A febre amarela e os italianos

Romilda Aparecida Cazissi Baldin – genealogista, pesquisadora. Titular da Cadeira 8 do IHGG Campinas

Resumo:

Este texto trata das diversas fases da epidemia de Febre Amarela em Campinas no final do século XIX, quando os italianos, aqui chegando numerosos para o trabalho nas fazendas de café, foram muito afetados pela doença. Como entidade assistencialista e educacional, o Circolo Italiani Uniti existia desde 1881, mas, a pedido de José Paulino, o intendente municipal da época, foi transformado em enfermaria / hospital e passou a atender a população em geral.

The Yellow Fever and the Italians (Campinas, SP, Brazil).

Abstract:

This text presents the different phases of Yellow Fever epidemics in Campinas (SP, Brazil) at the end of 19th Century, where the Italians immigrants, who had arrived for work on the coffee farms, were the most affected. The transformation of Circolo Italiani Uniti, (a mutual aid entity and school for Italians), in a infirmary / hospital to attend the request of José Paulino, who was the public administrator at the date, and starts to attend the general population.

* * *

É sabido que a febre amarela não existia no Brasil na ocasião da descoberta. Somente no final do século XVII, por volta de 1685 é que se manifestou trazidas pelos negros escravizados provenientes da ilha de São Tomé, na África. Tendo se iniciado em Pernambuco, se estendeu por todo o Brasil colonial e imperial. Depois disso, desapareceu para retornar no final de 1849, na Bahia.

Diversas causas foram apontadas para a doença. Hoje absurdas, elas eram aceitáveis para o conhecimento da época: a exposição à chuva, à umidade, ao sereno, ao sol (insolação) até indigestão, abusos sexuais e transpiração excessiva eram apontados como causas.

Somente em 1902 o médico Emilio Ribas provou que a febre amarela era transmitida por um mosquito denominado Stegomyia fasciata, atualmente conhecido como Aedes egypti. Ele mandou que se recolhessem larvas do mosquito em Itu (SP), onde não havia a febre, e que fossem levadas a São Simão (SP) onde havia um foco importante. Lá picaram uma pessoa que estava com a febre amarela nos primeiros dias da doença. De lá os mosquitos foram trazidos de volta a São Paulo e picaram pessoas em perfeito estado de saúde, entre eles o próprio Emilio Ribas, seu colega Adolfo Lutz e outros quatro voluntários: Domingos Vaz, Oscar Marques, André Ramos e Januário Fiori. Três deles contraíram a febre, sendo que Emilio, Adolfo e Oscar não.

Os especialistas prosseguiram com a experiência colocando no Hospital de Isolamento, em um quarto preparado, completamente vedado para que não entrasse nenhum mosquito, três italianos recém chegados ao Brasil: Giuseppe Malagutti, Ângelo Paroletti e Giovanni Siniscalchi. Eles foram remunerados para passarem dez dias e noites fechados em contato com roupas e excrementos de amarelentos e não contraíram a doença. Estava provada a teoria de que era o mosquito o transmissor da febre amarela.

As epidemias em Campinas: 1889, a grande epidemia

Já nessa época Campinas era um poderoso centro econômico nacional. Até 1889, os relatórios hospitalares não faziam referências à febre amarela, apesar de a doença ser endêmica e epidêmica em algumas cidades de São Paulo, principalmente em Santos e, por isso, dizia-se que a febre não subia morros. Assim, imaginavam, que Campinas estaria livre dela. Ledo engano: ela chegou em fevereiro de 1889.

Pelo impacto que causou, tanto na Província de São Paulo, quanto na Capital do Império (Rio de Janeiro), a epidemia de 1889 foi considerada pavorosa, mas a mais mortífera foi a de 1896, como veremos adiante.

Por ter sido a primeira, as ruas de Campinas esvaziaram-se, os barões do café foram para as suas fazendas ou para a capital da Província e muitos não mais voltaram. Famílias inteiras abandonaram suas casas e buscaram refúgio nos sítios e nas cidades próximas. Campinas ficou praticamente deserta. Até a Câmara Municipal foi transferida para o distrito de Valinhos.

