a cada dia. Isso em virtude do custo de vida, salários baixos de quase a totalidade da população e à falta de empregos. A cafeicultura, principal atividade do Distrito, com o passar do tempo, extinguiu-se quase que totalmente, conservando apenas minguado comércio de pequenos empórios, bares e mercearias.
Na época, representava eu a PUC-Campinas no CONDEPACC, Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Campinas, do qual sou co-fundadora e ainda conselheira, agora pela Academia Campinense de Letras, sendo que a mim coube relatar o processo de número 039.919/88 relativo ao tombamento do imóvel conhecido por “Casarão”, localizado na Avenida Heitor Penteado, 1172 (esquina com Rua José Inácio), no Distrito de Joaquim Egídio.
Considerando a abordagem histórico-antropológica do parecer que elaborei em maio de 1989, o qual levou à aprovação por unanimidade do pedido de preservação do imóvel, julgo interessante publicá-lo na revista do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico, em sua íntegra, de modo a estimular reflexão sobre o que deve justificar a preservação de um bem construído:
Em dezembro de 1988 chegou ao CONDEPACC um pedido de tombamento do “Casarão” do referido Distrito, assinado por cerca de 20% de sua população urbana.
Na leitura do projeto da arquiteta Ana Villanueva, encarregada da restauração do imóvel em 1987, a fim de que o mesmo servisse como sede da subprefeitura de Joaquim Egídio e Ponto de Cultura, percebe-se a preocupação em justificar a preservação de um bem muito mais pelo seu uso do que pelo trabalho de criação que o mesmo possa conter. Citando o renomado museólogo e historiador da USP, Ulpiano Bezerra de Menezes: Se toma cultura como a maneira de organizar a existência, conclui a restauradora que não se pode olhar para os bens culturais desvinculando-os de sua dinâmica cotidiana, isto é, de sua relação com a vida comum. Insiste a mesma na preservação do produto simbólico, sugerindo a desmistificação do bem arquitetônico como função puramente contemplativa, considerando como de importância maior a sua reintegração na comunidade, por meio das necessidades da mesma.
Na justificativa da solicitação do pedido de tombamento, às fls. 33 do processo, lê-se:
Solicitamos o tombamento do “Casarão” em Joaquim Egídio por várias razões:
1.Proteção de um bem já restaurado;
2.Garantia de um espaço vivo, vital e coletivo onde são realizadas atividades socioculturais diversas em benefício das várias faixas socioeconômicas e etárias da localidade;
3.Conservaçăo da memória local dos moradores, assim como também de sua identidade local.
Como encarregada pelo Conselho de instruir o processo, eu me ative ao 3º. item do capítulo Justificativas para tecer algumas considerações que, em meu entender, poderiam contribuir para uma compreensão mais abrangente do que a arquiteta Ana Villanueva já insinuava em suas considerações gerais sobre a validade da restauração do imóvel.
O que pode significar, em termos de identidade local o “Casarão” de Joaquim Egídio? Qual o papel que ele assumia no conjunto simbólico das reIações do Homem com seu entorno, que poderia justificar a mobilização da população na direção de seu tombamento?
Quando, há alguns anos, os índios Kraós abordaram o Reitor da USP objetivando a restituição de sua machadinha ritual, na ocasião um item do acervo do museu universitário[1], poucos sabiam no Brasil que, naquele momento, o até então reduzido grupo nativo passava por uma fase de recuperação da perspectiva de futuro, com um significativo aumento da taxa de natalidade. Instalava-se no seio daquela população, depois de anos de desagregação tribal, a crença de que havia um futuro possível. Resgatar a machadinha ritual se fazia necessário, na medida que ela reforçava a confiança do grupo em si mesmo.
Vi naquele pedido de tombamento encaminhado pela população, por meio de um abaixo-assinado de 174 assinaturas, de um total de 1065 (censo de 1981), uma atitude semelhante à dos Kraós em sua busca de identidade e de permanência. O “Casarão” de Joaquim Egídio deveria conter os mesmos ingredientes, na categoria do simbólico, do artefato indígena, ou seja, representa um bem cuja apropriação coletiva seja capaz de restituir a crença no futuro, a possibilidade da continuação da vida.
Joaquim Egídio surgiu com o esplendor da cafeicultura e o “Casarão” de 1898, de alguma forma, representou para a população a época da fartura, da vida plena. Construído para ser empório e posteriormente alfaiataria, provavelmente, serviu a mesa dos próprios colonos italianos, de hábitos alimentares diversificados os quais, mais tarde, com suas habilidades artesanais prestaram serviços à própria aristocracia latifundiária.
