Trilhas sonoras da reclusão

Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, escritor. Titular da Cadeira  3 do IHGG Campinas.

Resumo:

Confinado em meu apartamento, tenho-me dedicado à leitura e à audição de antigos discos de vinil e de CD’s. As redescobertas me levam à irresistível obsessão de escrever, o que eu chamo de “escreviver”. Nesse texto aprecio algumas obras de música medieval e de música popular contemporânea.

Reclusion soundtracks.

Abstract:

Confined to my home, I have been dedicated to reading some old and new books and listening to old vinyl and CD’s records. The rediscoveries lead me to an irresistible obsession with writing, what I call “to live-write”. In this paper I appreciate some medieval music and contemporary popular music.

* * *

Helena Meirelles, violeira.

A mato-grossense Helena Meirelles foi (é) um fenômeno. Nascida, em 1924, passou a infância ouvindo os violeiros e violonistas acolhidos por seu avô paraguaio. E de tanto ouvir e ver, decorou as posições e aprendeu, autodidata, a tocar os instrumentos. Casou-se, teve filhos, deixou o marido e seguiu sua vida, sempre tocando viola, em bares, em bordeis. Sua habilidade nas cordas apenas tardiamente foi descoberta. Beirava os 68 anos quando se apresentou na TV e nos palcos de teatros. Seguiram-se anos de consagração e de reconhecimento nacional e internacional. Faleceu em 2005, aos 81 anos.

Ouço seu CD de 1994. Nele toca, e canta, treze peças, algumas de sua autoria, e relata saborosas histórias e causos. Entre as canções, Chalana (Arlindo Pinto e Mário Zan), uma das que eu levaria para a minha ilha deserta (que seria, certamente, mais deserta que as atuais do arquipélago urbano). Por que? Não sei bem. Talvez porque me transporte para minha infância, para as minhas origens rurais, ou, talvez, para algo ainda mais distante, e anterior, e telúrico, para alguma arcaica ancestralidade. Seu toque de viola remete a um certo Oeste Profundo, a um Matogrosso mítico, já fronteiriço ao Paraguai, evoca quiçá uma nossa face paraguaia, uma índole paraguaia que se emociona e chora ao ouvir velhas guarânias.

Outra das canções a merecer especial atenção trata-se da guarânia intitulada Cerro Corá, autoria de Hermínio Gimenez e Felix Fernández. Inicia-se em castelhano (ou português?), com as palavras acampamento, acampamento, que já na primeira estrofe se alternam com expressões em guarani, o qual passa a predominar no contexto, para novamente ressurgirem, aqui e ali, expressões em espanhol ou português e, no meio de tudo, a menção ao “Mariscal López.”

Cerro-Corá: sim, foi nesse local que se travou a batalha decisiva da Guerra do Paraguai, na qual o líder paraguaio, Solano López, depois de se recusar por duas vezes à rendição, foi duas vezes ferido, e morto.

Como decifrar aquelas expressões em guarani? Existe um site denominado portalguarani, onde localizei a letra da canção e o histórico de seu autor, o poeta Felix Fernandez, que incorporou o idioma guarani ao seu falar poético, de que é exemplo a seguinte estrofe inicial:

Acampamento, acampamento, amoite Cerro Corápe
Pyhareve ko’éti rire nande guerra opahague
Marechal Henda Ari ljespadami Okápe
Superar ou morrer he’ihápe ohuguaiti umi kamba

Mas não consta, no mesmo portal, qualquer tradução. As palavras permanecem em espesso mistério.

E por que essa escolha de Helena Meirelles? Homenagem aos ancestrais? Repercutir sepultadas vozes de protesto e de uma dor secular? Reverenciar a memória de Solano Lopez, herói nacional paraguaio? Ou simplesmente incorporar ao seu repertório a beleza intrínseca e despolitizada da canção?

Josquin e a falta de dinheiro

Também ouço Josquin Desprez (c.1440-1521), especialmente o CD do selo Harmonia Mundi intitulado Adieu, mes amours,

Compositor de música sacra, nesse disco encontram-se registradas, todavia, breves canções profanas em cinco vozes, de teor, sobretudo, amoroso, como a que serve de título, e mais: Pranto de dor, Coração desolado, Coração langoroso e, noutro tom, Falta de Dinheiro.

