Joice Oliveira – professora, pesquisadora. Doutora em História social pela Universidade de Campinas, Ph.D. em História pela Rice University.
Resumo:
Ao longo da segunda metade do século XIX, Campinas foi um dos principais destinos de milhares de homens, mulheres e crianças comercializados através do tráfico interno de cativos. Para além da dinâmica desse comércio, o presente texto busca revelar quem eram as pessoas vendidas para aquela cidade e como elas viveram e reagiram a mais uma violência do sistema escravista brasileiro.
Abstract:
Throughout the second half of the 19th century, Campinas was one of the main destinations for thousands of enslaved men, women and children traded through the internal slave trade. In addition to the dynamics of the domestic trade, this article seeks to reveal who were those people sold to that city and how they lived and reacted to another violence imposed by slavery regime.
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Ao folhear as páginas da Gazeta de Campinas ou do Diario de Campinas – principais jornais campineiros na segunda metade do século XIX – seus leitores se deparavam com uma seção denominada Escravos Fugidos. Ao longo da década de 1870, os anúncios tornaram-se ainda mais frequentes e denunciavam, muitas vezes, as fugas de homens e mulheres escravizados, que foram trazidos à cidade por meio do tráfico interno de cativos, um negócio lucrativo. Se aquele espaço na mídia da época era reservado aos senhores que buscavam recuperar seus investimentos, aquelas linhas nos jornais trazem pistas da história de centenas de pessoas que almejam livrarem-se do domínio senhorial e, quiçá, da própria escravidão. Tal como fizeram Luiz, Simeão, Bartholomeu e outros cativos que, entre 1870 e 1875, fugiram do sítio de São Pedro, de Francisco Egydio de Souza Aranha (SLENES, 1999. p. 109-115).
No dia 22 de novembro de 1873 – às vésperas do suposto envenenamento que quase tirou a vida de Francisco Egydio de Souza Aranha – pelo uso da substância tóxica mineral denominada solimão e popularmente conhecida como sublimado corrosivo – Simeão, Bartholomeu e Luiz conseguiram se desvencilhar da vigilância do feitor Mathias e escaparam. (OLIVEIRA, 2013).
Passados cinco dias do ocorrido, Francisco Egydio, que ainda se recuperava do susto, publicou o seguinte anúncio no jornal Gazeta de Campinas:
Luiz, crioulo de Iguape, cor preta, meio fula, idade 34 anos, boa dentadura, barba rareada, fala baixo e macio; é muito humilde, tem um sinal de golpe de machado em uma das pernas, altura regular e bom corpo. Fugiu com calça e camisa de algodão de Itu, chapéu velho de pano; costuma andar com um saquinho de pano amarrado na cintura em que traz isqueiro, fumo, fuzil etc.
Simeão, crioulo de Piauí, cor preta, sem barba, nariz chato e grosso, altura baixa, boa dentadura, cheio de corpo, pisa com a ponta dos pés para dentro. Também anda com um saquinho amarrado na cintura em que carrega fumo etc.; levou roupa do mesmo pano e chapéu de palha; ambos fumam cigarros.
Bartholomeu, crioulo de Iguape, cor bem preta, idade 24 anos, boa dentadura, pouca barba, prosa, olhos vivos, altura regular, bom corpo, pés um pouco grandes, fuma cigarros, levou roupa igual a dos outros e um lenço vermelho amarrado na cabeça. (Gazeta de Campinas, 27/11/1873).
Além da riqueza de detalhes com que os três jovens são descritos, chama a atenção o fato deles não serem naturais de Campinas. Luiz e Bartholomeu eram oriundos de Iguape e, juntos, foram submetidos ao tráfico intraprovincial, em setembro de 1866. Luiz era filho legítimo de Matheus e Benedita e, no momento da venda, tinha 22 anos; já Bartholomeu, de filiação desconhecida, tinha 18 anos. Simeão, por sua vez, chegou de muito mais longe. Após uma extenuante viagem saindo da província do Piauí com destino ao interior de São Paulo, o rapaz de 20 anos adentrou o sítio de São Pedro em janeiro de 1867. (Meia Sisa, ano fiscal de 1866-1867 e 1867-1868. Fundo Coletoria de Rendas de Campinas, CMU). Os três fizeram parte de uma multidão de homens, mulheres e crianças traficados dentro do território brasileiro, entre os anos de 1850-1885. Lembre-se que o fim do tráfico interno de cativos foi determinado pela Lei de 27 de setembro de 1885. O § 19 do artigo 3° da lei determinava que o domicílio do escravo é intransferível para Província diversa da em que estiver matriculado ao tempo de promulgação desta Lei. (Lei n° 3.270, de 27/9/1885).
