Gilberto Gatti – jornalista, pesquisador. Sócio Correspondente do IHGG Campinas em Brasília, DF.
Resumo:
Este artigo apresenta uma análise baseada em documentos notariais e jornalísticos sobre as origens do bairro Guanabara, tradicional de Campinas, desde 1881, momento de extremo enriquecimento obtido com a economia cafeeira. Interessantes também são as informações sobre a nascente indústria cervejeira local.
Origins the Guanabara neighborhood (Campinas, SP, Brazil): leisure, entertainment and beer.
Abstract:
This article presents an analysis based on notary and journalistic documents about the origins of the Guanabara neighborhood, traditional in Campinas, since 1881, a moment of extreme enrichment recognized with the coffee economy. Also interesting is the information about the nascent local brewing industry.
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Em 1881, o jornal Gazeta de Campinas, em editorial, falava sobre um bairro que nascia a partir de Santa Cruz: o bairro do Guanabara.
Proprietários de chácaras, terrenos e casas dessa nova área abriram seis ruas e deram denominações especiais: Visconde do Rio Branco, 28 de Setembro, Tiradentes, Cristóvão Colombo, Paula Souza e Barão de Parnaíba. Era o núcleo pioneiro formador do bairro. A avenida Itapura – que viria a ser o eixo estruturante do novo núcleo urbano – não havia sido rasgada até aquele momento, o que aconteceria cinco anos depois.
As atas da Câmara registram pedido de autorização de Edward Lane para lotear seus terrenos no bairro que nascia. Para a fundação do núcleo, concorreram na abertura de suas primitivas ruas: Carlos Schaffer, Virgílio Bittencourt, Jorge Welch, Manoel Alves de Barros da Cruz e Rodolfo Besembruck, antigos proprietários e moradores no local. (GOULART, p. 126).
Merece realce a matéria jornalística encaminhada pelo deputado Antônio Mercado ao jornal republicano A Federação, que circulava em Porto Alegre (RS), resumindo com propriedade o espírito empreendedor dos campineiros, ao tratar do bairro que nascia. Afirma Mercado, na edição de 9 de março de 1884 do referido jornal, que em apenas dois anos o bairro deu um salto de desenvolvimento. Alguns homens empreendedores compraram o terreno, dividiram-no em quadras, rasgaram e denominaram ruas, formando a Associação Guanabarense, cujo fim era realizar a povoação do bairro.
No plano dos investidores, uma fábrica de cerveja e seu biergarten foram montados, para induzir a população urbana a conhecer e frequentar essa região periférica, considerada pela propaganda como salubre e aprazível. O compromisso era propiciar lazer, música e muita cerveja, tornando o Guanabara um dos pontos de passeio da sociedade campineira.
Paralelamente, demonstrando plena articulação com esse projeto industrial foi criada a Associação Progresso Guanabarense para promover os melhoramentos com a implantação de equipamentos de infraestrutura pública. O presidente era o pastor Edward Lane, o vice-presidente o cervejeiro Carlos Schaffer, o secretário Flamínio Maurício, o tesoureiro Manoel Alves de Barros da Cruz e o procurador Virgílio Bittencourt. Nessa proposta associativa, estava latente o objetivo da valorização imobiliária com a consequente comercialização de lotes.
Os irmãos prussianos Carlos e Henrique Schaffer criaram, no início de 1882, uma sociedade comanditária com capital social de 100 contos de réis dividido em duas mil ações de valor unitário de 50$000. No lançamento da sociedade C. Schaffer, Irmão & Companhia, 700 ações foram subscritas, incluindo nessa integralização o edifício, o terreno, máquinas e equipamentos de propriedade dos irmãos Schaffer. Seguramente, era o maior investimento na área cervejeira da cidade. O capital da primeira etapa deveria atingir o montante de 50 contos de réis. A marca escolhida foi Cerveja Guanabarense.
Os irmãos não eram neófitos no mercado de bebidas e do lazer. Foram proprietários da fábrica que produzia cerveja e licores, situada na rua do Pórtico, 94 (hoje, Ferreira Penteado). Por outro lado, eram importadores de insumos – cevada, etiquetas, rolhas e drogas –, principalmente da Alemanha, como atestam os manifestos em nome da empresa que transitaram no porto de Santos.
