O assassinato no Clube dos Excêntricos

The Eccentric Club case.

Fernando Antonio Abrahão – historiador, pesquisador. Titular da Cadeira 11 e presidente do IHGG Campinas.

São Paulo 11 de novembro de 1921. Meu inesquecível Agenor. É com imenso prazer que desejo que esta carta te encontre gozando mais melhoras. E junto com todos os que te são caros. O quanto eu de saúde vou bem graças ao bom Deus. Recebi ontem a noite a tua prezada carta a qual já estava muito demorada, eu já estava ficando aborrecida. Junto recebi o teu retrato o qual fico-te muito agradecida. São 5 horas da manhã. Querido, no domingo meu cunhado recebeu uma carta do Washington falando muito de você e de mim, enfim, dizendo que contaram para ele que você ali vivia conversando comigo dia e noite na janela e no portão… e que depois de 3 dias que vim para São Paulo, que viram você de braço comigo sair de uma casa… contaram também para ele que nós conversamos no bosque… quando você vier eu te contarei melhor, agora estou com pressa. Querido aviso-te e peço-te que tenhas muito cuidado e a respeito das minhas correspondências e meus relatos peço para não mostrares para ninguém, porque ele pode mandar algum amigo teu especular e você na boa fé contares alguma coisa ou mostrares os meus relatos, não se fie nos amigos, sim? Tenho andado aborrecida com cuidado de ti, que te façam alguma coisa. Meu bem, sei que me amas não, precisas zangar-se… Meu bem, não sei por que motivos desconfias que te despreze, isso nunca aconteceu e eu nunca ei de te desprezar. A respeito do sonho, está muito sonhado por alguém que foi te levar o sonho, não achas? Porque segunda feira eu fui mesmo até a estação, passei por dentro da estação, da agência do correio, fui comprar selos e foi verdade que atravessei a ponte. Sonhas muito bem acordado, não? Se vieres tenha muito cuidado ele também prometeu para meu cunhado que logo vem por aqui. Guarde bem as minhas correspondências e tome cuidado. (CMU, TJC, CJ, 1277).

A autoria desta carta foi atribuída a Vicentina do Amaral, pivô do assassinato de Agenor de Oliveira Lima por Washington Ataliba Nogueira, nas primeiras horas da noite daquele sábado, dia 12 de novembro de 1921.

As casas de jogos eram comuns naquela velha Campinas. Qualquer botequim bem ou mal frequentado do centro e arrabaldes poderia sediar jogos e apostas: sorteios, cartas, dados… Mas, engana-se quem hoje imagina que aquela jogatina campeava apenas nos botequins. Além da arraia miúda, o império do jogo abundava também na aristocracia, por clubes autorizados para recreações de associados e convidados. Estavam autorizados a promoverem bailes, festejos, exposições, saraus, mas o jogo e as apostas traziam maior movimento financeiro. Bem, as circunstâncias de favorecimentos entre alguns “empreendedores” e algumas “autoridades” nós imaginamos como se desenrola, certo?

Mas essa contravenção e suas circunstâncias não são tema desse artigo e sim o crime de paixão e ódio acontecido justamente no Clube dos Excêntricos Carnavalescos, uma antiga entidade recreativa e esportiva sediada na esquina das Ruas César Bierrenbach com a General Carneiro. Os atores do triste evento: o presidente do clube, filho de importante família das elites, e seu croupier.

A tragédia marcou a existência dos Excêntricos naquela noite de 12 de novembro de 1921. O delegado e seus policiais chegaram ao prédio, passaram pela porta de entrada do salão – construída sobre um lindo mosaico em madeira – e a poucos passos dali encontraram caído e sem vida, Agenor Oliveira de Lima. Ele trajava um terno de casimira cinza e o oficial logo observou que a sua mão direita estava enfiada no bolso da calça. Ao retirar a mão de Agenor da algibeira, seus dedos apertavam a carta transcrita acima, além do recibo de envio, naquela mesma tarde, de uma carta resposta para a infeliz Vicentina do Amaral.

O assassino saiu do clube rapidamente após o crime, mas não quis fugir. Encontrado em um bar próximo, sem oferecer resistência, ele foi preso em flagrante. Washington Ataliba Nogueira tinha 50 anos, era solteiro e se apresentava como corretor. Já na delegacia, ele declarou aos oficiais que regressara a poucas horas de São Paulo pelo trem das sete horas da noite. Da estação tomou um automóvel e desceu no Bar Christofani, onde pediu informações sobre o paradeiro do vendedor de bilhetes de loteria Aristides, de quem disse teria direito a receber cento e oitenta mil réis ganhos no jogo. Nesse bar ele soube que Aristides se achava justamente no Clube dos Excêntricos e que, por esse motivo, se dirigiu àquela casa de diversões. Interessante notarmos até aqui, que essas declarações tentavam dissuadir a autoridade policial da provável premeditação do crime.

