As vilas operárias de Campinas

Daisy Serra Ribeiro – historiadora, diretora aposentada da Coordenadoria Municipal de Patrimônio Cultural. Titular da Cadeira 49 do IHGG Campinas.

Resumo:

No período entre 1926 e 1946, a cidade de Campinas passou por modificações urbanas significativas. Uma série de leis e medidas administrativas foram implementadas no sentido de incentivar a organização espacial do município, para enfrentar uma vocação que teve início no final do século XIX, ou seja, uma função cada vez apta à indústria.

Working class neighborhoods in Campinas (SP, Brazil).

Abstract:

Between 1926 and 1946, the city of Campinas (SP, Brazil) underwent significant urban changes. A series of laws and administrative measures were implemented in order to encourage the spatial organization of the municipality, to face a vocation that began in the late 19th century, that is, a function increasingly suitable for industry.

* * *

Os primeiros problemas de ocupação urbana em Campinas surgiram com a chegada dos trilhos férreos, em 1872, processo que constituiu em aumento significativo da população quando a cidade ainda não tinha infraestrutura para suportar tal demanda. A insalubridade cotidiana evidenciou-se com a proliferação de cortiços, com as parcas redes de água e esgotos apenas nos limites da estação ferroviária da Companhia Paulista. Além disso, as atividades fabris dividiam a mesma área central da cidade com as residências e o comércio.

A situação piorou consideravelmente com as epidemias de febre-amarela ocorridas entre 1889 e 1900. Assim, as providências sanitárias dos governos paulista e local que sucederam ao período epidêmico, assumiram características de diretrizes sociais, justamente quando se experimentava o impulso local da industrialização.

No contexto da valorização do mercado imobiliário, os arrabaldes começaram a ser solicitados para a ampliação da oferta de construção de moradias. Entre os anos de 1920 e 1940, as habitações na área urbana cresceram significativamente, de 6 mil para cerca de 12 mil moradias. O mesmo ocorreu com a mancha urbana, que somava 6 km2 no início do século e atingiu pouco mais de 16 km2 no fim desse período.

Os Relatórios anuais dos prefeitos registram esse crescimento, como o de 1926, onde o responsável pela Repartição de Obras de Campinas, o engenheiro Perseu Leite de Barros, chama a atenção para o acentuado movimento de construções de casas econômicas na periferia da zona urbana. Os locais considerados por Leite de Barros como periferia e arrabaldes eram: Jardim Chapadão, Vila Nova, Vila São Bernardo, Cambuí, Estrada da Roseira e Palheiro. Estes locais foram os embriões dos núcleos que se estabeleceram como as vilas operárias na década de 1930, dado importante para se considerar o avanço da indústria no município.

Entre 1926 e 1927, diante ao crescimento de construções para longe da zona central, a municipalidade iniciou um movimento de organização do espaço urbano. A Lei nº 379, de 1926, o categorizou em quatro zonas: a 1ª, central, considerou a região fronteiriça da estação da Paulista até as ruas Francisco Glicério, seguindo nas laterais, por um lado, a Ferreira Penteado, e pelo outro, a Benjamin Constant; a 2ª zona abrangeu a região hoje ocupada pelo centro expandido, os bairros do Botafogo, parte do Cambuí, parte do Bosque dos Jequitibás e a Vila Industrial; a 3ª incorporou os bairros da Ponte Preta, Vila Industrial, Bonfim e Guanabara; finalmente, a 4ª zona era a transição entre o rural e o urbano, acompanhando as linhas férreas ao saírem da cidade, no início das estradas de rodagem e os córregos que circundavam o perímetro urbano.

Vários loteamentos que mais tarde foram ocupados por vilas operárias tiveram seu nascedouro a partir da Lei de 1926. Foi o caso de uma gleba de terra situada na Ponte Preta, e que fazia divisa com a linha da Paulista e com a rua Barão de Jaguara. O pedido de aprovação do plano de arruamento desta gleba, que pertencia a Ernesto Frey, constituiu um modelo exemplar de implantação de loteamento para as futuras vilas operárias.

A gleba tinha quase 24 mil m2, dos quais 17% foram destinados às ruas e praças. Em linhas gerais, a área construída não excedia a metade do lote e em cada um destes permitiu-se apenas uma edificação; os prédios térreos estariam afastados a dois metros das divisas laterais e a três quando houvesse mais de um pavimento; o projeto determinou algumas ruas exclusivamente residenciais, e nestas a fachada principal estaria recuada a quatro metros do alinhamento da calçada; as ruas de interesse local teriam largura de 10 metros, e os lotes mediriam oito metros de frente e 25 de fundos, no mínimo.