Segundo o encarte que acompanha o disco (sou leitor contumaz de capas e encartes, que invariavelmente contêm preciosas informações sobre o material gravado), o tema – medieval e contemporâneo – da falta de dinheiro estava presente na obra de Rabelais, que a compara a uma verdadeira epidemia (Pantagrueline Prognastication – 1533) e de François Villon, extraordinário poeta francês do século XV, cuja obra se propõe a louvar rainhas de antanho (Ballade des Dames du temps jadis, com o refrão Ou sont les neiges d’antan?) e reverenciar figuras populares, como a Gorda Margot; tecer loas ou súplicas aos príncipes e entoar lamentos confessionais (como um Epitáfio a Villon).

A revolução da polifonia

Natural de Flandres (em território que hoje se localiza na Bélgica) Josquin Desprez era cultor da polifonia, integrante da terceira fase dessa corrente musical. Tenho escasso ou nenhum conhecimento da teoria e da linguagem musical. Ouço só de ouvido. Mas frente a essas composições que ainda em pleno período medieval passaram a cultivar a polifonia, a multiplicidade de vozes, tive a percepção, intuitiva, de que ela representou uma verdadeira revolução na trajetória da música ocidental. Os doutos vieram confirmar essa impressão de amador.

Normalmente, as revoluções de natureza estética e, em especial, musical são anunciadas e se instauram de maneira imediata. Foi o caso, por exemplo, do impressionismo, nas décadas finais do século XIX, que projetou nomes como Debussy e Ravel, e do dodecafonismo, invenção sonora dos austríacos Arnold Schomberg, Alban Berg e Anton Webern, nas primeiras décadas do século seguinte.

Com a revolução polifônica aconteceu de modo diferente. Concebida ainda no século X, a experimentação da polifonia estendeu-se por vários séculos, consolidando-se e alcançando seu apogeu no século XVI. Como se sabe, até então a música ocidental, desde a Antiguidade clássica, se sustentava na monodia. Esta predominava ainda naquele século X (e nos seguintes), através dos cantos litúrgicos já sistematizados pelo estilo gregoriano. Eram cantos coletivos marcados pelo caráter uníssono, uniforme, sóbrio, austero, plano (cantus planus = cantochão). O ideal de sobriedade era um dos dogmas na teoria musical dos cistercienses – o que procurei explorar em meu romance Crônica de Bernatz & Bertran, através do personagem Cristiano, responsável pela condução dos cantos coletivos da abadia, fiel seguidor do dogma, ao qual o bibliotecário Isidoro, espécie de livre pensador, dirige a indagação: Seria, portanto, uma transgressão introduzir um ou outro acento mais ardente e apaixonado à monodia?

A sutil revolução, elaborada dentro da própria Igreja Católica, iniciou-se no interior de suas abadias e catedrais, consistindo em se introduzir o canto a duas vozes (diafonia). Foi quando se destacaram nomes como o de Hucbald de Saint-Amand (840-930), autor de Rex Coeli, Domine Maris, para duas vozes, e, já no século XII, de Pérotin, tido como o pai da polifonia e que entre 1180 e 1232, cria um novo estilo musical, que hoje seria classificado de vanguarda.

A partir dessas ideias iniciais, a experiência se ampliou, para alcançar uma diversidade de vozes, que se alternam, se sobrepõem, se contrapõem.

Sempre que procuro esclarecer minhas intermináveis dúvidas sobre a matéria musical, meu livro de consultas tem sido a História da Música Europeia, de Jacques Stehman, que consegue realizar a proeza de condensar, em menos de 300 páginas, toda uma trajetória da música ocidental, desde suas origens até aos compositores de vanguarda do século XX, como Stockhausen, Pierre Boulez e Luciano Berio.

É nessa obra (da qual extraídas as referências a Huckbald e Pérotin retro mencionadas) que se noticia que, após aquela fase primordial, seminal, seguiu-se, dois séculos depois, a série de composições construídas a partir do conceito da Ars Nova, tal como ideada por Philippe de Vitry, bispo de Meaux (1291-1361).

