Ascetic writings (I).
Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, escritor. Titular da Cadeira 3 do IHGG Campinas.
Confinado em meu apartamento, tenho-me dedicado à leitura, à audição de antigos discos de vinil, à busca (e descoberta) de coisas interessantes na TV e na Internet e, sobretudo, à escrita, numa total entrega à irresistível obsessão de escrever = escreviver.
Trata-se de impor alguma disciplina à desordem de minhas leituras, de organizar o conhecimento do que delas possa colher. Mas, talvez, quem sabe? um meio de transmitir, aos diversos amigos, impressões de leitura, na expectativa de que lhes possa ser de algum proveito.
Ou, pelo menos, que seja uma saudação: acenar com esses escritos como quem ergue uma taça de vinho e, imitando Mallarmé, proclamar: Nous naviguons, ô mês divers Amis (…); une ivresse belle m’engage, de porter debout cet salut (Naveguemos, oh meus diversos amigos, uma bela embriaguez me anima a erguer de pé este brinde): SALUT!
Ascese
Aí pelos idos de 1959/60 trabalhei em um escritório de advocacia em Campinas, onde eu era o único e solitário funcionário, encarregado dos registros e relatórios de um loteamento e de uma fazenda de propriedade do advogado, que, aposentado, só esporadicamente ali comparecia. Tempos depois, como breve depoimento sobre aquele período, sobre aquela primeira experiência de ascese, redigi o seguinte poema, que veio a ser inserido em meu livro de 1965, Poema de Lyrico das Dores:
Glicério, sétimo andar.
Lá se ergueu a estranha ascese,
na montanha de concreto.
Lá bailei solilóquios,
em meio à ciranda de meus fantasmas.
Neste tempo presente voltei a bailar.
Saudades de Buritama
Anos depois, conheci uma nova modalidade, se não de ascese, de solidão: recém ingresso na carreira judiciária, tive de assumir, sucessivamente, várias comarcas nos arredores de São José do Rio Preto: Monte Aprazível, Paulo de Faria, Buritama, ou mesmo já nas proximidades das barrancas do rio Paraná (Palmeira d’Oeste). Tinha, quando muito, a temporária companhia do promotor; mas em regra permanecia sozinho, chegando a pernoitar no Fórum local. Trazia ainda comigo os ecos de uma existência mais agitada em Campinas, ao lado da família, dos amigos, dos companheiros de universidade, o que já bastava para alimentar um sentimento de solidão naquelas pequenas urbes; subitamente, mal saído dos bancos acadêmicos e já posto na qualidade de autoridade local, tinha de assumir um extremo cuidado em meus relacionamentos com os habitantes da comarca, o que só agravava o sentimento de segregação.
Dessa temporada sobrou outro poema, este já numa linguagem agridoce, amargo-irônica, intitulado Saudades de Buritama, refletindo a paisagem entrevista desde a janela do ônibus, os campos cobertos de flamboyants em flor:
Resignadas extensões,
Sertões ermos e vazios
Onde ora moro e morro,
E onde, doces e dispersas
Recordações de outras eras,
Meus anjos de salvação
Me sois, e sóis das sibérias
Desoladas de minha alma!
Retrato de Montaigne
O artista Thomas de Leu (1555-1720) é autor de um retrato de Michel de Montaigne (1533-1592). Na parte inferior de seu trabalho, em lugar de um título, inscreveu os seguintes e engenhosos versos:
VOICY DE GRAND MONTAIGNE UNE ENTIÈRE FIGURE.
LE PEINTRE A PEINCT LE CORPS, ET LUY SON BEL ESPRIT.
LE PREMIER PAR SON ART ÉGALE LA NATURE,
MAIS L’AUTRE LA SURPASSE EM TOUT CE QU’IL ESCRIT.
Literalmente:
Eis do grande Montaigne uma inteira figura.
O pintor pintou o corpo, e Ele, o seu belo espírito.