Jornal A Gazeta de Campinas, 27 de novembro de 1873.
O tráfico interno de cativos ganhou força em 1850 com a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que aboliu definitivamente o tráfico atlântico de africanos. Frente à escassez da mão de obra cativa, os traficantes das regiões brasileiras em crescimento econômico se voltaram para o mercado interno no intuito de garantir a reposição da força de trabalho. Robert Slenes estima que entre 1850 e 1881, as transferências interprovinciais movimentaram em torno de 222.500 pessoas, cerca de 7.200 por ano, e, que o número de traficados poderia ter atingido 400.000, considerando as transações intraprovinciais. (SLENES, 2004).
A expansão da lavoura cafeeira no oeste paulista exigiu que os fazendeiros recorressem ao mercado interno para garantir a reposição da mão de obra, expandindo algo que não era novo: a migração forçada dentro do território nacional. Durante as décadas de 1850 e 1860, o comércio intraprovincial predominou. Já em 1870, com a baixa lucratividade da produção açucareira e algodoeira, quando comparada à cafeeira, houve uma intensa comercialização de pessoas do Norte para o Sul do país. De acordo com Slenes, os preços dos cativos em cada região brasileira estavam diretamente relacionados ao preço do principal produto de exportação. Desse modo, diante da valorização do café no centro-sul, o preço dos cativos sofreu grande aumento; em contrapartida, na região Norte, com a desvalorização do açúcar e do algodão o preço das pessoas escravizadas também caiu. Isso não quer dizer, que os principais produtores de açúcar tiveram, necessariamente, que vender sua mão de obra para o sul, mas que eles não estavam em condições de competir favoravelmente com os cafeicultores. Desse modo, a transferência de milhares de cativos, comprados a baixo preço em províncias como Bahia, Ceará, Pernambuco e Alagoas e que seriam vendidos por elevadas quantias em São Paulo e no Rio de Janeiro, compensava as despesas geradas pelas longas viagens e ainda assegurava alta rentabilidade aos poderosos traficantes.
A comercialização de cativos para as regiões cafeeiras se tornou um negócio extremamente lucrativo e Campinas ocupou um lugar central nesta conjuntura. Em 1854, a principal produção agrícola da cidade era o café, que só naquele ano produziu 336 mil arrobas (cerca de 10,8 milhões de libras) em 177 fazendas diferentes. Segundo Renato Marcondes, em menos de duas décadas, a produção cafeeira havia se multiplicado mais de quarenta vezes, o que só foi possível devido à maciça importação de trabalhadores escravizados. (MARCONDES, 2011). A população cativa saltou de 8.190 indivíduos registrada no censo de 1854 para 14.028 pessoas, a maior população cativa da província de São Paulo registrada na primeira matrícula nacional de escravos realizada em 1872. Robert Slenes encontrou indícios de que o censo de 1854 subestimou o número de cativos na cidade de Campinas, registrando principalmente aqueles que residiam em grandes propriedades. (SLENES, 1999).
A partir da análise dos recibos do imposto sobre a venda de cativos denominado meia sisa, das notas de compra e venda e das procurações registradas em Campinas na segunda metade do século XIX, Rafael Scheffer argumenta, que o crescimento da população cativa em Campinas entre as décadas de 1850-1870 estava diretamente relacionado à vasta expansão do mercado interno de cativos. Segundo o autor, a cidade era um epicentro do tráfico interno, no qual pessoas escravizadas eram negociadas diariamente através do comércio intra e interprovincial. O número de entrada de pessoas escravizadas no município foi sempre superior ao de saída, sendo o comércio com outras províncias o principal responsável pela importação de cativos, passando de 71,8% das negociações na década de 1860 para 80,4% na década seguinte, quando o comércio interno atingiu o auge na região. (SCHEFFER, 2012).
