O terrível fim do negociante de escravos

Jorge Alves de Lima – escritor, historiador. Titular da Cadeira 42 do IHGG Campinas.

Resumo:

As décadas de ouro da economia cafeeira, no final do século XIX em Campinas, não foram marcadas apenas pelo desenvolvimento urbano, pela riqueza e opulência, mas também por delitos julgados no Fórum local. Um dos crimes que marcaram a sociedade da época e teve repercussão nacional foi o assassinato de Manoel Vitorino de Menezes, um dos mais ricos capitalistas do Brasil. Este artigo recria o cenário e o desenrolar desse célebre homicídio.

The terrible murder of the slave trader.

Abstract:

The heydays of the coffee economy, at the end of the 19th century in Campinas (SP, Brazil), were not only known for urban development, wealth and opulence, but also for the crimes judged at the local Forum. One of the crimes most relevants in that society and had national repercussions was the murder of Manoel Vitorino de Menezes, one of the Brazil wealthiest capitalists. This article recreates the scenario and developments of this famous homicide.

* * *

Em 1884, Campinas já era uma cidade pujante. Cercada de centenárias fazendas cafeeiras, de comércio diversificado e da nascente força industrial. Havia filiais de alguns bancos, mas uma parte significativa do movimento bancário era gerido pela agência do Banco Mercantil de Santos, cuja agência localizava-se na Rua do Bom Jesus, 9 (atual Avenida Campos Salles), cruzamento com a Rua do Rosário (atual Avenida Francisco Glicério). Esses e outros atributos econômicos traziam para cá capitalistas, industriais e homens de negócios interessados em novos investimentos.

Um desses homens endinheirados a visitar Campinas foi Manoel Antônio Vitorino de Menezes, morador de Desterro (atual Florianópolis, SC), 50 anos, negociante de escravos e agiota, e que aqui mantinha negócios com José de Campos Salles, Antônio Carlos de Moraes Sales e José Rodrigues Ferraz do Amaral.

No final de setembro de 1884, Vitorino de Menezes saiu de Desterro com destino ao Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e Santos, de onde partiria de volta para a sua cidade, a bordo do navio da companhia de cabotagem. Acontece que ele desapareceu misteriosamente na última etapa de sua viagem de negócios.

Não tardou para que as autoridades policiais de Santa Catarina buscassem informações sobre o paradeiro do milionário negociante. O Diário de Campinas publicou, na primeira página da edição de 27 de janeiro de 1885, a seguinte nota:

Aos 30 de setembro de 1884, embarcou na cidade de Desterro, capital de Santa Catarina, o Sr. Manoel Antônio Vitorino de Menezes, capitalista daquela praça… prometendo regressar dentro de 15 dias. O vapor que o conduziu foi o de nome Vitória, da Companhia do Espírito Santos e Caravelas… Até a presente data, apesar das indagações feitas por cartas e telegramas, não tem sido possível saber onde se acha o Sr. Vitorino de Menezes…

Interessou-se pelo caso o jovem Antônio Duarte de Moraes Sarmento, talvez o pioneiro do jornalismo investigativo local. Soube o jornalista que Vitorino de Menezes hospedou-se no Hotel do Universo, de João Camillo Giraud, localizado na Rua Regente Feijó, 70. Para lá foi Sarmento a perguntar e anotar. Giraud confirmou o registro do desaparecido no dia 10 de outubro de 1884, uma sexta-feira, e colocou seus funcionários frente a frente com o jornalista.

As mais valiosas informações vieram da entrevista com o copeiro Cassiano Fiuza. Ele contou que na noite de 10 de outubro, Vitorino de Menezes lhe pediu para coser o bolso do paletó e que, ao tomar a peça, percebeu que havia dentro dela uma letra de 30 contos de réis e mais 20 contos de réis em notas de 500, quantia que Fiuza afirmou jamais ter visto em toda a sua vida. O hóspede ainda lhe confidenciou que estava em Campinas para resolver negócios pendentes e que no dia 11, pela manhã, iria à agência do Banco Mercantil para falar com o gerente. Fiuza tinha mais informações: ao voltar da agência naquele dia, Vitorino de Menezes lhe contou que o gerente remarcara a reunião para o dia seguinte, domingo, em razão de atender o abonado com mais tranquilidade. Depois dessas revelações, o proprietário Giraud finalizou a reunião apontando que no dia 13, pela manhã, um mensageiro do gerente daquele Banco entregou-lhe a chave do quarto de Vitorino Menezes e uma carta pedindo que Giraud enviasse, pelo mesmo mensageiro, a conta das despesas e as bagagens do hóspede.

Moraes Sarmento saiu do Hotel e dirigiu-se ao Banco, a fim de obter informações com o gerente, José Pinto de Almeida Júnior. O jornalista ouviu de Almeida Júnior que o negociante catarinense havia partido para Santos no trem das 7 horas da manhã do dia 13, segunda-feira, e que para evitar o atraso do seu cliente, propôs-lhe que pagasse a conta do hotel e que despachasse, pelo próximo trem, a sua bagagem.