Aliavam o consumo de cerveja aos eventos musicais como aquele ocorrido em 1877, quando a banda Alemã animava os frequentadores do biergarten anexo à fábrica. Incluíam, também, nas programações dominicais atrações curiosas ou bizarras para atrair público à cervejaria. Assim, em 1878, apresentou um domador de cobras jararacas, que com o uso de antídoto as tornavam inofensivas. Era o trinômio cerveja, música e lazer.
O artigo de Lenita Mendes Nogueira, que trata da imigração alemã, aponta que: A instalação de botequins e cervejarias no centro da cidade acirrou a concorrência e na busca pelos fregueses todo tipo de esforço era válido. Um dos locais mais movimentados era a Cervejaria Schaeffer & Irmão, que ficava na Rua do Pórtico, 34 (Ferreira Penteado). A partir de 1878, transformou-se em ponto de encontro dominical, onde, além da famosa cerveja da casa, podia-se encontrar música, especialmente a alemã. (NOGUEIRA, p. 32-33.)
Maria Luísa de Freitas Duarte Páteo, na sua dissertação de mestrado afirma que: Quanto aos alemães a imigração foi mais tímida, mas, mesmo assim, sobressaiam-se na cidade. Fundaram a sua própria banda denominada Banda Alemã, que costumava tocar nos jardins da Fábrica de Cerveja de Carlos Schaefer… (PÁTEO, p. 130)
A frequência de passeios regados a cerveja e com muita música se multiplicou com objetivo de criar um polo de diversões e lazer no bairro do Guanabara e viabilizar, por esse meio, o empreendimento cervejeiro.
Na festa do Espírito Santo da paroquia de Santa Cruz, o Diário de Campinas noticiou que após o jantar os festeiros e os convidados com a banda de música saíram a passeio no bairro do Guanabara, demorando-se algum tempo na casa do senhor Carlos Schaffer & Irmão, onde lhes foram servidos cerveja.
A falta de linha regular de transporte obrigava a iniciativas ousadas como fora o caso de contratação de veículos de aluguel para transportar os frequentadores. Em novembro de 1882, a Gazeta de Campinas noticiou: Os proprietários da fábrica de cerveja do Guanabara, reconhecendo a pouca comodidade de condução para esse bairro, em vista dos preços que os carros cobram, contrataram para domingo 12, alguns carros que partirão do largo do Rosário e conduzirão passageiros pelo diminuto preço de 50 réis ida e volta. O sinal e divisa dos carros é uma bandeira branca. A banda de música da Sociedade Luiz de Camões, é esse o dia que tem escolhido para fazer seu passeio àquele bairro e abrilhantá-lo.
Por proposta de Luiz Falcão, foi eleita e nomeada uma comissão composta por Francisco Krug, Carlos Ferreira, Francisco Glicério e Antônio Sarmento e o próprio Carlos Schaffer para estudar e dar parecer sobre o contrato social e viabilidade da cervejaria. A conclusão não foi favorável à continuidade da implantação da cervejaria e os empreendedores decidiram não integralizar suas quotas.
Todavia, os investidores estavam longe de desembolsar recursos na capitalização da indústria de cerveja, tendo os elevados valores necessários àquele empreendimento. A inexistência de ligação com a cidade, talvez, tenha sido a principal razão do desinteresse dos investidores. A grande barreira natural era a transposição do córrego do Serafim.
Por outro lado, não seria tarefa fácil concorrer com as programações a céu aberto realizadas no Bosque dos Jequitibás e no Passeio Público. Havia, também, nos recintos fechados os espetáculos no Teatro São Carlos e no Rink Campineiro. Criar sua própria demanda era o desafio.
Após várias tentativas de convocação dos subscritores, a assembleia não atingiu o quórum suficiente para deliberações e sequer foi instalada. No início de 1883, a empresa comunicava à Câmara o fechamento da fábrica. Para o biegarten funcionar apenas nos finais de semanas, ou em datas festivas era pouco para viabilizar o negócio. O empreendimento não vingou. Foi um completo fiasco. Durou pouco mais de um ano.
Assim, a cerveja Guanabarense dos irmãos Schaffer tinha o seu triste epílogo!
A partir de então a direção da fábrica passou por vários proprietários.
Doze anos depois, Carlos Schaffer ressurge no mercado campineiro, em agosto de 1895, anunciando no Diário de Campinas a abertura de um grande armazém na rua Direita, 132, era o Armazém Schaffer.
No sentido contrário, o negócio imobiliário avançava com sucesso e o bairro continuava na rota de desenvolvimento. Chamou atenção de importantes capitalistas campineiros, que, em 1890, adquiriram terrenos no bairro. Podemos citar entre eles: José Paulino Nogueira, Cândido Braga e barão Geraldo de Rezende, que investiram 60 contos de réis na compra de lotes na busca da valorização para venda especulativa.