O primeiro, por sua arte, iguala a natureza,
Mas o outro a sobrepassa em tudo o que Ele escreve.
Operetas
Assim como a Bossa Nova nos legou, através das canções de Tom Jobim e Vinícius, Menescal e Boscoli, e tantos outros, uma idílica imagem sonora do Rio de Janeiro entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, da mesma forma as operetas compostas por Franz Lehár, Johann Strauss, Offenbach, nos transportam para um cenário ideal do que foram (ou, sob um viés onírico, do que deveriam ter sido) os teatros e os salões aristocráticos do Império Austro-Húngaro ou a Paris sob Napoleão III e da Belle-Époque.
São, estas as sensações transmitidas pela audição de um antigo LP, contendo gravações (suspeito que da década de 1930) de árias e canções daqueles dois primeiros compositores, nas vozes de um tenor chamado Luigi Stracciari e de uma soprano de nome Mila Zanari; bem como de um CD contendo árias de Offenbach, na voz da soprano Frederica von Stade.
Trechos de operetas como A viúva alegre, Sangue Vienense e A bela Helena, as canções transmitem uma ideia de pausa, de intervalo (intermezzo…), entre os grandes conflitos militares da guerra franco-prussiana de 1870/71, com a derrocada do Império de Napoleão III (sim, aquele a propósito de quem Marx disse que a história se repete, primeiro como tragédia, e depois como farsa…) e com o conflito mais devastador da Primeira Guerra Mundial, que marcou o fim do Império Austro-Húngaro.
E é pesaroso refletir que, naqueles teatros suntuosos, naqueles elegantes salões imperiais, onde eram entoadas canções tão encantadoras, já se encontravam presentes os germes de todo o horror dessas guerras.
É isto o que somos, capazes de criar tanta beleza e engendrar tantos horrores?
Gilvaz
De minha novela de 1997, Gilvaz, concebida em torno de uma certa visão do submundo de Campinas, onde circulam personagens como o que dá título à obra, e o gigolô Riobaldo, e o comerciante JPJ, e Artemisa:
Quem poderia imaginar que, durante as visitas noturnas à amante, enquanto Gil Vaz aguardava no interior do carro, ouvindo rádio ou cochilando, absolutamente indiferente ao que no interior da casa acontecesse, quer se chorasse, se embriagasse ou se gemesse de amor, JPJ, perseguido ao piano por Artemisa, entoava, e nisso revelando que no peito lhe batia um terno coração de tenor, sentidamente entoava os versos lancinantes de Tu, che m’hai preso il cuor?
Essa cena foi imaginada a partir da canção de Lehár (Tu, que me prendeste o coração / serás para mim o único amor), ouvida naquele disco, e extraída da opereta O país do sorriso. Como uma homenagem, mas também como expressão da ideia de que canções como esta são capazes de infundir ternura mesmo nos corações mais empedernidos, piano e voz soando no meio da noite, impregnando de magia o casarão da velha Rua Cônego Scipião…
Os que morreram jovens
Como se sabe, a tuberculose e outros males ceifaram muito cedo, na flor dos vinte anos, a vida de muitos dos poetas da escola romântica de nossa literatura: Castro Alves (25 anos), Junqueira Freire (22), Álvares de Azevedo (22), Casimiro de Abreu (21).
Também na Europa, no mesmo período, foram muitos os poetas finados em seus verdes anos: os ingleses John Keats (morto em Roma, para onde se locomovera em busca do clima mais ameno da Itália, tido como propício ao tratamento da tuberculose; morreu em um apartamento ao lado da Piazza di Spagna, onde hoje existe um pequeno museu em sua memória); Percy Shelley (vítima de um naufrágio na costa italiana, proximidades da cidade de Lerice), Lord Byron (morto no contexto de uma guerra, ao viajar para a Grécia para se engajar na luta dos gregos contra o imperialismo turco); o alemão Novalis, nome literário de Friedrich Hardenberg, autor de uma obra repleta de melancolia e misticismo.