O jornalista finalizou o dia de trabalho na Estação de trens para encontrar com Max Mundt, o chefe do tráfego da Companhia Paulista, que confirmou a expedição da mala de Vitorino de Menezes para Santos, no dia 14 de outubro, terça-feira.

Moraes Sarmento manteve o sigilo de sua investigação, mas assim que a completou prestou suas anotações e hipóteses ao delegado de polícia, João Gonçalves Pimenta.

Finalmente, seis meses depois da abertura do caso, com a preciosa colaboração de Moraes Sarmento, o delegado de polícia de Campinas, João Gonçalves Pimenta, elucidou o misterioso desaparecimento do negociante de escravos Manoel Antônio Vitorino de Menezes.

As peças se encaixaram após o depoimento de Indalécio Augusto de Vasconcelos, antigo funcionário do Banco Mercantil de Santos em Campinas. O informante não trabalhava mais na agência e residia em Araras, cidade distante cerca de 70 km da nossa Princesa d’Oeste. Vasconcelos era assistente do gerente e, no dia 12 de outubro, domingo, ele recebeu Vitorino de Menezes na agência e o conduziu até José Pinto de Almeida Júnior. Todavia, o chefe não quis a sua presença ali e o liberou pelo resto do dia.

No dia seguinte, segunda-feira, ao apresentar-se para a rotina diária da agência, Indalécio foi informado pelo chefe de que Vitorino de Menezes tomou o trem das 7 horas para Santos e que, em vista do atraso do cliente para a viagem, o banco arcaria com as despesas do hotel e com o despacho da bagagem, sendo reembolsado posteriormente.

Dias depois, porém, ao fazer uso da latrina da agência, Indalécio notou que haviam pequenas manchas parecidas com sangue no assoalho e que daquela fossa se desprendia fétido e nauseabundo odor. Ao comentar com o chefe, Almeida Júnior ordenou-lhe que deitasse ali quantas sacas de cal fossem necessárias, que providenciasse sua obstrução definitiva e a construção de nova latrina.

Algumas semanas depois, Indalécio foi despedido do trabalho e, com a recompensa recebida, resolveu voltar para a sua cidade natal e recomeçar a vida. Meses depois, José Pinto de Almeida Júnior, o gerente, demitiu-se do Banco Mercantil de Santos em Campinas e não foi mais visto em Campinas e em Piracicaba, onde era filho de uma tradicional família local.

João Gonçalves Pimenta precisava encontrar o corpo para encerrar o caso. No dia 27 de março de 1885, uma sexta-feira, o delegado convidou os representantes da imprensa, autoridades e demais pessoas influentes para assistirem a diligência de seus subordinados no prédio onde funcionava a agência do Banco Mercantil de Santos. Horas depois foi retirado do prédio o cadáver de Vitorino de Menezes. Ele trajava frack de alpaca lona preta e calças de casimira da mesma cor. Nos bolsos foram encontrados um relógio inglês com corrente de ouro, 64$500 réis em dinheiro, sendo uma nota de 50, uma de 10 e quatro de 1. Trazia em um dos dedos um anel com grande brilhante, que foi reconhecido pelo joalheiro local, Emílio Decourt.

Ainda durante a exumação do cadáver, às 10 horas de 28 de março, sábado, o delegado recebeu do chefe de polícia da capital o seguinte telegrama: Almeida Pinto está preso e foi encontrado no Hotel de France calmamente tomando o seu café da manhã.

O cadáver foi levado à sala de autópsia, onde os peritos notaram duas fraturas no crânio, uma ligando a região temporal com a frontal e a outra na união da temporal com a occipital, havendo nesta segunda fratura a perda da substância do osso. No lado esquerdo e posterior do tórax notaram, ainda, uma solução de continuidade de cerca de 7 cm de comprimento, que se verificou comprometer apenas a pele e os músculos intercostais. O exame cadavérico foi assinado pelo delegado Gonçalves Pimenta e os farmacêuticos Joaquim Correia de Mello e Rafael Gonçalves de Salles e, como testemunhas: Heitor Barboza, Leopoldo Amaral, Francisco Pacheco, Guilherme do Nascimento, Indalécio de Vasconcelos, Alberto Sarmento, Antônio Sarmento e Joaquim Toledo.

No dia 9 de abril, quinta-feira, pelo expresso da tarde veio de São Paulo José Pinto de Almeida Júnior, escoltado por soldados. Diversos advogados foram consultados, mas Antônio Alves de Costa Carvalho e Francisco Quirino dos Santos aceitaram a causa do criminoso. Além de jurista, Francisco Quirino dos Santos foi jornalista, abolicionista, poeta, dramaturgo e notável tribuno republicano. O Ministério Público, na figura do promotor Albino José Barbosa de Oliveira, apresentou a denúncia.

