Sidiana C. Ferreira de Macêdo – professora de História da Universidade Federal do Pará, Campus de Ananindeua. Líder do Alere – Grupo de Pesquisa da História do Abastecimento e da Alimentação na Amazônia. Correspondente do IHGG Campinas em Belém do Pará.
Resumo:
O texto aborda as comidas do Círio de Nazaré em Belém (PA), a partir de três pontos de observação: o Almoço do Círio, que ocorre no segundo domingo de outubro nas casas paraenses após a romaria; a Barraca da Santa e os outros espaços no Arraial de Nazaré. A comida e as práticas alimentares como importante código de lazer coletivo.
The food at the Círio de Nazaré festivity in Belém (PA, Brazil). (1900-1950).
Abstract:
This text analyzes the Círio de Nazaré foods festivity in Belém (PA, Brazil), from three observation points: Círio’s lunch, on the second sunday of october in paraenses houses after the procession; the Barraca da Santa and the other places in Arraial de Nazaré. The food and eating practices as an important collective leisure code.
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Corre fama pelos Brasis, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a maior procissão religiosa do país.
Incalculável massa humana. (TOCANTINS, p. 278).
Nas palavras de Leandro Tocantins, o Círio de Nazaré é realmente esse impressionante espetáculo de rua momento em que (…) a cidade cria, no domingo do círio, uma nova alma (…) perde seu modo cotidiano. (TOCANTINS, p. 278). Para o autor, as raízes do Círio remontam ao século XVIII, quando o Governador e Capitão Geral, Souza Coutinho, em 8 de setembro de 1773:
(…) pediu à confraria da Igreja a solenização da festa com novenas, missa cantada e que a imagem da santa fosse conduzida a capela do Palácio do Governo, na véspera da novena, sendo no dia seguinte levada em procissão para o Seu templo. (TOCANTINS, p. 280).
O pastor metodista Kidder, quando esteve no Pará nos idos de 1839, nos informa sobre a festividade que:
A maior festividade religiosa que se celebra no Pará é a de Nossa Senhora de Nazaré. É uma festa móvel que pode cair em Setembro ou Outubro e é geralmente marcada de maneira a começar com a lua nova, na esperança que se sigam nove ou dez noites bonitas consecutivas. (KIDDER, p. 185-86).
Nesse sentido,
A 3 de julho de 1793, Sousa Coutinho, o vigésimo quinto capitão-mor do Grão Pará e do rio Negro, determinou que (…)se celebrasse anualmente uma festa em honra à Nossa Senhora de Nazaré. A irmandade da Paróquia teve ordem de festejar a data com uma novena, uma missa cantada e uma procissão. Na primeira noite de novena, a imagem deveria ser transportada para a capela do Palácio, de modo a ser, no dia seguinte, reconduzida à igreja, em procissão pública. (KIDDER, p. 185-86).
A população respondia ao convite do Círio, já que Grande multidão reunia-se em tôrno da igreja, nessa ocasião, cantando a ladainha de Todos os Santos e da Virgem. Finda a reza o povo dispersava-se pelas adjacências, entregando-se a tôda sorte de folguedos, tais como bailes, jogos, etc… (KIDDER, p. 185-86). Não podemos esquecer das comidas oferecidas e degustadas e que sempre tiveram espaço importante no arraial de Nazaré. Sobre essas comidinhas e hábitos alimentares do Círio de Nazaré, falaremos a seguir.
Foto do início do século XX. Belém da saudade: a memória da Belém no início do século XX em cartões postais. 4 ed. rev. aum. Belém, Secult, 2014, pp. 338-339.
2020 será o primeiro ano na história do Círio de Nazaré que não teremos a procissão. Ao longo de toda sua história, a tradicional romaria do Círio sempre aconteceu, por debaixo de chuva ou sol. A relação do paraense com o Círio de Nazaré se estende às práticas alimentares. Ao menos três espaços são importantes no que tange os sabores do Círio: o Almoço do Círio tradicional festa familiar, que ocorre sempre nas casas após a procissão do segundo domingo de outubro. O Arraial de Nossa Senhora de Nazaré local de vendas das comidinhas do Círio e da alegria de comemorar a quadra Nazarena e ainda, a Barraca da Santa, espaço importante de venda de comida pelas famílias da sociedade com intuito de reverter as rendas para as ações beneficentes da igreja. (MACÊDO e BEZERRA NETO, 2019).
