O Instituto Bento Quirino (1915) e os primeiros anos da educação na República

Américo Baptista Vilela – professor da ETEc Bento Quirino, curador do Centro de Memórias “Orleide Alves Ferreira” e historiador do Museu da Cidade.

Resumo:

Este artigo resume a criação e os anos iniciais de funcionamento da atual ETEc Bento Quirino. Criado em 1915, a partir do legado testamentário do patrono e da união de um grupo ligado a maçonaria e ao Partido Republicano Paulista, o Instituto Profissional Bento Quirino desempenhou um importante papel na conformação da sociedade de classes em nossa cidade. Contribuiu para a construção de uma ética positiva do trabalho e para a concepção de cidadania na lógica capitalista, bem como para a aceitação da mulher como trabalhadora, fortalecendo as bases da sociedade industrial na transição da economia rural para a urbana.

The Bento Quirino Institute (1915) and de first years of Brazilian Republic education.

Abstract:

This work presents my analysis about the creation and the initial years of operation of the current ETEc Bento Quirino Campinas (SP, Brazil). It was built in 1915, from the legacy of the patron and the union of a group of men linked to Freemasonry PRP – Republican Party Paulista – the Professional Institute Bento Quirino played an important role in the formation of class society in our city. It also contributed to build a positive ethic work and a certain conception of citizenship within the logic of capitalism as well as acceptance of women as a worker to enhancing the foundations of industrial society in transition from a rural to urban.

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O movimento de expansão das escolas profissionais no território brasileiro esteve diretamente vinculado ao processo de urbanização e industrialização do país. Ele se inicia por cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador que viveram esse processo antes de outras regiões e por motivos distintos. Nestas cidades, até a primeira metade do século XIX, não é a necessidade econômica que dará́ origem a esse movimento, mas sim a perspectiva de oferecer uma opção para os filhos dos homens brancos pobres e livres que vivem nas cidades ou aos órfãos e desvalidos da fortuna. Nas cidades relatadas acima não há uma grande industrialização e sua urbanização se relaciona muito mais com uma conjuntura política que as favorece. No entanto, como destaca Eric Hobsbawm

… o desenvolvimento econômico não é uma espécie de ventríloquo com o resto da história como seu boneco. Neste sentido, mesmo o homem de negócios mais limitado à procura do lucro em, digamos, minas sul-africanas de ouro e diamantes jamais pode ser tratado exclusivamente como uma máquina de ganhar dinheiro. Ele não fica imune aos apelos políticos, emocionais, ideológicos, patrióticos ou mesmos raciais associados de modo tão patente à expansão imperial (Era dos Impérios, 1988, p. 94-95).

Ou seja, não podemos considerar que há uma determinação mecânica da dimensão econômica sobre a história, mas também não podemos desconsiderar essa dimensão. Assim, se a escola profissional representa uma opção é porque há a perspectiva de que os alunos dessas escolas consigam garantir a sua sobrevivência através da formação que ali recebiam; porém essa formação não era entendida como estratégica para o desenvolvimento econômico, político e social do país, tendo em vista a crença de que o Brasil teria uma vocação agrícola. Logo após a proclamação da independência, os projetos para o desenvolvimento econômico do país se baseavam na expansão da fronteira agrícola através da incorporação de novas terras. O Brasil se apresentava como um mercado consumidor para os produtos ingleses em um momento no qual este país vivia a sua revolução industrial.

Essa situação começa a se transformar na segunda metade do século XIX quando o processo de acumulação do capital passa a perceber que o Brasil pode ser importante como mercado para investimentos dos capitais excedentes da Europa que buscam maior rentabilidade que a encontrada em seus países de origem. Isto fará com que indústrias estrangeiras como a Lidgerwood, Mac Hardy, São Paulo Railway e os bancos de investimentos venham se instalar na província de São Paulo. Isto promove o deslocamento do eixo comercial para o sudeste brasileiro e aliado ao início da produção cafeeira e os excedentes de capitais gerados por ela, darão origem a uma nova organização social. Ainda retomando Hosbawm:

Se a linha entre a burguesia e a aristocracia era imprecisa, os limites entre a burguesia e seus inferiores estavam também longe de ser claros. Isto não afetava demasiadamente a “antiga” classe média baixa ou a pequena burguesia de artesãos independentes, pequenos lojistas e seus semelhantes. (op. cit. 1988, 241).