Os movimentos reivindicatórios da comunidade – proprietários e investidores – demonstram sempre articulação e unidade. A primeira delas foi a solicitação de abertura da rua Direita com a rua Santa Cruz dirigida à diretoria da Companhia Campineira de Iluminação à Gás. O Gasômetro e o depósito da Companhia Campineira de Carris de Ferro estavam localizados ao final da atual rua Doutor Quirino, nas proximidades da avenida Orosimbo Maia. Naquela época, as iniciativas de investimento em obras e serviços cabiam aos interessados e não, exclusivamente, ao poder público.
Após a desistência da implantação da cervejaria, os associados investiram em obras de infraestrutura, como o grande bueiro de cerca de 25 metros de comprimento e dois de altura no córrego Serafim e o aterramento, que possibilitou a ligação com a avenida Dona Libânia e por via de consequência com a cidade. Simultaneamente, dispenderam seis contos de réis na implantação dos trilhos de bonde, inclusive, assumindo os custos operacionais da Companhia Campineira de Carris de Ferro da linha que, inicialmente, era antieconômica.
Campo das Caneleiras e Guanabara estavam na raiz da disputa do transporte urbano e subjacentes os interesses imobiliários entre os proprietários dessas duas localidades. No outro ponto, lutavam pela primazia de lazer dos campineiros: Bosque dos Jequitibás com as ofertas de divertimentos – incluindo as retretas com as bandas bailes noturnos, passeios bucólicos e cerveja, enquanto o bairro do Guanabara oferecia música, cerveja e locais para pic-nics. Na realidade, buscavam na região periférica da cidade ponto de atração, como opção ao Jardim Público, que mantinha a preferência da população.
O empreendedor Francisco Bueno de Miranda adquiriu, em 1879, a chácara do conselheiro Barbosa de Oliveira com o propósito de dividi-la em lotes residenciais na região conhecida como Campo das Caneleiras.
No extremo da propriedade, havia o bosque que seria estratégico para o projeto de loteamento, atuando como catalizador de uma das vantagens do novo bairro. Outra iniciativa adotada para facilitar a comercialização dos terrenos foi o lançamento dos trilhos para o estabelecimento da linha que atravessava o loteamento, com ponto inicial na rua da Misericórdia e ponto final no portal do bosque. Este se tornou centro de diversões para a população campineira e em particular aos interessados na aquisição das áreas. As vendas eram centralizadas com o próprio Miranda na entrada do Bosque.
A desavença entre os empreendedores do Guanabara e do Bosque ganhou contornos de confronto ao se tornar pública. As disputas estavam concentradas em três campos diferentes. A primazia da venda de lotes, a obtenção de tráfego mútuo com as linhas da Companhia Campineira de Carris de Ferro e a viabilização do polo de entretenimento.
O primeiro embate frontal se deu com a diretoria da Companhia Campineira de Carris de Ferro. A encampação da linha de bonde de propriedade de Francisco Bueno de Miranda, que ligava o Passeio Público ao Bosque dos Jequitibás, era pleiteada por Miranda. Ele estabeleceu polêmica, por meio de artigos publicados na Gazeta de Campinas, com a direção da Companhia, demonstrando sua indignação com a decisão da Companhia que preferiu a proposta da Associação Progresso Guanabarense na operação da linha do Guanabara.
O peso político dos investidores da Associação Guanabarense foi sempre maior ao de Bueno Miranda, que tempos depois adquiriu área nos altos do Guanabara, sendo um dos criadores do bairro do Taquaral.
Referências:
Diário de Campinas, de 1º de agosto de 1895.
Gazeta de Campinas, edição de 8 de maio de 1881.
Gazeta de Campinas, de 11 de novembro de 1882.
Federação, A, de 9 de março de 1884.
GOULART, Edmo. Campinas: ruas da época imperial. São Paulo: Ed. Maranata, 1983.
NOGUEIRA, Lenita W. Mendes. “Música alemã em Campinas no século XIX”. VON SIMSON, Olga R. M. et alli (orgs.). Catálogo da exposição: A imigração alemã em terras paulistas. Campinas: CMU publicações, 2011.
PÁTEO, Maria Luisa de Freitas Duarte de. Bandas de Música e Cotidiano Urbano. Campinas: IFCH – Unicamp, 1997. [Dissertação de mestrado].