Alfredo Oliveira nos diz que
Quando a Berlinda passava, as pessoas nas janelas e nas calçadas batiam palmas ou choravam. Depois da romaria, o Almoço do Círio tornava-se uma reunião familiar, como no Natal. E ainda, É gostoso lembrar do arraial daquele tempo, que hoje não existe mais: as barracas, os brinquedos infantis vendidos pelos ambulantes, as diversões espalhadas no Largo, as bancas de jogos, os coretos com as retretas das bandas de música, os teatros, o footing nas calçadas (…) A barraca da Santa armada todos os anos ao lado da Basílica, patrocinada por autoridades e pessoas abastadas, em benefício da Paróquia e assim A imbatível comida regional imperava no cardápio de todas elas: pato no tucupi, vatapá, carurú, maniçoba, mussuã, tartaruga, pirarucu, camorim, rolo de camarão, unha e casquinho de caranguejo. Sobremesa preferida: creme de bacuri ou de cupuaçu. Guaranás locais: Vigor e Soberano. (OLIVEIRA, p. 183-84).
Foto do início do século XX. Belém da saudade: a memória da Belém no início do século XX em cartões postais. 4 ed. rev. aum. Belém, Secult, 2014, pp. 338-339.
O Almoço do Círio.
O Círio é uma festa religiosa que está associada a práticas alimentares e a um cardápio próprio e tradicional na cidade de Belém. A exemplo dos quitutes regionais e pratos típicos, sendo uma festa do paladar, dos sabores e das memórias. Existe o Almoço do Círio que acontece religiosamente após a romaria do Círio nas casas paraenses e que reúne toda a família e amigos em volta da mesa. A preparação para o Almoço do Círio começava bem antes a data, com a preparação da maniçoba, ao menos 7 dias antes da procissão, ou mesmo um ano antes com a criação pelos quintais dos patos, que deveriam ficar bem “gordos” para serem servidos no tucupi, no tradicional almoço.
Também o comércio se movimentava bastante neste período, especialmente com a chegada de produtos alimentícios comuns para celebrar a data, alguns deles importados. Por exemplo, a casa comercial Vesúvio anunciava em 13 de outubro de 1950: senhoras donas de casa abasteçam suas despensas para o grande dia paraense comprando no ‘Vesúvio’. (FOLHA do Norte, 13/10/1950). Entre os produtos estavam repolhos, cenouras, maçãs, biscoitos finos e ainda bacalhau especial, azeite português e espanhol e vinhos estrangeiros.
Folha do Norte, 13 de outubro de 1950.
Para o Almoço do Círio, alguns estabelecimentos na cidade mantinham a tradição de oferecer petiscos, bolos e pratos por encomenda para a comemoração em família. Esse era o caso da Fábrica Palmeira que, em 7 de outubro de 1927, oferecia às famílias paraenses o Bolo de N. S. de Nazareth: nos próximos sábado e domingo, o delicioso bolo desse nome que se encontra, também, na sua sucursal do Ver-o-Peso e nas principaes mercearias durante aquelles dias. (FOLHA do Norte, 7/12/1927). As memórias de Alfredo Oliveira revelam muito dos costumes de grande parte das famílias paraense nesse momento:
Depois da romaria, o almoço do Círio tornava-se uma reunião familiar (…) no casarão de minha avó Lídia, na avenida Alcindo Cacela, o pato no tucupi e a maniçoba estavam à espera dos netos, assim como as deliciosas sobremesas de bacuri e cupuaçu. Vinham todos. Não dava para perder a comilança. Tios e primos lambiam os beiços, fartavam-se alegremente. Os adultos bebiam vinho tinto. A pirralhada caía no estoque de guaraná Soberano. (OLIVEIRA, p. 184).
A Barraca da Santa.