Curiosamente, nos últimos anos do século XX esse fenômeno se repetiu, envolvendo artistas do rock e da música pop norte-americana e inglesa, geralmente como resultado do consumo excessivo de drogas: a cantora Janis Joplin, o guitarrista Jimi Hendrix, Jim Morrison, cantor e líder do grupo The Doors (encontra-se sepultado no cemitério Père Lachaise, em Paris, onde fui visitá-lo com meu filho Bruno; aproveitei para também visitar o túmulo de Proust); Brian Jones, integrante dos Rolling Stones; Ian Curtis, criador do Joy of Division; Curt Cobain, líder do Nirvana (este último matou-se com um tiro de espingarda; Curtis enforcou-se; Jones afogou-se numa piscina). Como coincidência fatídica, todos, com exceção de Curtis, morto com 23, falecidos com a idade de 27 anos.
Tiveram como predecessor outra figura emblemática da música popular dos EUA, o guitarrista, compositor e cantor de blues Robert Johnson. Negro, nascido no Mississipi, desenvolveu por conta própria um estilo peculiar de tocar seu instrumento. Morto precocemente, sua obra foi felizmente preservada graças à iniciativa de um produtor, que teve a ideia de levá-lo a um estúdio de gravação, onde foram registradas 29 versões de suas composições, marcadas pela pungência de suas letras e melodias.
Johnson morreu em circunstâncias misteriosas, provavelmente envenenado por um marido ciumento. A idade em que morreu? 27 anos.
Tivemos acesso, no Brasil, a um disco em vinil com exemplares de sua obra; entre nós também circulou um álbum duplo, em vinil, contendo a íntegra daquelas gravações. Uma de suas canções mais famosas, Love in vain, foi incluída no disco Let it bleed, dos Rolling Stones, na voz de Mick Jagger.
Para se ter ideia de seu toque inimitável, o guitarrista dos Stones, Keith Richards, conta ter sido Brian Jones quem, pela primeira vez, o levou a ouvir uma das canções gravadas por Johnson. A certa altura perguntou: Quem é o outro cara?. Não havia outro cara, esclareceu Jones. O som de Johnson soava como se fossem dois a tocar juntos. O que é confirmado por Eric Clapton: em estúdio doméstico procurou reproduzir o mesmo som de Johnson; não tardou para constatar que, para isso, teria de contar com a parceria de outro instrumentista.
Para completar, Noel Rosa, um de nossos maiores poetas (a vivacidade de suas imagens, a naturalidade de suas rimas, a sensibilidade para os temas sociais: sua musa não era alguma garota de Ipanema, mas a operária de uma fábrica de tecidos) e compositores, autor de tantas obras primas, como Último desejo, Conversa de botequim, Fita amarela (notáveis os seus registros em disco por Aracy de Almeida), e como Três Apitos, canção gravada de modo insuperável por Maria Bethânia, que a canta como quem sorrisse: Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você. Nascido em 1910, Noel faleceu em 1937. Mas todos nos lembramos dele, e para sempre nos lembraremos.
Franceses
Volto a falar deles (e a eles voltarei).
Descobri os poetas franceses nos inícios da década de 1960, durante as aulas de francês (quem hoje imagina que naqueles tempos aprendíamos o francês, o latim, e até mesmo, facultativamente, o grego?), no curso clássico do Colégio Culto à Ciência, período noturno.
Os compêndios de francês registravam os poemas de Victor Hugo, de Alfred de Musset, de Charles Baudelaire, de Paul Verlaine (curiosamente, nada de Rimbaud – por alguma razão, proscrito? – e nada de Mallarmé – cuja linguagem poética fosse considerada inacessível à compreensão dos jovens estudantes?).
