Juliana Gesuelli Meirelles – historiadora, professora da PUCCAMP. Titular da Cadeira 16 do IHGG Campinas.
The royal family Portuguese in Brazil: politics and daily life (1808-1821).
Talvez não haja outro período de tão intensas mudanças na história do Brasil como o período joanino. Empurrado pelas tropas napoleônicas, o príncipe herdeiro do trono português chegou ao Rio de Janeiro carregando a tradição de uma monarquia absolutista; apenas 13 anos depois, pressionado por uma revolução liberal, ele partiu de volta a Lisboa, já como rei constitucional. Foi um momento em que a cidade do Rio de Janeiro cresceu, mas quem de fato se multiplicou foi a população escrava. A condição recém-adquirida, de sede do poder do Império Português, levou à criação de novas instituições, mas também instaurou outros espaços de sociabilidade, desde o teatro até as festas cívicas, nos quais a população emergia em um papel até então desconhecido na cena pública. A criação da imprensa não só colocou em circulação livros em maior quantidade e diversidade, mas engendrou uma forma de participação política inédita, através dos jornais. Jefferson Cano (professor da UNICAMP).
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A vinda da Corte portuguesa para o Brasil aconteceu em meio a uma conjuntura política europeia muito delicada: as guerras napoleônicas que assolavam a paz no Velho Mundo (1805-1815). Nesse período, Napoleão Bonaparte não apenas destituiu dinastias e refez o mapa da Europa, como também insuflou um povo inteiro com a mística da nação. Já nos territórios conquistados, implantou uma série de valores da Revolução Francesa, cuja contribuição foi decisiva para o nascimento da política no sentido moderno.
O bloqueio continental decretado por Bonaparte, em novembro de 1806, tinha como meta o enfraquecimento da economia inglesa, um obstáculo fundamental aos objetivos expansionistas da França. O bloqueio exigia – sob ameaça de invasão militar – que todos os países da Europa se fechassem ao comércio britânico a fim de que a economia inglesa entrasse em colapso. Se o Acordo de Tilsit, firmado com o Czar Alexandre I da Rússia, em julho de 1807, garantia a Napoleão o encerramento do extremo Leste da Europa, era mister a conquista a Oeste, que circunscrevia os portos das cidades de Lisboa e do Porto.
Portugal, porém, encontrava-se em uma situação deveras complexa. Se, por um lado, em setembro de 1807, Dom João acatava as ordens de Napoleão, fechando os portos aos navios ingleses — o que consolidava a ruptura com a Inglaterra —, por outra via, postergava na prática tal atitude, uma vez que mantinha com a Inglaterra uma relação de grande dependência econômica, que o impedia de acatar integralmente as ordens francesas. A forte aliança com os ingleses colocava a situação do país em xeque.
Portanto, fez-se urgente uma tomada de posição, sobretudo depois do ultimato de Napoleão que, em outubro de 1807, ordenava a invasão francesa em território luso. À medida em que os rumores da invasão cresciam, ao longo de novembro de 1807, o governo português buscou entabular negociações com a Inglaterra, através de uma convenção secreta, em que se previa a transferência da Família Real para o Brasil, protegida pela esquadra britânica, em troca da ocupação da Ilha da Madeira, enquanto perdurassem as operações militares no continente.
Foi diante dessa crise geopolítica do continente europeu que a Dinastia de Bragança – com Dona Maria I, o Príncipe Regente Dom João e grande parte da Corte portuguesa embarcou para o Brasil, em 29 de novembro de 1807. No dia seguinte, as tropas francesas, sob a liderança de Junot, entravam em território português. Pouco mais de três meses depois, a realeza pisava em solo fluminense.
A transferência da Família Real para o Brasil não foi uma medida tomada às pressas. Ao contrário, já era um projeto político arquitetado pela monarquia portuguesa desde o século XVI, que ganhava força sempre nos momentos de instabilidade política da Coroa. Em 1808, por fim, o plano de transladação do governo português para a sua mais importante colônia tornou-se realidade: a cidade do Rio de Janeiro emergia como nova capital da metrópole portuguesa, impulsionando, dessa forma, transformações políticas de grande impacto nos dois lados do Atlântico, durante os treze anos em que a Família Real permaneceu em nossas terras.
As Guerras napoleônicas (1808-1815), o fim de Bonaparte com a restauração do antigo regime na Europa (1815), a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves (1815), a Revolução Pernambucana como um movimento contestatório ao poder absoluto de Dom João (1817), a aclamação de Dom João VI no Brasil (1818), a Revolução do Porto e as consequências desse processo, com a volta do rei à Europa (1820-1821) – todos esses fatos históricos, descritos e analisados no meu livro, foram cruciais nas grandes mudanças que delineavam a nova ordem política no jogo das relações luso-brasileiras.
Trato especificamente das interfaces entre a política e o cotidiano no Rio de Janeiro, no período joanino, em meio a tantas transformações políticas e aos muitos conflitos e desafios da nova sociedade que se formava nos trópicos e que, invariavelmente, foram permeadas por um projeto político de sustentação do império português nas duas margens do Atlântico. Os temas abordados perpassam desde a estruturação das novas instituições régias que surgiam na América portuguesa e delineavam a nova governabilidade da monarquia lusitana, a partir de 1808, até a volta de Dom João VI para Portugal, em 1821, quando as consequências da crise do antigo regime português já apareciam de forma patente no universo público, entre 1817 e 1821.
A volta de Dom João VI para a Europa marcou o final de um período ímpar na história da colonização do Novo Mundo. Pela primeira vez um monarca atravessou o oceano, pisou em suas possessões coloniais, transladou – com sua corte uma estrutura governamental para o outro lado do Atlântico e foi aclamado Rei com toda a pompa das cortes europeias.
No entanto, ao retornar para o velho continente, Dom João VI partia muito menos Rei do que quando aqui chegara. Nos treze anos em que permaneceu no Brasil a face política do mundo luso-brasileiro se transformara a ponto de colocar em questão a natureza de seu pátrio poder. Se em Portugal desde a Revolução do Porto (1820) os súditos-cidadãos exigiam a regeneração da pátria, com a promulgação de uma Constituição pelas Cortes, que assentaria o poder político do Rei em uma monarquia constitucional, deste lado do Atlântico o diálogo e a tensão política com o Reino não foram menores.
A partir de 1821, os ecos da Revolução do Porto já se faziam presentes no espaço público do Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. Os conflituosos interesses da elite brasileira colocavam em cena as disputas pela vigência de diferentes projetos políticos que apareciam de forma patente na dinâmica da vida cotidiana. A arena pública se tornava palco da constituição da prática cidadã e o homem comum passava a refletir e a discutir sobre os destinos do Brasil. O povo emergia como personagem de primeiro escalão na teatralidade da vida política e era agora necessário que os representantes do poder se preocupassem em criar formas mais sofisticadas de controle das possíveis consequências políticas desses indivíduos no espaço público.
Atos e palavras ganhavam novos significados. Resultado da complexidade de um universo plural em que os códigos de sociabilidade tradicionais do Antigo Regime se conflitavam com os novos valores e posturas políticas que constituíam uma sociedade em constante mutação.
Referência:
MEIRELLES, Juliana Gesuelli. A Família Real no Brasil: política e cotidiano (1808-1821). Santo André: UFABC, 2013.