A epidemia foi introduzida por uma imigrante suiça, Rosa Beck, que chegou ao Brasil pelo Porto do Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1888, a bordo do Navio Ville de Maranhão, com 24 anos (dados do Arquivo Nacional – Divisão de Estrangeiros – ano 1888). De lá ela veio para São Paulo, pelo Porto de Santos, e depois para Campinas, onde lecionaria francês e se casaria com o filho de uma abastada família local.

Sem saber que tinha sido picada e contraído a febre, ela hospedou-se na casa de amigos na região central. Eram proprietários da Padaria Suíça, na Rua Bom Jesus (atual Avenida Campos Sales). Foi desta padaria que os mosquitos infectados passaram a picar os fregueses.

A 9 de fevereiro de 1889 chamaram o Dr. Germano Melchert para atendê-la e este, tomando conhecimento de que ela havia chegado ao Brasil pelo Rio de Janeiro e, depois, seguido para Santos, a diagnosticou com febre amarela. A transmissão foi rápida e a doença alastrou-se pela cidade. Depois de Rosa Beck seguiu-se a contaminação de um empregado da padaria, da família dos proprietários e de uma criança de 9 anos que morava próxima dali e ajudava os proprietários nas entregas.

Lembre-se de que a imigração italiana tomara impulso em 1886 e já em 1889 havia muitos italianos no município.

A epidemia causou pânico e mortes. As principais atividades foram paralisadas e organizaram-se mutirões de socorro. José Paulino Nogueira, presidente da Câmara Municipal, escolheu algumas casas no então longínquo bairro Guanabara e nelas instalou um hospital de emergência, para que se isolassem e atendessem os atingidos pela febre e pela varíola. O local ficou conhecido como Lazareto do Fundão.

Também a sede do Circolo Italiani Uniti foi utilizada como enfermaria especial, tendo à frente o Dr. João Guilherme da Costa Aguiar, que trabalhou intensamente e gratuitamente para salvar vidas, mas infelizmente veio a falecer pela febre.

O médico e historiador Lycurgo de Castro Santos Filho, em seu livro: Febre Amarela em Campinas-1889-1900, reproduz um trecho de uma carta das tantas que o Dr. Costa Aguiar escreveu a seus familiares em Itu. O trecho abaixo também foi reproduzido pelo colega, Dr. Cesário Mota Junior, em artigo publicado logo após o falecimento de Costa Aguiar:

Continuamos a lutar. O número de médicos está muito reduzido, ma hei de ser um dos últimos a sair. Levei a família para fora, assim posso trabalhar mais tranqüilo…Vai se criar uma enfermaria especial exclusivamente para os italianos, que são os que mais morrem.

Costa Aguiar faleceu a 19 de maio de 1889. Ao seu enterro, em Itu, compareceu uma delegação do Circolo Italiani, chefiada pelo Presidente Enrico Bolongaro, que havia contraído a febre mas curou-se.

A enfermaria do Circolo tratou de 133 amarelentos e destes 57 faleceram.

Alguns italianos mortos em 1889:

Francesco Misorelli – 9 anos,
Miguel Bartelloni – 18 anos, sapateiro,
Rafel Bartelloni – 22 anos (irmão de Miguel), sapateiro,
Vitorio Zanardini – 22 anos, faleceu trabalhando em prol da comunidade,
Antonieta Gagliardi e seu marido Serafino Gagliardi (sobrenome ainda existente).

A colônia italiana da cidade também criou, em 18 de março de 1889, a Cruz Verde, com o intuito de ajudar com gêneros alimentícios e medicamentos os membros carentes. Funcionava no mesmo prédio do Circolo Italiani Uniti e sua diretoria era formada por Alfredo Carneiro, Fernando Balletero (presidentes), Hugo Rizzi, Benjamin Tagliete, Luiz Galgano, Pedro Semmi, Francesco Fachini e Hugo Barsotti.

Iniciada em fevereiro, a epidemia perdurou até final de junho de 1889.