O plano para a gleba de Ernesto Frey foi aprovado em 1927, no mesmo ano em que a Repartição de Águas e Esgotos da Prefeitura apresentou e também conseguiu a aprovação da Câmara Municipal para uma legislação bastante importante, com requisitos de implantação e de construção semelhantes ao projeto de Frey.

Em 1928 temos no bairro da Roseira, próximo à linha férrea da Sorocabana e da estrada de rodagem da Roseira, hoje a avenida John Boyd Dunlop, já no limite da 4ª zona, o pedido de aprovação da planta da Vila Teixeira, de propriedade de Manoel José Teixeira.

As Leis nº 400 e 401, de 1927, são responsáveis pelas primeiras tentativas de sistematizar os novos loteamentos ou arruamentos e, também, as novas construções. A de nº 400 complementou as orientações de Saturnino de Brito no final do século XIX, sobre construções, material, limpeza e fiscalização. A de nº 401 orientou as construções, reformas e reconstruções e áreas demolidas, regulamentou os recuos, as caídas de água, a volumetria de edificações e as categorias de habitação. Todavia, mesmo diante dessas leis, o formato do perímetro urbano seguia um delineamento sem disciplina, conforme se observa nas reclamações de Roberto Bergallo, engenheiro da Prefeitura. Decerto, ambas ensaiaram as determinações do Código de Construções de 1934.

Mesmo sem a administração pública manter uma infraestrutura adequada nos arrabaldes, a possibilidade de incorporação imobiliária, cujo custo era bem mais baixo do que o lucro, referendou as solicitações de loteamento de glebas ao redor das linhas férreas e dos córregos e alagadiços que circundavam as zonas três e quatro do perímetro urbano. A Prefeitura passou a oferecer isenções de impostos para a ocupação organizada das áreas mais distantes.

Assim, quando Diego Molina, proprietário de cerca de 19 mil m2 de terras na região da Vila Industrial, nas baixadas do córrego do Piçarrão, encaminhou seu plano de arruamento desta área, ele considerou os benefícios de seu projeto para terrenos que seriam adquiridos por pessoas de “poucos haveres” e que seu loteamento incentivava o desenvolvimento do bairro. Seus vizinhos, Rossi & Borghi (com outros loteamentos populares na cidade), e Henrique Leite, receberam aprovações para projetos semelhantes em suas glebas.

As solicitações de abertura de loteamentos populares cresciam. Em 1931, as repartições de Obras e Viação e de Águas e Esgotos já exigiam um pouco mais dos projetos, pois o requerente da Vila Dona Nair, no bairro Ponte Preta, viu-se obrigado a refazer vários itens para receber a aprovação de seu loteamento. Eram cinco quadras estritamente residenciais, as construções obedeceriam aos recuos de fachada e laterais, manteriam uma habitação por lote, entre outros. Por fim, o projeto se beneficiou da isenção de impostos.

A aprovação de plano de arruamento e divisão de lotes de Arthur e Emy Odescalchi, em gleba no bairro Ponte Preta, em 1932, ocorreu em um momento de transição para a história da cidade. O pedido seguiu para o Conselho Consultivo e não mais para a Câmara Municipal, uma mudança política de relevância que gerou impactos significativos na estrutura da administração pública, favorecendo o melhor acompanhamento da ocupação do solo urbano pela Prefeitura.

O Código de Construções de 1934 enfim padronizou a ocupação do solo em Campinas. Mesmo assim foi só depois de 1936, quando a adução de águas do rio Atibaia possibilitou a distribuição em todos os bairros da cidade é que realmente o Código pôde ter ação completa, já que um novo empreendimento deveria ter a garantia no abastecimento de água.

Nesse período havia mais de 170 instituições de aposentadoria e pensões em pleno funcionamento e seus quadros de segurados ativos crescia vertiginosamente por todo o país, pavimentando as relações entre o governo, empregador e empregado, impostas pelo governo de Getúlio Vargas, no tocante ao incentivo da previdência social e da aquisição da moradia.

Portanto, a configuração de cidade industrial foi tomando forma, sobretudo através da inserção desses núcleos habitacionais. Se desde o final do século XIX a localização tradicional de operários em Campinas era a Vila Industrial, inserida entre as linhas férreas da Paulista e o córrego do Piçarrão, bem na entrada da estrada de rodagem de Itu e São Paulo, nas primeiras décadas do XX verificam-se aprovações de planos de arruamentos para a construção de habitações com características populares.

Somando-se às essas moradias populares que adensavam o tradicional bairro operário, podemos incluir como exemplos já tardios as vilas Dias e Ângela, cuja implantação data dos anos de 1940. Subindo o espigão em direção ao Cemitério da Saudade, tendo na baixada ainda o córrego do Piçarrão, encontramos em formação dois futuros bairros cuja ocupação também esteve ligada ao desenvolvimento industrial: a Ponte Preta e a Vila Marieta.