Nessa festa, a Barraca de Nossa Senhora de Nazaré era entregue às famílias locais que vendiam comidas variadas e a renda era revertida para as obras da paróquia. Nas palavras do memorialista Osvaldo Orico: Havia noites em que a ‘Barraca da Santa’ – como era chamada, faturava quantias elevadíssimas para a época e cada família que se encarregava do abastecimento da cozinha experimentava enorme desvanecimento no regalo que dava à clientela e no lucro que oferecia à Igreja. (ORICO, p. 54). Na noite de 12 de outubro de 1927, as famílias responsáveis haviam preparado um menu variadíssimo com Mayonaise de lagosta, o peru com farofa e o pato no tucupy, croquetes, pasteis, sandwiches, etc, tudo com preços communs e fixos. (FOLHA do Norte, 12/10/1927, p. 2). Como se pode ver, além de serem pratos mais refinados, o fato de serem ofertados pelas famílias para atividades caritativas talvez atraísse um maior número de pessoas interessadas nesse consumo. Talvez por isso o jornal Folha do Norte anunciasse que era de se prever que a Barraca de N. S. regorgite hoje de povo. (FOLHA do Norte, 12/10/1927, p. 2). Para além do menu, existe outro ponto que deve ser analisado. Apesar de uma variedade de preços, de uma maneira geral eram preços elevados, o que confirma as palavras de Osvaldo Orico que a Barraca da Santa era uma espécie de restaurante de luxo, onde a grã-finagem local pagava gostosamente o prazer de saborear as especialidades da terra. (ORICO, p. 54). A exemplo, em 21 de outubro de 1941, fora dada a seguinte notícia da Barraca de N. S. de Nazaré:
(…) elegante centro de reunião (…) social de Belém, durante a festiva semana em que a população da Amazônia, comunicando a mesma intensa fé, presta à sua misericordiosa Padroeira as mais expressivas homenagens de seu fervoroso culto e piedosa gratidão por tantas graças obtidas – Vae a ‘Barraca’ da Virgem Santissima ter, também, a sua ‘Noite da Música’ (…) (FOLHA do Norte, 21/10/1941, p. 2).
Assim, a Barraca da Santa iria oferecer o seguinte cardápio para a Noite da Música:
Pato no tucupi, pato assado com salada de batatas. Leitão assado com farofa. Galinha assada com puré de batatas. Vatapá a baiana. Maionaise de Camarão. Perú a brasileira. Macarrão Veneziano. Arroz temperado. Arroz simples. Salada Russa. Sandwiche americano. Canudinhos de creme. Sandwiches variados. Empadinhas variadas. Barquetes de creme. Pãezinhos recheados. Pastéis de carne e camarão. Sonhos recheados. Salada de frutas. Puding de cóco. Puding de leite. Pudin quero mais. Puding de laranja. Puding beijo de cabocla. Bolo saboroso. Doces sortidos. Whiski. Cerveja. Guaraná. Vinho. Sorvete e Café. Os preços serão os habituais. (FOLHA do Norte, 16/10/1941, p. 7).
O cardápio da Barraca da Santa era bem sortido e variado, local e ponto de encontro da sociedade local, oferecia pratos de uma valor mais elevado e era comandada por senhoras e moças das sociedade [que] são voluntárias, servindo os melhores petiscos da terra, em benefício das obras da Basílica. (TOCANTINS, p. 287). Por outro lado, o Largo de Nazaré tinha outros lugares que vendiam comida para todas as posses. Era um local onde de tudo podia se encontrar, no dizer de Orico: Havia moendas de cana, alguidares de açaí e bacaba à porta de barraquinhas modestas enfiadas no meio do arraial. E tabuleiros de tacacá e mingau de milho. (ORICO, p. 54).
O Arraial de Nossa Senhora de Nazaré.
Osvaldo Orico nos diz que:
O mais importante dos arraiais da cidade o Largo de Nazaré, em Belém do Pará, é que era praça típica dos quitutes regionais (…) Nos dias de festa da santa padroeira não só as comezainas das barracas humildes, mas os casquinhos e os sarapatéis bem temperados. (ORICO, p. 54).