Alfredo Carneiro, em seu livro Histórico da epidemia em Campinas calcula que 1.200 pessoas morreram pela febre amarela em 1889. Os italianos teriam sido os mais atingidos, com 406 óbitos, seguidos pelos portugueses, brasileiros e de outras nacionalidades.

Em julho, achando-se livre da febre, a cidade passou a agradecer aos que socorreram a população. O Circolo Italiani Uniti foi agraciado com um ofício da Câmara Municipal, pelo serviço prestado em prol da população.

1890 – A segunda Epidemia

A cidade estava renascendo, voltando ao normal. Os bailes, as peças de teatro, as grandes festas nas casas dos barões iluminavam novamente a cidade. A República recém instalada também era motivo de festas para parte da elite. Não se pensava mais na febre amarela e no que ela havia causado, não se pensava que voltasse… mas infelizmente voltou.

Em janeiro constatou-se casos esporádicos da febre. Tomaram-se então medidas preventivas para que a população não fosse surpreendida e que ocorressem tantos óbitos como em 1889. Desta vez as pessoas foram atendidas no Lazareto do Fundão e na Sociedade Beneficência Portuguesa. Assim mesmo houve um grande numero de vítimas, e os mais afetados novamente foram os imigrantes.

Alguns italianos mortos na epidemia de 1890:

Ângelo Ziggiatti. Este sobrenome ainda existe na cidade e são fundadores, juntamente com o maestro italiano Giovanni Rocella e a família Inglese Soares, do Conservatório Musical Carlos Gomes, em 1927, cujo primeiro presidente foi Miguel Ziggiatti.
Vitore Jacomo.
Francesco Antico, sua esposa Antonia e seu filho Giuseppe, que tinham acabado de chegar à Campinas, deixando órfãos duas crianças de 5 e 3 anos.
Arcângelo Boreto.

1892 – A terceira Epidemia

Neste ano a febre também não foi tão letal, visto que em 1891 foi bem mais branda e a imunidade salvou muitas vidas.

As vítimas, cerca de 190, eram de classe baixa, incluindo os italianos:

Pascoal Salvucci (sobrenome ainda existente)
Padre Nicolau Deoadato, dava assistência religiosa no Lazareto do Fundão.
Rosa Baldin, sem socorro na fazenda Pau D’Alho
Rosa Popa e seu filho Angelino Popa.

1893/1895 – Fase Endêmica 

Nesse período houve somente casos esporádicos, sendo por isso considerado um período endêmico.

Houve poucos óbitos. Relatamos a italiana Amália Vignalli, que era hóspede do vice Cônsul Italiano de Campinas.

1896 – A quarta Epidemia – a mais mortífera

Esta foi considerada a mais mortífera, apesar de todas as medidas tomadas, principalmente nos bairros mais pobres, onde os negros e italianos viviam, eram os cortiços que proliferavam na cidade. Essas residências enfileiradas em geral não tinham janelas em todos os cômodos, nem sempre eram pintadas e asseadas, não havia água encanada e banheiros individuais. Nas fazendas a situação não era diferente, pois as acomodações muitas vezes não eram adequadas e somavam-se os chiqueiros, galinheiros, transformando as moradias da cidade e do campo em locais com pouca higiene e apropriados para a proliferação dos mosquitos.

Iniciou-se na Rua Bernardino de Campinas, no centro da cidade, para onde se dirigiu uma senhora vinda de Araraquara, onde também existia uma epidemia, e em casa de parentes se hospedou, apesar de apresentar os sintomas da doença, ali permaneceu até ser removida para o Lazareto do Fundão.

Nesta epidemia morreram 787 pessoas e, como o novos imigrantes não estavam imunes, os óbitos entre os italianos chegaram a 253 pessoas. Alguns sobrenomes ainda perduram na cidade, como:

Francisco Sbragia,
Felício Strazzacappa,
Federico Cavallari.