Washington continuou. Ao chegar ao Clube dos Excêntricos dirigiu-se ao bar, tomou um cálice de conhaque e perguntou sobre o tal Aristides bilheteiro. Nesse momento, segundo ele, adentrou ao Clube o croupier Agenor, que o fitou nos olhos e lhe perguntou o que queria, a quem respondeu tratar-se de uma questão de honra. Perturbado com a atitude agressiva de Agenor e imaginando que o croupier sacaria do bolso direito da calça uma arma, Washington sacou antes seu revólver Schmidt e detonou toda a sua carga contra o rival. Aí estava a versão do assassino.

Todavia, depois de ouvidas as testemunhas, o delegado Juvenal de Toledo Piza concluiu que:

Washington já sabia que Vicentina estava apaixonada por Agenor, que ela o conhecera na casa de jogo de seu ex-amante, onde Agenor era empregado; daí datam as relações amorosas da mulher com a vítima. Vicentina deixou a companhia de Washington, mudando-se para São Paulo, de onde se correspondia com Agenor, em cartas, onde deixava transparecer o seu afeto pelo novo amante. Vicentina chamava a atenção de Agenor para que ele se acautelasse contra Washington, que o prometia matar. Possuído de terrível ciúme, Washington, já preparado para a agressão, pois estava no bolso direito do seu paletó o revólver do crime, desfechou a carga de 6 balas contra Agenor, que ao terceiro tiro rolou pelo chão, tendo os demais tiros sido disparados quando a vítima se achava caída. O acusado, quando disparava os tiros dizia: “Mato-o porquê me desonrou”. Não houve discussão, troca de palavras, nem começo de vias de fato, tanto que a vítima, agredida repentinamente quando entrava na casa, caiu por terra com a mão direita na algibeira, tal como entrara ali. (CMU, TJC, CJ, 132, 1277).

O relatório de Toledo Piza fundamentou a denúncia do promotor Antão de Souza Moraes, que logo foi aceita pelo juiz Abelard de Almeida Pires. Porém, ainda em novembro daquele ano, a defesa de Washington, exercida pelo advogado Pedro de Magalhães, pediu a reconsideração da pronúncia alegando que o réu sofria das faculdades mentais, não só pelo ato de arrebatada insensatez que se revelou no dia do crime, mas também pelo histórico da sua vida, sempre desordenada, cheia de acidentes notáveis e de perdas de fortunas. Segundo Magalhães, Washington não poderia ser imputado por ter sido interno na casa de saúde São Sebastião, para tratamento de moléstias mentais e pelos desatinos que praticava na prisão: ora alegre e pilhérico com os demais presos, ora taciturno, aflito e debulhado em lágrimas, ora nervoso, recusando alimentos e queixando-se de violentas dores de cabeça.

Decerto, como membro de uma família respeitada na cidade, os Ataliba Nogueira, Washington supôs que o status social lhe fosse vantajoso no trâmite do processo criminal, mas as suas ações criminosas estavam acumuladas nos registros judiciais e policiais e foram reveladas pela acusação, vejamos: em 1909 ele foi processado por crime de ferimentos graves; em 1912, Aristides Álvares Lobo solicitou à polícia a permissão para andar armado, alegando ameaças de Washington; em 1914 foi processado por crime de tomada de preso; no mesmo ano foi processado por explorar casa de tavolagem; em 1915, Antonio de Assis Pacheco comunicou a perseguição que Washington lhe infligia para arredar de seu bilhar os frequentadores; em 1920, Elisa Paleisy queixou-se da ameaça de Washington para danificar os móveis de sua casa e promover desordens; em 1919, Antonio Franco Cardoso alegou que Washington mantinha casa de tavolagem vizinha à sua residência e que o acusado timbrava a perturbar o sossego de sua família, promovendo escândalos e arruaças; em 1920, Vicente Paterno alegou que fora atingido de raspão por uma bala de revólver, por haver Washington penetrado no Clube de Eduardo Graça e praticado depredações em móveis e guarnições do salão e disparado seu revólver sucessivamente sobre uma mesa. A ficha do acusado não era pequena, como podemos ver.