Enquanto abandonado, decrépito e destituído de suas funções sociais o “Casarão”, nos anos que se seguiram ao término do ciclo cafeeiro, não mais representou a fé de uma população em si mesma; pelo contrário, passou a incomodá-la com sua presença indesejável, testemunho tangível do fim de um período de glória e de riqueza. Em seus inúmeros contatos com a população local, nos momentos que antecederam ao início das obras de restauração, a arquiteta Villanueva pode sentir o incômodo que representava para a mesma o prédio abandonado. Pedia-se que o removessem dali; que o pusessem abaixo, pois “enfeiava” a cidade e a denegria com seus ocasionais inquilinos, alguns mendigos e delinquentes.
A Prefeitura de Campinas o elegeu para sede da subprefeitura desapropriando-o e restituindo seu antigo esplendor. O trabalho foi executado com participação intensa da população no projeto que definiu em muitos momentos, o material a ser usado e a técnica a ser empregada. A sensibilidade e a boa formação teórica da profissional responsável pela obra foram capazes de engajar na proposta de preservação do bem a população do distrito a qual, sem o perceber, começou então a associar o rejuvenescimento do “Casarão” à uma fase mais promissora para si mesma.
Em minha visita ao local pude senti-lo como foco irradiador de uma nova energia, um catalizador de forças capaz de resgatar a crença de que viriam dias melhores para Joaquim Egídio. Os senhores sentados em suas escadarias comentavam as recentes experiências com o plantio de café que vinham realizando naquele momento dois fazendeiros das redondezas.
Sentia-se pairando no ar, uma promessa de futuro. Havia um sentimento difuso de que a falta de trabalho, a escassez de recursos, as alternativas cada vez mais limitadas de sobrevivência, poderiam ser revertidas. O “Casarão” ali está no coração da cidade, no ponto de convergência dos caminhos das fazendas dizendo que é possível renascer, é possível transformar o status quo.
Tal fato fala a favor do que venho defendendo desde longa data, ou seja, de que o tombamento de um bem se justifica, sobretudo na medida em que já o foi no coração da população. Muito mais do que a excelência dos estilos arquitetônicos que elegemos artísticos e representativos de uma época, do que os eventos da história oficial que tiveram lugar em espaços específicos, deve ser a avaliação do significado de que um bem tem para uma dada população o critério maior norteador num processo de avaliação do que deve ou não ser preservado.
Aos poderes municipal, estadual e federal compete aprofundarem esta questão, descobrindo os mecanismos pelos quais as populações possam assumir a atitude preservacionista, como única capaz de lhes garantir o desempenho de papéis sociais futuros e único terreno sobre o qual o porvir poderá ser concebido, até mesmo através de uma reinvenção do passado.
As assinaturas que reivindicam o tombamento do “Casarão” de Joaquim Egídio eram e são o testemunho vivo de que o futuro do Homem tem de estar calcado nos passos da herança social que ele constrói, cumulativamente ao longo de gerações, pois só ela lhe dá a identidade, só ela o faz sentir-se sujeito da história, só ela lhe dá a crença de que virá um futuro possível.
[1] Nota do Editor: a dissertação de mestrado de Jorge Henrique Teotônio de Lima Melo discorre sobre as consequências socioculturais do movimento organizado entre o grupo indígena Krahô, no ano de 1986, para reivindicar ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) a devolução da peça fundamental de sua cultura material – um machado de pedra denominado pelo grupo como kàjré – que havia sido retirado da aldeia Pedra Branca, hoje localizada no nordeste do Estado do Tocantins, e doada ao Museu pelo antropólogo Harald Schultz. MELO, J. H. T. de L. A vida social de uma Machadinha Krahô. Natal, RN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010.
Boa tarde, os antigos moradores deste casarão eram meus bisavós, avô paterno e tios avós
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Obrigado, quem eram? Diga o nome deles.
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boa tarde! deixe o nome deles aqui! obrigada pela participação no blog do IHGGCampinas
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Os antigos moradores deste casarão eram meus bisavós paternos, meu avô paterno e meus tios avós.
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Joaquim Egydio aos poucos recupera sua regionalidade com A chegada dos turistas, ciclistas, caminhantes. Desfrutam da abundância das estradinha rurais, quase intocadas. Os visitantes apreciam o Centro histórico e o Casarão se faz pujante, viabilizando um passado cultural altaneiro. Parabéns a autora pelo brilhante trabalho de preservação!
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Apenas uma observação: Qual a autoridade dessa pessoa de profissão antropólogo chamado Harald Schultz, para invadir, com a desculpas de estudar seus costumes e FURTAR seu bem ancestral, cultural mais precioso?
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muito bom ! Regina Márcia esse tombamento é muito importante, um dos primeiros casarões do distrito
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