A Vila Marieta, na baixada do córrego, havia sido inserida ao perímetro urbano no Projeto Cadastral de Vieira de Macedo, em 1929, mas sua ocupação efetiva foi feita pela Imobiliária Campineira, em 1936, através do Decreto nº 76. Quando incluída em 1929, a justificativa de Vieira versou sobre o fato desta região ter encampado muitas residências, comércio e toda uma vida cotidiana urbana sem nenhum controle da municipalidade. A ocupação do solo foi mesmo organizada e cadastrada em 1936, as construções foram sempre dentro dos padrões populares e construídas por empresários ou por iniciativa de trabalhadores.

O bairro da Ponte Preta, que corre ao lado da linha férrea da Paulista, tem em seus limites a Vila Industrial, a Vila Marieta e o Proença, bairro mesclado de pequenas moradias operárias e de residências maiores para uma população abastada. Nessa região predominaram as fábricas de tecidos, de modo que a construção econômica foi bastante intensa. Projetos de arruamentos e construções se estenderam até a década de 1950, sendo que em uma das maiores vilas projetadas, na Vila São Paulo, foi planejada a construção de duzentas casas operárias, em 1942.

Aprovadas entre 1940 e 47, as Vilas Meirelles e Elza, ao lado dos trilhos, são vizinhas e têm a avenida Ângelo Simões a dividi-las no ponto mais alto do espigão, a primeira composta de 50 casas e a segunda com 70, todas com a mesma fachada e com padrão econômico e mínimo, conforme os termos da legislação da época.

A localização destas vilas na Ponte Preta, deixa claro que, nesse período, a intenção era privilegiar as fábricas de tecidos, já que essas vilas estão na área das ruas Oscar Leite, Vitoriano dos Anjos, General Carneiro e dos trilhos da ferrovia, onde estas industrias se concentraram.

Do outro lado da cidade, a região das ferrovias Mogiana e Sorocabana também se povoava de núcleos operários. Neste espaço, o bairro do Bonfim abrigava fundições desde o século XIX e continuou com sua vocação fabril. Quando os sítios foram se transformando em arruamentos populares, um dos maiores proprietários foi os Rossi & Borghi, que, aliás, não atuou apenas nessa região, como também na Vila Industrial, Cambuí, Vila Nova, entre outras regiões.

Na década de 1940, Domício Pacheco e Silva apresentou dois projetos de loteamentos residenciais para construções populares, as Vilas Cambuí I e II, e o decreto de autorização já estava vinculado ao Decreto-lei nº 82, de 1940. Essa legislação permitia dois tipos básicos de habitações, o tipo mínimo e o econômico, com possibilidade de três padrões: o tipo A, com um quarto e uma sala; o tipo B, com dois quartos e uma sala; o tipo C, com três quartos e uma sala. Havia, ainda, as habitações proletárias do tipo econômico com um só pavimento e com, no máximo, 60 m2.

O carro chefe da aplicação das normas nos projetos econômicos foi a Vila dos Funcionários, que passou a ter o nome do arruamento original, Vila dos Jequitibás. O projeto ofereceu duas linhas, uma para os funcionários públicos municipais e outra para os operários municipais, sendo que a primeira continha dois tipos de projetos, um com disposições mínimas e o segundo que poderia incorporar até três quartos. Mas, de maneira geral, a característica construtiva das duas linhas eram as mesmas, por tanto bastante econômicas. Este projeto consagrou as plantas básicas populares fornecidas pela prefeitura para construções padronizadas.

Os prédios eram geminados formando conjuntos de dois a dois, ou em grupos de seis. Os recuos laterais eram de um metro e meio, na fachada eram de quatro metros, e os fundos alcançavam comprimento de 18 metros. Na área dos fundos ficava o telheiro com tanque e varal, podendo acomodar também um galinheiro e um depósito de lenha ou carvão. A novidade dessas construções era o uso de meio tijolo para paredes externas e divisórias, uma questão de ordem técnica construtiva e que barateava a obra.  Além dessa simplificação, também o pé direito era reduzido, os cômodos tinham área mínima, pisos com ladrilhos de cerâmica e telhados sem forro.

A consequência mais evidente de todo o processo que resultou em uma política de habitação popular em Campinas foi o plano de loteamento da Vila São Bernardo, autorizada pelo Decreto nº 93, de 1941, em terrenos de Rossi & Borghi, como vimos, dos maiores proprietários de terras destinadas a moradias populares. A gleba estava localizada na Vila Industrial entre o córrego do Piçarrão e os trilhos da Paulista, praticamente na saída de Campinas para São Paulo, pela Rodovia Anhanguera.

