Rafael da Cunha Scheffer – historiador, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).
Resumo:
O presente trabalho visa dar profundidade ao mercado de escravos em diversas cidades sulistas, na segunda metade do século XIX. Investigando o comércio local e interprovincial, procuro calcular seu volume e formas de operação, seu impacto na população cativa dessas províncias e suas conexões com uma cidade importadora dessa mão de obra no Sudeste, Campinas. Busco ainda os comerciantes envolvidos neste negócio, a maneira com que atuavam neste mercado, investigando algumas experiências como negociantes de escravos, de construção de laços e redes comerciais.
Slave trade from Brazilian South to South-east, 1850-1888.
Abstract:
This article aims to give depth the slave market in several brazilian southern cities in the second half of the nineteenth century. Investigating local and interprovincial trade, I try to calculate its volume and forms of operation, its impact on the captive population of these provinces and their connections to a city that import labor in Southeast, Campinas (SP, Brazil). I search traders involved in this business, the way they acted in this market, investigating some slave traders experiences and the building of business networks.
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Em 9 de outubro de 1876, Gabriel Leite da Cunha, residente em Campinas, adquiriu um escravo de nome Manoel, de 15 anos de idade. A compra de cativo era normal em uma sociedade escravista, mas o que nos chama atenção nessa transação é o fato de o vendedor de Manoel ser residente em Pelotas, RS, portanto, a centenas de quilômetros. Esse fato nos coloca diante de uma transferência desse trabalhador entre províncias e contextos socioeconômicos completamente distintos. Um caso como esse ilustra uma cena recorrente no Sudeste brasileiro na segunda metade do século XIX: a chegada de escravos de outras regiões do Brasil, transferidos para a lavoura cafeeira em expansão.
O comércio interno de escravos surge, assim, como um tema de estudo fundamental para entendermos as mudanças por que passaram a ordem escravista no Brasil, na segunda metade do século XIX.
Estudos sobre o comércio nacional de escravos foram realizados ao longo dos anos, crescendo em volume em períodos mais recentes e abordando as transferências cativas em diversas regiões, especialmente na segunda metade do século XIX. Esse recorte temporal ocorre devido à própria disponibilidade de registros sobre essas transferências. Somente ao longo das décadas finais do século XIX é que o Estado brasileiro passou a documentar amplamente a compra e venda de cativos. O registro público da transferência, as notas cartoriais de compra e venda, nossa fonte principal de informação, foram obrigatórias somente após 1860 (antes disso, um documento particular podia registrar essa transferência). Assim, nosso recorte está preso tanto à construção de um mercado nacional de escravos, isolado do mundo atlântico quanto à maior disponibilidade de informações.
A partir do momento em que o mercado nacional de escravos passou a ser a única fonte de mão de obra disponível para os senhores escravistas, as transferências dentro do território nacional surgiram como um problema específico nos debates políticos nacionais.
Pouco se sabe do volume e, logo, do impacto que essas transferências tiveram em posses de escravos em todo o Brasil. No geral, pela pesquisas sobre o tema, focadas ou não na discussão do comércio de cativos, sabemos que escravos de outras províncias brasileiras foram vendidos para o Sudeste, o que é indicado pelo crescimento absoluto e proporcional da população cativa nessa região. Contudo, a atração de escravos de outras regiões para o Sudeste, o impacto desse comércio em regiões e economias fora da atividade cafeeira, e a real importância das transferências interprovinciais para a ampliação do número desses trabalhadores permanece um desafio. A compreensão dessas questões, na concepção desta tese, passa fundamentalmente pela análise das negociações em uma localidade importadora de mão de obra no Sudeste brasileiro, Campinas, ligada à expansão da cafeicultura e da fronteira agrícola na região.
Buscamos uma série de fontes que nos permitissem ter uma visão mais completa dessas transações e dos trabalhadores comercializados: o imposto de meia sisa, pago na transferência de propriedade dos escravos, e as notas cartoriais dessas transferências.
A meia sisa foi instituída no Brasil em 1808, com a chegada da família real e como forma de obter mais recursos para o tesouro. Ao longo do século XIX, o imposto de meia sisa (ou 5% do valor dos cativos negociados) gerou registros de vendedores e compradores de trabalhadores, além de informações que permitem traçar o perfil dos negociados. Entretanto, especialmente antes da década de 1870, o registro de meia sisa apresenta diversas lacunas de informação, identificando vendedores e compradores, mas frequentemente apresentando poucos dados sobre os cativos negociados e mesmo sobre o local de residência das partes envolvidas, o que dificulta nosso entendimento não apenas do perfil dos trabalhadores negociados, mas, principalmente, das direções desse comércio.
De toda forma, o registro de meia sisa passou a ser mais completo com o tempo e, fundamentalmente, continuou sendo uma necessidade para a legalização da transferência da propriedade escrava em todo o período analisado. Com a instituição da obrigação do registro cartorial da compra e venda de cativos, a comprovação legal da transferência só estava completa quando nessa escritura fosse registrado também o pagamento do imposto, exigência obedecida em todo o acervo de notas analisado.