Livro de registro de recibos de meia sisa de Campinas, 1867-1868. Fundo Coletoria de Rendas de Campinas, CMU.
O tráfico interno acelerou o desenvolvimento econômico da cidade e fez a fortuna da elite campineira. Detentores de prestígio e influência política, os fazendeiros paulistas, apesar de contrariados pela aprovação da Lei do Ventre Livre, compravam sistematicamente e resistiam às propostas políticas para encerrar o comércio interno e a própria escravidão. A derrota dos cafeicultores veio apenas em 1881 com a promulgação do imposto de importação, que tornava praticamente proibitiva a aquisição de cativos de outras províncias. O oeste paulista, especialmente Campinas, foi ao longo de três décadas uma mina de ouro para traficantes e cafeicultores. (OLIVEIRA, 2019, Capítulo 2). Já para os cativos, aquele era um temido destino.
Mas afinal quem eram os homens, as mulheres e as crianças submetidos à violência da migração forçada? E, qual foi o impacto da venda, intra ou interprovincial em suas vidas? A historiografia tem demonstrado o predomínio de jovens crioulos nas transações, o que pode ser explicado tanto pela preferência dos compradores, que buscavam homens fortes e aptos a suportar o trabalho nas lavouras cafeeira, como também pelas dificuldades enfrentadas no percurso, especialmente nos deslocamento interprovinciais, feitos por terra e por mar, tal como viveu o cativo Simeão. Arrancado do Piauí, ele deve ter encarado um trajeto marítimo até o Rio de Janeiro e caminhado muitos quilômetros até o sítio de Francisco Egydio de Souza Aranha. As extensas distâncias percorridas combinadas com a escassa alimentação, as péssimas condições de higiene e a aglomeração em locais pequenos e quentes tornavam os cativos vulneráveis às doenças e exigiam grande resiliência para que chegassem ao seu destino. [11]
Passaporte de um cativo vendido da Bahia em 1885. O documento permitia o deslocamento interprovincial. Arquivo Público do Estado da Bahia, seção colonial/provincial, fundo Justiça, maço 2897.
Embora os homens jovens e saudáveis fossem a maioria, havia uma importante variedade entre os comercializados. Distinguir mulheres, crianças, mães, idosos e doentes não só expande a nossa compreensão a respeito do perfil, mas também da experiência daqueles que foram submetidos à migração forçada. Até a promulgação da Lei do Ventre Livre, meninas e mulheres eram escolhidas com base em sua capacidade reprodutiva, enquanto seus corpos eram tratados como objetos sexuais, seus úteros representavam uma mercadoria valiosa. Mulheres grávidas e lactantes também eram negociadas e, apesar das proibições legais, muitas delas viviam o trauma da separação de seus filhos. Para as crianças, muitas vezes vendidas sem a companhia do pai ou da mãe, o tráfico interno representava um trauma irreparável e as chances de sobrevivência à violência dos traficantes eram mínimas.
As famílias foram duramente atingidas pelo tráfico interno, não somente aquelas formadas exclusivamente por pessoas escravizadas, mas também os núcleos familiares compostos por cativos, livres e libertos. No ano de 1869, o Art. 2° do decreto n° 1.695, de 15 de setembro de 1869 proibiu a separação de crianças menores 15 anos de seus pais, dois anos depois, a lei de 29 de setembro de 1871 diminuiu essa idade para 12 anos. Contudo, era comum encontrar famílias sendo desmembradas. Os casamentos, especialmente aqueles não sacramentados pela igreja, eram frequentemente dissolvidos e os cônjuges eram registrados e comercializados como solteiros. Em decorrência disso, as crianças eram consideradas “filhos ilegítimos” e facilmente separados de seus parentes no momento da venda. No caso dos núcleos heterogêneos, a situação podia ser ainda mais complicada, como nos casos em que a mãe era liberta e o filho permanecia escravizado e submetido à vontade senhorial. (Sobre as viagens no comércio inter e intraprovincial: SLENES, 1976 e OLIVEIRA, 2019).