Nesta epidemia destacou-se o médico italiano Dr. Clemente de Toffoli, que nasceu em 1869. Formou-se em medicina em Pádua, veio para o Brasil em 1894, permanecendo no Rio de Janeiro até validar seu diploma e poder exercer aqui a medicina. Chegou a Campinas em 1895. Além de médico foi vice cônsul italiano e inspetor  escolar. Foi médico no Hospital da Beneficência Portuguesa e diretor do Circolo Italiani Uniti. Assinou atestados de óbitos de muitos italianos. Morreu em Campinas em 1942.

obitos curia
Registro de óbitos de italianos com febre amarela nos livros da Catedral Metropolitana de Campinas

1897 – Quinta e última Epidemia de febre amarela

Não houve pânico. A cidade estava quase saneada, não havia mais tanta água parada para a proliferação dos mosquitos transmissores. Assim mesmo houve vítimas e, novamente, encontramos italianos que continuavam a chegar a Campinas.

Constatou-se 171 óbitos de italianos, entre eles:

Luigi Piccolotto – funcionário do Instituto Agronômico ( sobrenome ainda existente)
Giuseppe Piccolotto – também funcionário do Instituto Agronômico.

De 1898 a 1900 não houve mais tantos casos de febre amarela.

A doença desapareceu depois que as obras de saneamento, as redes de água e esgoto e a extração dos focos de mosquitos foram concluídas. Mas aí já estávamos no início do Século XX e já havia sido descoberta a vacina.

Hoje temos o mesmo mosquito Aedes transmitindo a Dengue, e as águas paradas e a sujeira continuam sendo as maiores responsáveis, a cada ano, pelas epidemias no país.

Campinas continua sendo um dos maiores centros econômicos do País, tendo literalmente renascido das cinzas, como a Fenix que ilustra a bandeira do Município, dominando quase todo o escudo central, sendo uma referência às epidemias que assolaram a cidade. Os campineiros mais antigos dizem que se não fossem as epidemias, Campinas teria sido a Capital do Estado de São Paulo, o que é exagero, já que a cidade de São Paulo sempre foi o principal cenário da economia e da política paulista.

Imagem destaque: Circolo Italiani Uniti, em 1919 foi transformado em Hospital e depois na Casa de Saúde Campinas.

Fontes e bibliografia:

BALDIN, Romilda A. C. Campinas italiana: as obras e conquistas dos primeiros imigrantes italianos. Campinas: Komedi, 2013.
CARNEIRO, Alfredo. Histórico da epidemia em Campinas. Campinas: Typ. Cardona, 1891.
LAPA, José R. do Amaral. A cidade, os cantos e os antros. Campinas. 1850-1900. São Paulo: EDUSP, 1998.
SANTOS FILHO, Lycurgo de C. e Novaes, José N. A febre amarela em Campinas 1889-1900. Campinas: Publicações CMU/Unicamp, 1996.
LIMA, Jorge A. de. O ovo da Serpente. Campinas, 1889. Campinas: Solution, 2017.
MONOGRAFIA Histórica do Municipio de Campinas, 1952.
REGISTROS de óbitos da Cúria de Campinas, durante a febre amarela.

4 comentários

  1. Belo artigo, apenas não entendi porque considerou a epidemia de 1896 a mais mortífera, se o próprio texto aponta que o número de mortos da epidemia de 1889 foi maior.

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  2. Parabéns à Professora Romilda pelo artigo apresentado de maneira objetiva e didática.
    Tomo a liberdade de comentar e perguntar: parece que no período imediatamente anterior à epidemia, Campinas era “cotada” para ser a Capital do Estado. Seria um “boato” que ficou entre os mais antigos habitantes da Princesa do Oeste, que passaram de boca em boca chegando até a nossa geração, ou houve algo oficial?
    Obrigado.
    Paulo Espíndola Trani

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    1. Se a ideia surgiu, o que é provável, obviamente não ganhou adeptos de peso. Campinas nunca teve a estrutura administrativa da Capital para assumir tal responsabilidade. Decerto virou uma lenda alimentada pelo discurso fatídico da tragédia que foi a epidemia febre amarela.

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