O Decreto que aprova o loteamento situa mais precisamente o plano de arruamento e o loteamento na 3ª zona urbana, que margeava a estrada municipal de Viracopos. Poucos anos mais tarde, a área da vila foi comprada pela a Prefeitura de Campinas e, em 1946, através da Lei federal nº 9.218, cedida à Fundação Casa Popular.

Consideramos que esta seja uma ação modelar, por reunir no seu bojo as várias etapas de dinamização do processo de ocupação urbana, especificamente no que concerne às políticas de moradias populares da cidade, em conexão direta com uma política nacional. A Fundação Casa Popular foi o primeiro órgão de âmbito nacional voltado exclusivamente para atender às necessidades de moradia da população operária, ou de baixa renda, por meio de uma Lei que foi criada em 1º de maio de 1946.

As moradias populares em Campinas, construídas entre o final dos anos 1930 e 1940 tinham uma semelhança entre si bastante acentuada, tanto no desenho, quanto nas plantas ou na ambientação do espaço em que estavam inseridas. Mesmo com a mudança acelerada que o desenvolvimento urbano promoveu é possível ainda hoje identifica-las como unidade ou até como núcleos, com suas ruas estreitas, calçadas acanhadas e uma certa aglomeração arquitetônica.

A história que acompanha a formação dessas áreas é praticamente idêntica em qualquer parte da cidade, pois estão ligadas à uma política urbana de moradias diretamente assessorada pela administração municipal, que sob a orientação normativa do governo estado novista ia desenhando a cidade industrial moderna na qual Campinas se transformava.

Assim, os novos bairros proletários foram ponteando na planta da cidade, na sua grande maioria próximos às industrias que geralmente seguiam os eixos ferroviários e as novas avenidas que a administração municipal se encarregava de abrir e, com isso, ligando antigos bairros aos novos núcleos, que eram chamados formalmente de “Vilas”.

Aqui cabe a diferenciação entre as chamadas Vilas Operárias de propriedade de uma fábrica, cujo dono arrendava ou cedia através de descontos do salário aos funcionários, e os núcleos de construções populares, cujo proprietário podia ser o poder público ou uma empresa imobiliária, que até financiava ou alugava as casas para o trabalhador. Esta opção foi importante, pois o vinculo entre o morador da casa e o proprietário não era associado ao emprego. No caso dos funcionários públicos, o valor do imóvel era descontado da folha de pagamento, semelhante a um empréstimo, sendo que o comprador era servidor de carreira.

Na proposta de Prestes Maia para o Plano de Melhoramento Urbanos, a questão ligada à moradia popular não tinha destaque especial. Na verdade, parece que ele não via neste ponto nada para salientar; seu conceito urbanístico partia da ideia da criação de unidades residenciais, como as denominava, onde mesclavam-se na malha urbana as diferentes situações econômicas e sociais e apenas que fosse reservado para cada um, lotes conforme sua possibilidade financeira, porém, no mesmo espaço e com a mesma infraestrutura, seja em relação ao saneamento, à educação, ao lazer e outros.

De fato, as ações efetivas de regulamentação urbana do município, Código e Plano somados, além de Decretos e Leis, estabeleceram novos traçados, orientando todo um sistema de ligação entre as várias partes da cidade, propondo alargamento de ruas antigas, abertura de novas avenidas, enfim a tentativa de viabilização de um projeto urbanístico.

Para garantir esta viabilização que se fazia urgente, a administração publica estudou e acompanhou todos os passos legais e práticos necessários para que a questão fosse resolvida. E, para tanto, tinha que considerar o arruamento, a infraestrutura e a construção propriamente dita, portanto o investimento e o financiamento. Além disso, estas áreas não poderiam ser distantes dos locais de trabalho e que, uma vez as construções efetivadas, fossem garantidos o uso e a função especifica de moradia para o trabalhador, e não apenas uma forma de especulação imobiliária. Cabia também ao município a fiscalização de todo esse processo.

As ações no campo das habitações populares haviam se tornado uma realidade na cidade de Campinas e os núcleos econômicos ou se tornaram embriões para os bairros operários ou se integram aos que já estavam em formação, em período anterior a esta política. Percebe-se, também, um aumento de pequenos negócios nessas regiões, como açougues, panificadoras, pequenas oficinas e movimentos de crescimento de barracões industriais.

A reforma administrativa da década de 1930 em diante refletiu com vigor na administração publica e corroborou, de fato, com a implantação de uma política geral de habitação popular em Campinas.

Referência:

RIBEIRO, Daisy Serra. Campinas no Estado Novo : política de habitação popular na formação da cidade industrial. Campinas, SP: IFCH – UNICAMP, [Dissertação de mestrado], 2007.

As teses e dissertações estão disponíveis no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp <http://repositorio.unicamp.br&gt;

2 comentários

Deixe uma resposta