Ou seja, o desenvolvimento industrial e do setor de serviços que terá início a partir da década de 1870 produziu transformações econômicas dando origem a uma nova classe social, ainda vinculada à produção cafeeira, mas que não deixa de reconhecer a necessidade do desenvolvimento das indústrias. No caso brasileiro, as diferenças entre uma antiga aristocracia rural e uma burguesia urbano-industrial, em fase de formação, começam a aparecer. Não são novos homens, em muitos casos, são os mesmos homens, mas com uma nova visão de mundo, em outros casos são homens influenciados pelo ideário maçônico e liberal, em especial pelo modelo norte-americano.

São homens que acreditam na iniciativa individual para resolver os problemas da sociedade, ao invés de esperar que o Estado imperial ou republicano o faça. Para muitos destes homens, o Estado é mais um problema do que uma solução, por isso, eles se unem para criar escolas, construir hospitais, enfim realizar aquilo que o Estado não realiza e que anarquistas e socialistas estavam a fazer. A criação dos sindicatos, de escolas anarquistas, dos centros de cultura e da imprensa operária colocava em evidência a organização proletária que se iniciava e os problemas para a manutenção

do status quo que estas organizações representavam. Era necessário que as classes dominantes se antecipassem a essas iniciativas coibindo-as através do monopólio legitimo da força exercido pelo Estado, mas também pela oferta desses serviços. Em muitas situações, o poder público atuou oferecendo os serviços, onde isso não ocorreu, iniciativas dessa burguesia urbano industrial criaram escolas e outras instituições para atender as reivindicações dos trabalhadores e inibir a sua auto-organização.

Esse não é um movimento exclusivo da província de São Paulo ou da cidade de Campinas, é um processo que se iniciou no período imperial e que prosseguiu nos anos iniciais da república, se disseminando por todo o território brasileiro onde surgiram as grandes cidades. No caso da educação profissional, como o demonstra a tabela abaixo que apresenta a criação dos Liceus de Artes e Ofícios em algumas cidades, havendo um processo de urbanização há o surgimento de sociedades, associações, enfim homens que passam a defendê-la.

 Liceu de Artes e Ofícios

Cidade Ano Nome da Sociedade
Rio de Janeiro 1856 Sociedade Propagadora das Belas Artes
Salvador 1872 Criada por iniciativa do Estado com o apoio das Agremiações Profissionais*
Recife 1871 Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais de Pernambuco
São Paulo 1882 Sociedade propagadora de Instrução Popular
Campinas-SP 1892 D. Nery, apoio do Barão Geraldo de Rezende e Maria Umbelina Alves Couto

* Sociedade de Artes e Ofícios da Bahia, fundada em 1870, a Sociedade Liga Operária Baiana, fundada em 1872, e a Sociedade Democrática Classe Caixeiral, fundada em 1877.

Inicialmente como um projeto de assistência e benemerência, mas com a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, o desenvolvimento das indústrias, o surgimento das organizações do operariado e a conjuntura criada pela primeira guerra mundial, na qual o país não tinha mais como importar, a educação profissional começa, gradativamente, a ocupar um outro locus. Mas as mudanças não provém unicamente do campo econômico, elas também ocorrem na política com o fortalecimento do movimento republicano e sua aspiração pela transformação do súdito em cidadão, ou seja, era preciso ampliar a participação política do e para o povo, mas para isso era preciso educá-lo, afastando-o das ideias exóticas de anarquistas e socialistas. Era preciso qualificá-lo para o trabalho, pois só́ através deste se alcança o sucesso econômico, era preciso educá-lo para a ordem, pois só́ através desta se alcança o progresso. A qualificação para o trabalho em primeiro lugar, se realizou através de uma construção positiva da ética do trabalho que o afastasse do estigma da escravidão, para posteriormente, alcançasse a capacitação técnica. A educação para a ordem representou estabelecer a participação política nos marcos do capitalismo republicano recém-implantado.