Ainda na festa de Nossa Senhora de Nazaré, em 16 de outubro de 1941, o jornal Folha do Norte informava aos seus leitores que no local onde foi a Fotografia Nazaré, durante o arraial de Nazaré, estavam servindo todas as noites um menu delicado, a preços módicos, cujos pratos eram:
(…) a canja, a galinha assada, o casquinho de mussuan, casquinho de carangueijo, empadas de galinha, pasteis de carne e camarão, peru a brasileira, pato no tucupi, vatapá, caruru, salada de batatas, sandwiches diversos, doces, salada de frutas, assai, banana frita, queijo, babas de moça, águas minerais, vinhos clarête, grandjò, etc. E o saboroso tacacá tudo preparado com higiene absoluta e servido em louça escaldada o que é uma garantia para todos. (FOLHA do Norte, 16/10/1941, p. 7).
Ao que tudo indica este local era mais popular, e talvez pretendesse, nesse tempo de festa, oferecer a um público com menor poder aquisitivo um cardápio que nem sempre era possível ser consumido pela maioria da população. Dois dias depois, em outro anúncio, o barracão trazia no menu o seguinte: Perú a brasileira, pato no tucupi, gallinha ensopada com ‘petit pots’, casquinho de mussuan, casquinho de caranguejo, Vatapá, Salada de batatas, Arroz, farinha torrada e biscoitinhos especiais de puro trigo fabricados em casa. (FOLHA do Norte, 18/10/1941, p. 2). E ainda salada de frutas, creme de bacuri, doces diversos, queijo, etc. Bebidas diversas inclusive Guaraná, vinhos nacionais e portugueses, águas minerais, licores, café feito na hora. E o saboroso Tacacá com Tucupi especial. (FOLHA do Norte, 18/10/1941, p. 2). Em 23 de outubro de 1941, além dos já citados pratos podia-se consumir carneiro de forno, filé à minuta, souflé de camarão e bolo americano com creme de chantili. (FOLHA do Norte, 23/10/1941, p. 2). Assim, com o a Fotografia Nazaré haviam outros espaços semelhantes no arraial que atendiam freguesia diversa com mix de pratos e sabores, como era o caso do barraca da filial da Casa Amadeu, no Largo de Nazareth e que, em 15 de outubro de 1927, oferecia menu variado com Paca no tucupi, Filet a cavalo, casquinho de mussuan, tartaruga à paraense, fritadas diversas, schopp bem gelado e assahy especial. (FOLHA do Norte, 15/10/1927, p. 2). O Círio de Nazaré, portanto, como um lugar de lazer coletivo e familiar o qual permitia romper com os papéis quotidianos e que a partir da alimentação criava o que Corbin denomina de:
(…) codificação destes usos, aos sinais de distinção, de promoção ou de simples distracção que os ordena (…), no que rege as maneiras de ser, simultaneamente espectadores objetos de espetáculo, no jogo complexo da representação social que constitui o divertimento coletivo. (CORBIN, p. 203).
Nesse sentido, as comidas e as práticas alimentares do Círio de Nazaré são como um código de lazer e pertencimento importante na construção de um ethos social. Práticas alimentares que persistem e mesmo hoje, diante de uma pandemia que impede a procissão de acontecer, já conseguimos sentir o cheiro da maniçoba nas casas vizinhas.
Referências:
CORBIN, Alain. História dos Tempos Livres. O advento do lazer. Lisboa, Portugal: Editora Teorema, 2001.
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil. São Paulo: Martins, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). São Paulo: Alameda, 2020.
MACÊDO, Sidiana da consolação Ferreira de; BEZERRA NETO, José Maia. A festa de Nossa Senhora de Nazaré: entre a fé e as comidas. Interações Sociais, v. 3, pp. 1-112, 2019.
OLIVEIRA, Alfredo Carlos Cunha de. Conflitos e sonhos de um aprendiz: memórias. Belém: [s.n.t.], 2015.
ORICO, Osvaldo. A cozinha amazônica. Belém: Ed. da U. Federal do Pará, 1972.
TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão Pará instantes e evocações da cidade. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1987.