E então eu memorizava poemas inteiros daqueles autores e que se encerravam com versos tão esplêndidos: Le seul bien qui me reste au monde / est d’avoir quelquefois pleuré (Musset: o único bem que me resta no mundo é de ter algumas vezes chorado); Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche (Baudelaire: Escuta, minha cara, escuta a doce noite que caminha); Dis, qu’as tu fait, toi que voilà, de ta jeunesse? (Verlaine: Diz, o que fizeste, tu que aí estás, de tua mocidade?).
Meu trajeto para o Culto à Ciência era singular. Morando no Jardim Leonor, eu atravessava o Campo do Cruzeiro (tanto o cruzeiro quanto o campo de futebol amador, que hoje não mais existem, se localizavam nas proximidades da Igreja de Santo Antônio), até a Avenida Saudade, onde tomava o bonde 11; descia na Barão de Jaguara, em frente à Galeria Trabulsi, e então seguia a pé até o Colégio. No retorno, ao sair da escola, fazia o caminho inverso, normalmente acompanhado de vários colegas (Dairton Tessari, Ademar Lombello, Jorginho, tantos outros); de vez em quando até algum professor nos acompanhava: a professora de filosofia Naomi, o jovem José Alexandre.
Mas muitas vezes acontecia de voltar sozinho. E então, se chovesse ou ventasse, ou se fizesse frio (ou se a chuva ou o vento ou o frio não fossem senão frutos de minha imaginação), eu vinha murmurando os versos daqueles poetas: Sois sages, ô ma douleur; Dans le vieux parc solitaire e glacé, deux formes ont tout à l’heure passé; j’ai perdu ma force et ma vie, et mes amis et ma gaité. Eu me sentia um deles, perdido noutro e desencantado século, e noutra paisagem sem névoas e tropical, mas que se transmudavam, por força da atmosfera fria ou chuvosa (ainda quando apenas mentalmente chuvosa ou fria), nalguma rua tortuosa da velha Paris, nalgum parque solitário e gelado da velha Paris.
Espártaco
Um dos livros mais influentes em minha formação foi o romance Espártaco, do norte-americano Howard Fast.
Stanley Kubrick se inspirou no romance, para realizar um filme homônimo, com roteiro de Dalton Trumbo, e com Kirk Douglas no papel do gladiador que liderou a revolta dos escravos (o regime de trabalho escravo, lembre-se, era uma das bases econômicas de sustentação do Império Romano), que só a muito custo foi vencida, com a morte e execução dos revoltosos, inclusive de seu líder.
Não é, todavia, um dos melhores filmes de Kubrick. Sua obra prima é 2001, uma Odisseia no espaço; mas também permaneço deslumbrado, a cada vez que o revejo, diante de Barry Lindon (também baseado num romance, de autoria do inglês William Tackeray), em sua maravilhosa utilização da luz e das cores, paralelamente à minuciosa reconstituição da época.
O final resultado da versão cinematográfica de Espártaco não consegue captar a grandeza do livro.
O romance transpira uma profunda dimensão humanista. O escritor tem o dom de revelar, em toda a sua plenitude, a miséria humana da classe servil, desde a descrição da exaustão dos escravos que carregam a liteira de duas nobres romanas até o aprendizado da dor experimentado pelo próprio protagonista. E alcança o seu ápice ao relatar os sentimentos do último dos escravos a ser executado: pregado à cruz, absolutamente só, o judeu Davi relembra seus tempos de liberdade nas colinas da Judeia, até ser preso e escravizado; a dura experiência de gladiador, a perda de qualquer esperança, até mesmo no deus de seus ancestrais – até conhecer Espártaco e se engajar na luta pela libertação; e até conhecer a derrota final diante das infindáveis legiões romanas. Ao final, só lhe resta expressar, do alto da cruz, o seu pleno desespero, ao gritar: Espártaco! Por que falhamos?.
Pela vez primeira eu me deparava, num livro, com a existência de um mundo cujo centro era o ser humano, em sua miséria e grandeza, em sua fragilidade e plenitude.
Continua na próxima quinta-feira.