O processo foi a julgamento no dia 26 de março de 1886, uma sexta-feira. O caráter hediondo do crime havia provocado grande reação de toda a sociedade e vários jornalistas de São Paulo, a capital da província e do Rio de Janeiro, a Corte, estavam presentes em Campinas para acompanharem o desfecho do julgamento. A sala do Júri estava repleta. O promotor Barbosa de Oliveira tomou assento na tribuna acusatória ao lado do juiz José Joaquim Baeta Neves, presidente do Tribunal.

O réu entrou na sala, pálido, barba crescida e com fios grisalhos, uma figura lúgubre ainda mais acentuada pelo traje em preto. Em seguida, o juiz começou interrogando o réu, ato que demorou pouco mais de 2 horas. Depois foram ouvidas as testemunhas, fase que iniciou às 2 horas da tarde e terminou já na madrugada do dia seguinte.

Na mesma madrugada o promotor público iniciou a sua acusação, concluindo pela pena de morte. Aqui peço aparte para informar ao leitor que o Código Criminal do Império do Brasil, então vigente, previa mesmo a morte do réu como pena máxima para crimes terríveis. A defesa rebateu e contraditou os testemunhos avessos ao assassino. Finalmente, às 9h30 da manhã, o juiz deu a sentença:

Em vista da decisão do Júri, condeno o réu José Pinto de Almeida Júnior à galés perpétuas, grau médio do artigo 271 do Código Criminal, ficando, porém, suspensa esta sentença por ter sido apelada para a relação do distrito, por força do artigo 449. O escrivão recomende o réu na prisão em que está, lance o seu nome no rol dos culpados e o faça pagar as contas. Sala do Júri de Campinas, aos 28 de março de 1886. (a.) José Joaquim Baeta Neves – presidente do Tribunal.

Na verdade, o objetivo da defesa fora alcançado: livrar o réu da pena de morte, conseguido com 1 voto de absolvição entre os 12 jurados. Mas, para Francisco Quirino dos Santos, o defensor, a sua luta foi fatal para a sua saúde, já abalada. A 5 de maio de 1886 ele faleceu em São Paulo. Campinas perdeu um de seus grandes filhos, com 45 anos de idade.

A data do novo julgamento foi designada para o dia 9 de junho, uma quarta-feira, agora com Toledo Pisa na defesa. Presidiu a nova sessão o juiz Inácio José de Oliveira Arruda. Depois de todos os atos já conhecidos, o Conselho de Sentença recolheu-se à sala de deliberação e, voltando rapidamente com a decisão, condenou o réu José Pinto de Almeida Júnior à pena morte.

A sessão terminou com a leitura da sentença do juiz:

Em conformidade da decisão do Júri, declarando o réu José Pinto de Almeida Júnior incurso no grau máximo do artigo 271 do Código Criminal, condeno o dito réu à pena de morte, à multa de 20% do valor roubado e às custas; suspenso, porém, qualquer procedimento, porquanto na forma da lei, apelo para o colendo Tribunal da Relação deste distrito. Sala das sessões do Júri, 10 de junho de 1886, (a.) Inácio José de Oliveira Arruda.

Todavia, o Poder Moderador exercido pelo imperador D. Pedro II comutou a pena de morte em galés perpétuas, como eram conhecidas as penas de trabalhos forçados. Por fim, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a pena de Almeida Júnior foi alterada para 30 anos, o que não impediu o infeliz condenado falecer na prisão, vítima de uma pertinaz moléstia.

Referências:

LIMA, Jorge Alves de. Crônicas de Campinas: séculos XIX e XX. 2 ed. Campinas: Ed. Komedi, 2011.

Imagem de destaque: Negociantes de escravos. Jean Baptiste Debret.

3 comentários

  1. Venho cumprimentar o Sr. Jorge Alves de Lima pela redação do artigo histórico “O terrível fim do negociante do escravos”. Em seu artigo os personagens são destacados quanto à atividade ou função que exerciam.
    A citação do Sr. Max Mundt, bem como a sua função de Chefe de Trafego da Ferrovia Paulista ajudou-me a “fechar o quebra cabeças” quanto à participação da família Espíndola na instalação desta primeira Ferrovia do Estado de São Paulo. O Sr Max Mundt era primo de minha bisavó Anna Müller Espíndola, sendo ela casada com meu bisavô Albino da Silva Espíndola o primeiro Chefe de Estação de Vinhedo (antiga Cachoeira, depois Rocinha). Interessante relatar que a contratação de Albino foi técnica pois os Espíndolas tinham a experiência de trabalho no funcionamento da Estrada de Ferro Leopoldinense. Na semana passada a Câmara Municipal de Vinhedo aprovou projeto de Lei do vereador e historiador Rodrigo Paixão denominando Rocinha e incorporando o nome Albino da Silva Espíndola à histórica Estação Ferroviária de Vinhedo. Justa homenagem!

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