É nesse período que se inscrevem as composições de Guillaume de Machaut (1300-1377), autor tanto de obras profanas quanto de uma grandiosa Missa a Quatro Vozes, a primeira missa polifônica da história.

Nos séculos XV e XVI instaura-se a idade de ouro da polifonia.

Até esse momento, o epicentro de criação e experimentação musical se situava no reino da França, com a capital em Paris. No entanto, com a derrocada francesa frente aos ingleses na batalha de Azincourt (1415), inclusive com a entrada triunfal das tropas inimigas em Paris (o que se repetiria na Guerra Prussiana, em 1871, e na Segunda Guerra Mundial) e o colapso que se seguiu, atingindo inclusive a atividade cultural, a continuidade da elaboração polifônica transferiu-se para o ducado da Borgonha que, a esse tempo, compreendia territórios do norte da França, Bélgica e sul dos Países Baixos.

Eram originários dessas regiões nomes como os de Jean Ockegen (1420-1495), Roland de Lassus (1532-1594) e, além de muitos e muitos outros, o nosso Josquin Deprez (1450-1521).

Nascida das preocupações dos compositores com o desenvolvimento da música vocal sacra (resultado de certa necessidade de inovar as concepções artísticas e musicais que, repetitivas, já haviam atingindo os limites da exaustão), mediante a introdução de outras modulações, nuances e adornos (tais como ocorreria em outras áreas de criação artística, como a arquitetura, que vai abandonando o estilo românico para ingressar no gótico – e, mais tarde, diria eu, no barroco), a polifonia não tardara a também a produzir música profana.

Muitas das obras de todos esses períodos encontram-se acessíveis na Internet. De Michaut, por exemplo, entre outras tantas canções, é particularmente destacável, por sua inventividade, aquela intitulada Ma fin est mon commencement, mon comencement ma fin. O áudio vem ilustrado pela correspondente partitura, que assume singularmente um formato circular. A própria canção se desenvolve circularmente (ousaria dizer que se trata de uma música infinita).

Curiosamente, só fui descobrir essa peça através da leitura do encarte de um LP, contendo gravações de obras pianísticas de compositores do século XX, onde justamente se invoca a presença de uma certa reminiscência, em  obras da mais recente vanguarda musical, de peças de um tempo pretérito, mas que, em sua época, soaram igualmente vanguardistas e, não só, conservam tal qualidade até mesmo nos dias atuais.

Voltando, já para finalizar, a Desprez: se não sei cantar, posso ao menos murmurar os versos de sua canção, onde, desde o Medievo, ecoam as lamentações em torno do eterno assunto da Faulte d’argent:

Faulte d’argent, c’est douleur non pareille
Femme qui dort pour argent se reveille
Faulte d’argent  n’emplit point la bouteille

(aproximadamente: falta de dinheiro, é uma dor sem igual; mulher que dorme, por dinheiro desperta; falta de dinheiro, não enche a garrafa).

Jazz: entre a melancolia e a euforia

A verdade é que, nos últimos meses, tenho ouvido, geralmente nos finais de tarde, sobretudo discos de jazz.

Talvez porque abrangem a leveza da música popular e, já pelos meados do século vinte, as experimentações e a sofisticação próprias da música erudita contemporânea, através de movimentos como o bebop e o free jazz. Também permitem momentos de euforia e de melancolia – e outros de uma certa modalidade de prazer estético que se pode definir como intelectual.

Os momentos eufóricos, e dançáveis, são proporcionados, por exemplo, pelas gravações mais antigas, que remontam aos primórdios do jazz em New Orleans, como as de Louis Armstrong. Ou até mesmo as de Lester Young: responsável pelo saxofone mais aveludado da trajetória jazzística, ele e seu quinteto garantem três minutos de plena alegria numa canção justamente intitulada Sometimes I am happy.