Como bem observou Sandra Graham, … toda a vida escrava tinha como pano de fundo a possibilidade de venda e mudança para um lugar estranho. (GRAHAM, 2005).Fosse para atender os interesses econômicos ou para satisfazer a vontade senhorial de punir algum membro da família, isto porque, a venda poderia acontecer como forma de retaliação à alguma atitude considerada desrespeitosa. Por isso, o medo de ser vendido e ter seus vínculos desfeitos era uma constante na vida de homens, mulheres e crianças escravizados. Para aqueles sujeitos, ser negociado para um lugar distante significava não só a destruição de suas redes familiares e comunitárias, mas também o fim de direitos adquiridos e do sonho da liberdade.
Diante de um futuro incerto, havia entre os cativos um temor específico de ser vendido para Campinas. Pelas redes do tráfico interno, circulavam rumores sobre as crueldades de muitos senhores campineiros e o penoso regime de trabalho nos cafezais. (OLIVEIRA, 2019, Capítulo 4). Ao chegar ao temido destino, eles precisavam não apenas superar os traumas do desenraizamento e dos lares partidos, mas também enfrentar a adaptação em uma nova comunidade. Ao estudarmos a experiência dos cativos nas fazendas campineiras, é possível notar que, em muitos casos, os naturais de Campinas tinham a preferência de seus senhores quando comparados àqueles provenientes de outras regiões. Os campineiros se beneficiavam de acordos paternalistas e usufruíam de maior acesso aos trabalhos especializados, ao cultivo de roça e até mesmo à concessão de alforria. Além disso, para os forasteiros era preciso estabelecer novos laços familiares e sociais na tentativa de refazer, de alguma maneira, suas vidas.
Para muitos dos sujeitos vindos de pequenas propriedades e centros urbanos, desacostumados ao intensivo trabalho da produção cafeeira, a vida em Campinas significava uma dolorosa e drástica mudança. Nas fazendas cafeeiras o trabalho começava ao amanhecer do dia, os cativos trabalhavam no plantio, cultivo, colheita e beneficiamento do café, além de se dedicarem a outras tarefas como a construção e manutenção de prédios da fazenda, o cultivo e a preparação de alimentos para subsistência, o trabalho doméstico e o cuidado de crianças na casa grande.
Se por um lado o medo da venda aterrorizava aquelas pessoas, por outro também impulsionava diversas formas de resistências. Para impedir a própria negociação ou de algum familiar, homens e mulheres escravizados buscaram na justiça o direito de comprar a liberdade e de se livrar do tráfico interno e, por conseguinte, da escravidão; cometeram atos de violência contra senhores, traficantes e até mesmo contra seus próprios corpos. Para aqueles que não conseguiram evitar a venda e acabaram em alguma senzala campineira, tal como aconteceu com Luiz, Bartolomeu e Simeão, a fuga era, muitas vezes, a última saída. Ela podia significar não só o rompimento com o cativeiro, mas para muitos, a esperança de retornar para seus lares e reencontrar seus entes queridos.
Para Luiz e Simeão, a tentativa de romper com a sina imposta pelo tráfico interno não foi bem sucedida. Eles foram recuperados e avaliados no inventário de Francisco Egydio de Souza Aranha, em 1875. Já com Bartholomeu, talvez o destino tenha sido mais generoso, uma vez que ele desapareceu definitivamente dos registros do sítio de São Pedro. Ao longo desse texto, buscamos entender Campinas como um lugar crucial para o tráfico interno e para escravidão, mas principalmente almejamos olhar para as pessoas que para lá foram arrastadas e refletir sobre o significado da migração forçada na vida daqueles homens, mulheres e crianças.
Imagem de destaque:
CASA de Negros. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra64789/casa-de-negros>. Acesso em: 09 de Out. 2020.
Referências:
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GRAHAM, Sandra. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
Lei n° 3.270 de 27 de setembro de 1885. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaTextoSigen.action?norma=545046&id=14377125&idBinario=15779572&mime=application/rtf Acesso em: 02/10/20.
Livro de Registro de Meia Sisa, ano fiscal de 1866-1867 e 1867-1868. Fundo Coletoria de Rendas de Campinas, CMU.
MARCONDES, Renato Leite. “A estrutura fundiária e cafeeira de dois municípios do Oeste Paulista: Campinas e Ribeirão Preto no início do século XX”. Revista de História. v. 165, 2011. p. 403–424.
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