Avalio que o resultado de minha pesquisa demonstra que ao se unir para criar a Associação Instituto Profissional Masculino, um grupo de homens influenciados pela ideologia maçônica, industrial e republicana teve como preocupação contribuir para o desenvolvimento da sociedade campineira. Desenvolvimento este que deveria ocorrer nos estritos marcos do capitalismo, em uma conjuntura na qual as ideias anarquistas e comunistas eram vistas por eles como exóticas e sem conexão com a realidade social brasileira. Para que isso ocorresse era necessário educar o trabalhador construindo uma concepção positiva de trabalho em oposição à concepção que predominou no Brasil no período escravista. A esta educação cabia também manter o trabalhador brasileiro afastado dessas ideias. Para eles, o Estado não teria como isoladamente exercer essa função e por isso era necessário que a iniciativa de grandes homens o auxiliasse.

Isso se manifestou na prática em Campinas na criação da Escola do Povo, da Escola Correa de Mello, do Liceu de Artes e Ofícios, da Escola de Comércio Bento Quirino entre outras. A perspectiva de desenvolvimento de um campo educacional independentemente do poder público era uma ideologia que não conseguia sobreviver frente a uma realidade histórica, na qual se observa surgirem e desaparecerem escolas com muita facilidade ou que se tornava necessário entregar as escolas ao poder público.

Nessas circunstâncias, como observou Saviani, o pensamento destes homens era marcado por uma tensão:

Delineia-se no pensamento liberal em suas várias vertentes presentes no contexto brasileiro (positivismo, evolucionismo social e as diferentes versões do liberalismo político: moderada, radical, republicana) uma tensão de fundo: a percepção da centralidade do Estado e, ao mesmo tempo, a recusa em aceitar seu protagonismo no desenvolvimento da sociedade. (…)  A referida tensão balizou o pensamento pedagógico e a política educacional ao longo da Primeira República. (SAVIANI, 2008,168-169)

No caso da Bento Quirino, este embate esteve presente ao longo do período analisado e causou embates e disputas entre os membros da associação, mas essa tensão só́ foi equacionada quando a associação entrega a escola ao Estado, mas mantém seu poder de interlocução e de influência na escola.

Para concluir, preciso destacar o fato que a escola Bento Quirino não teve como seus alunos os desvalidos da fortuna, embora nos discursos dos políticos e dos mantenedores isto tenha ocorrido. Pelo contrário, a educação dos desvalidos figurou como elemento de retórica e não como prática social efetiva, pois os alunos da Bento Quirino ou foram escolhidos pelos membros da associação, desvelando uma relação de compadrio entre quem indica e a família de quem é indicado e, no período posterior, a análise dos registros de matrículas demonstram que seriam descendentes de uma chamada classe média que embora proletária não se identificasse como tal. Novamente, como destaca Hobsbawm:

A instrução escolar oferecia, acima de tudo, um bilhete de entrada para as faixas médias e superiores reconhecidas da sociedade e um meio de socializar aqueles que eram admitidos, de modo a distingui-los das ordens inferiores. (Op. Cit. 1988, p. 247).

Ou seja, a escola contribuiu para a conformação de uma sociedade de classes, bem aos moldes da sociedade capitalista, procurando hierarquizar a sociedade e ocultar a diferença fundamental entre as classes, a saber: a propriedade dos instrumentos de trabalho. Para os alunos da Bento Quirino no período em que estudamos, estava posta a possibilidade de ascensão social, mesmo que esta não sanasse a sua condição original de explorado.

bentoquirinonovo

Fachada recente do ETEc Bento Quirino. Av. Orosimbo Maia, 2600 – Cambuí, Campinas – SP. 

Referências:

HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SAVIANI, Demerval. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2008.
VILELA, Américo Baptista. O instituto profissional masculino Bento Quirino: uma visão social ideológica, maçônica, industrial e republicana. Campinas: Faculdade de Educação – Unicamp [Dissertação de mestrado], 2011.

As teses e dissertações completas estão disponíveis no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp: http://repositorio.unicamp.br

3 comentários

    1. Estão confundindo a Escola Bento Quirino em Campinas na Av Orosimbo Maia, com a segunda maior Escola Técnica de Comércio no Brasil (só em São Paulo a Álvares Penteado foi a primeira), e a segunda, fundada em 1915, em seu encerramento em 1985, com o professor Ciro Simões Magro, no Largo do Carmo: Escola Técnica de Contabilidade Bento Quirino. Lecionei aí de 1966 a 1984, Estatística. Registro DEF MEC 6483. Prof auditor Antonio Carlos da Silva. NÃO É A PRIMEIRA VEZ QAUE FAZEM ESSA CONFUSÃO na história do Bento Quirino.

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