Há o outro extremo, de canções que só vem acentuar a atmosfera de melancolia própria da hora do crepúsculo, a qual muitas vezes perigosamente se aproxima das fronteiras da angústia.  Mas como não deixar de ouvir, pela enésima vez, Autumn in New York, na voz insuperável de Billie Holliday, acompanhada pelo piano de Oscar Peterson? Dizem os entendidos que, ao tempo dessa gravação (1951), a voz de Billie já não conservava o antigo esplendor, maltratada pela bebida, as drogas e o preconceito; porém, mais do que nunca, ela então possuía a sabedoria de extrair de suas abençoadas cordas vocais o máximo de sentimento, de  expressividade, de exata e intimista dicção dos versos, como se os sussurrasse debruçada em nossos ombros.

Estive em New York uma única vez, aproveitando que meu filho Rogério trabalhava numa cidade próxima. Enquanto caminhava por Manhattan, pelo Central Park, pelas proximidades de Times Square, a trilha sonora mental que incessantemente me acompanhava não era a New York New York celebrada por Frank Sinatra, mas a outonal New York imortalizada por Ela, Billie Holliday.

Há, enfim, aquelas peças que falam ao intelecto, as que devem ser ouvidas e lidas. Composta e gravada na década de 1940, pelo sax alto de Charlie Bird Parker e pelo trompete de Dizzy Gillespie, Salted Peanuts ainda hoje (mesmo nas demais gravações que se seguiram, com outros instrumentistas) mantém a aura de permanente vanguarda. Round Midnight, do pianista maior, Thelonious Monk, também. Idem, os quarenta minutos de  Free Jazz, de Ornette Colleman. E, em particular, A love supreme e Dearly beloved, entre outras tantas obras-primas, do saxofonista John Coltrane.

Depois que Coltrane faleceu, em 1967, com quarenta anos de idade, deixando um legado de constante experimentação, em que as investigações em torno dos limites da expressão musical jazzística se expressavam num misto de visceralidade e misticismo, foram muitos os seus herdeiros musicais.

Um deles foi o também saxofonista Albert Ayler. Em seu disco intitulado In Greenwich Village, Ayler como que procura radicalizar as propostas de Coltrane. Uma de suas composições destina-se justamente a homenageá-lo, For John Coltrane; outra, intitulada Our Prayer, mantém certo feitio de prece, feitio de oração, presente em muitas das peças do mestre. E há Truth is marching in: em sua execução a certa altura como que ecoam os sons das bandas de rua da primordial New Orleans; é como se, ainda uma vez, a vanguarda sempre mantivesse um pé assentado na tradição, interagindo com ela. Não por acaso, o título remete a um nome do cancioneiro popular, The saints go marching in, gravada tanto por corais mórmons quanto pelo eterno trompete de Louis Armstrong.

Jamais se saberá se Ayler conseguiria seguir adiante no desenvolvimento das ideias musicais de Coltrane: também ele viria a morrer precocemente, em 1971, aos 34 anos: seu corpo foi encontrado no East River de Nova Iorque, após 20 dias de buscas (Joachim E. Berendt, O jazz do rag ao rock, Ed. Perspectiva, 1975).

Os prazeres da rua

De repente, da memória solitária de um verso, vem-me inteira a letra de um samba-canção, com tal persistência que me ponho a cantarolar:

Trago meu cabelo grisalho,
Tingido pelo orvalho
Das noites frias sem lua.
Volto à residência modesta
Que deixei pela seresta
Pelos prazeres da rua.

É a primeira estrofe de uma canção de Adelino Moreira, intitulada Regresso, gravada por Nelson Gonçalves, Carlos Nobre, Carlos Gonzaga.

A lembrança daquele verso final da primeira estrofe produziu um efeito nostálgico: o de novamente poder percorrer as ruas, sem medo, sem desassossegos. Não, naturalmente, em busca dos prazeres da seresta, ou da orgia, como se diz na canção, mas simplesmente o de simplesmente caminhar pela ruas centrais, a Glicério, a Barão de Jaguara, rever os companheiros do CCLA, reencontrar outros na livraria Pontes, no Café Regina – voltar, em suma, a viver, a viver plenamente, sem mais temer o que, insondável, nas esquinas nos espreite.

Imagem de Ri Butov por Pixabay

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