As notas de transferência de escravos, registradas em cartórios, foram a principal fonte utilizada. As escrituras de compra e venda de cativos, obrigatórias a partir do inicio da década de 1860, indicam-nos dados sobre os compradores e vendedores dos escravos, geralmente informando seu local de residência, posto ou ocupação, e revelando se o negócio tinha a intermediação de algum procurador. Sobre os cativos, traziam informações tais como: nome, idade, profissão e, muitas vezes, origem dos mesmos, além dos preços. A partir de meados da década de 1870 apresentam os dados de matrícula dos cativos, como local e número (no município). Dessa forma, esse registro permite a identificação e qualificação das partes envolvidas e dos trabalhadores negociados, com precisão maior do que a encontrada em outras fontes.
Pesquisamos os livros de notas de tabelionatos em Campinas e nas localidades do Sul do Brasil. Na cidade paulista, pesquisamos os acervos do 1o e 2o Tabelionatos de Notas, que ainda se encontram sob a guarda dos próprios estabelecimentos. Nesses, encontramos dezenas de livros de notas e transferências, que entre outros bens indicavam a compra e venda de cativos. Realizamos o fichamento desses livros em um banco de dados do programa SPSS (Statistical Package for The Social Sciences), construindo um modelo também utilizado para registrar os dados extraídos da pesquisa no Sul do Brasil.
Para a discussão dos temas e problemas levantados, procuramos construir o texto a partir de uma discussão regional do comércio de escravos e seguindo para um debate mais temático, voltado à organização do comércio de cativos e aos negociantes. Apesar das discussões centrais da pesquisa serem baseadas em fontes seriadas e uma leitura quantitativa delas, ao longo de toda a tese buscamos levantar a experiência dos indivíduos negociados e o lado humano dessas transações. Esse lado foi explorado pelo contexto que algumas das negociações nos informam, além de relatos e anúncios em jornais, acompanhando discussões públicas sobre os impactos desse comércio sobre os trabalhadores e a própria relação escravista.
Dessa forma, no primeiro capítulo apresentamos e discutimos os dados sobre o comércio de escravos registrado em Campinas. A partir da análise de notas e procurações utilizadas nesse comércio, analisamos as direções e volumes dessas transferências. Através das origens e matrículas dos escravos negociados nessa região, discutimos a força das transferências de cativos de diferentes fontes, com a intenção de compreender a conexão entre transferências locais, intra e interprovinciais para o abastecimento de mão de obra nessa região.
No segundo capítulo, discutimos o comércio de escravos em seis localidades do Sul do Brasil. Escolhemos cinco municípios do Rio Grande do Sul e um de Santa Catarina a fim de entender a dinâmica local de suas transferências e as suas conexões com um mercado nacional de abastecimento de mão de obra para a cafeicultura em expansão. Além disso, para a historiografia dessas duas regiões o comércio interprovincial de cativos recebeu, ao longo do tempo, uma grande relevância para explicar a decadência da escravidão, mesmo que sem pesquisas específicas sobre esse tema. Assim, entender a dinâmica do comércio de escravos nessas duas províncias respondia duas questões: uma mais geral, sobre a relação desses mercados locais com o nacional em localidades que perdiam escravos; e outra mais específica, sobre o impacto dessas saídas na economia escravista local.
Para explorarmos uma maior diversidade de contextos produtivos, selecionamos municípios com bases econômicas variadas. Assim, selecionamos Alegrete, Cruz Alta, Pelotas, Porto Alegre e Rio Grande, na província do Rio Grande do Sul, e a capital catarinense, Desterro (atual Florianópolis), analisando notas e procurações para a compra e venda de escravos nessas localidades, além de discussões desse tema em jornais locais.
Questionamos o perfil dos escravos negociados nesses municípios e relacionamos o tipo e o sentido de comércio em que eram envolvidos (saídas e entradas, comércio local, intra ou interprovincial), para verificar a relação entre as diferentes transferências com tipos específicos de escravos. Examinamos, por exemplo, se cativos jovens ou do sexo masculino foram mais procurados em transferências interprovinciais em relação àqueles negociados localmente.
Ao mesmo tempo, procuramos indícios da atividade de comerciantes ou firmas que agiam nessa região intermediando a transferência de escravos para o Sudeste brasileiro, com a finalidade de identificar indivíduos e modos de ação dos envolvidos nesse negócio. A atividade desses comerciantes, seu modo de atuação, participação e importância no conjunto das transferências foi a temática explorada no terceiro capítulo da tese. Além dessas atividades e sua organização, analisamos também processos cíveis e criminais e outros registros associados a esses negociantes, buscando construir pequenas notas biográficas e explorar melhor os vários aspectos relacionados à participação desses no comércio desses escravos e em outras agências.
Referências:
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Campinas: IFCH – UNICAMP, [tese de doutorado], 2012.
CONHEÇA: as teses e dissertações estão disponíveis no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp: http://repositorio.unicamp.br
Imagem: Mercado de Escravos: reprodução de práticas comuns durante a escravidão. Venda de pessoas para o trabalho escravo no Rio de Janeiro. Ilustração contida na obra “Deux annes au Bresil” de François Auguste Biard, 1862. Obra rara do acervo bibliográfico do Arquivo Nacional. OR 1731
interessante
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Importante contribuição à compreensão mais ampla da escravidão no Brasil. Desperta muito interesse sobre as fontes utilizadas o que nos remete à leitura da tese que deu origem a este artigo.
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