Ele foi a julgamento. Neste, Pedro de Magalhães trabalhou especialmente contra o agravante de o crime ter sido cometido com premeditação, argumentando que as testemunhas Vicentina do Amaral, José Bento e Antônio Ferreira Solano, afirmaram que o acusado só veio a saber do nome do sedutor de sua amante no dia do crime. O fato de que o acusado não conhecer o rival até então, Vicentina havia lhe revelado no mesmo dia 12 de novembro, quando esteve em São Paulo para indagar dela própria o motivo do abandono. Ainda segundo Magalhães, grande foi o espanto de Washington ao saber o nome do indivíduo que o traía. Imediatamente, revelando pungente desespero, deixou a casa de Vicentina e voltou, na noite do mesmo dia para Campinas, onde poucas horas depois praticou o crime sob o guiante do delírio passional. Também segundo o defensor, não houve o agravante da surpresa, pois Agenor estava avisado pela carta encontrada no bolso de sua calça, de que devia acautelar-se do acusado. Magalhães disse:

Não se pode julgar traído ou surpreendido quem, quando aconselhado por amigos para desistir do namoro em que andava com a companheira do acusado, para evitar algum desatino deste, respondera que não tinha medo, e que se o acusado era meio louco, ele Agenor era louco e meio. (CMU, TJC, CJ, 132, 1277).

A decisão do caso aconteceu em 11 de março de 1922, um sábado, com a absolvição do réu pelo Júri popular. O promotor Antão de Moraes interpôs apelação ao Tribunal de 2ª instância, apontando nulidades e justificando que a gravidade do fato e a temibilidade do delinqüente eram suficientes para anular a sentença e levar o réu a um novo julgamento, satisfazendo a justa expectativa da sociedade campineira. A Câmara do Tribunal de Apelações acatou a apelação e ordenou a realização de um novo julgamento, realizado muitos anos depois, a 30 de janeiro de 1930, quando o acusado foi nova e definitivamente absolvido.

Este caso é complexo e emblemático, pois envolve todos os elementos que definem os crimes de paixão e ódio e agrega um valor presente naquela sociedade e que perdura até hoje: os favorecimentos de pessoas das elites, especialmente aquelas que por assédio moral, extorsão ou qualquer outra forma de dominação objetivam a rápida acumulação de bens e riquezas. Também é interessante notar que está anexo a este processo um outro, aberto pela mãe de Agenor de Oliveira Lima na tentativa que ela fez de auxiliar na acusação do réu. De nada adiantou para esse intento.

Bibliografia e referência documental:

ABRAHÃO, Fernando Antônio. Crimes e criminosos da Campinas cafeeira: 1880 – 1930. Campinas: Ed. Pontes, 2017.
COMBATE, O, edição de 10 de junho de 1920.
CORREIO PAULISTANO, edição de 13 de novembro de 1921.
HOMICÍDIO: CMU, TJC, CJ, 1277. Ano 1921. Vítima: Agenor de Oliveira Lima. Réu: Washington Ataliba Nogueira. Centro de Memória – Unicamp, CMU.

3 comentários

  1. MUITO BOM. SOU BISNETO DO ADVOGADO PEDRO DE MAGALHÃES, QUE ERA ABOLICIONISTA E REPUBLICANO. FAÇO UMA OBSERVAÇÃO MEU BISAVÔ ERA UM HOMEM DE FIBRA E NÃO SE CURVAVA A INTERESSES FINANCEIROS. PORTANTO AO MENOS PARA ESTE CASO NÃO PROCEDE DE QUE A SOCIEDADE PROTEGIA OS ENDINHEIRADOS. NÃO ! ALIÁS EXISTIA UMA TESE CHAMADA “LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA” PARA DETERMINADOS CASOS. A SOCIEDADE PENSAVA DIFERENTE. AGORA, REALMENTE, O MEU BISAVÔ VEIO PARA O BRASIL COM 12 ANOS DE IDADE EM UM NAVIO DO TIO. FOI MENINO DE CIRCO; SARGENTO DA FORÇA PÚBLICA EM SANTOS; ESCREVENTE, JUIZ DE PAZ E ADVOGADO EM CAMPINAS. MUITO EMBORA QUE SEU PAI, conselhereiro JOSÉ GUILHERME, QUE FICOU EM PORTUGAL TAMBÉM JÁ ERA ADVOGADO E É CONSIDERADO “REI DE PAREDES” /PORTO/PORTUGAL COM UMA ESTÁTUA NA PRINCIPAL PRAÇA DA CIDADE.

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  2. Antes de tudo, não sou advogado, mas isso é irrelevante, quando trata-se de assassinato premeditado. Oras, o réu já havia sido dispensado pela ex amante, estando já com novo namorado, também mudara-se para São Paulo, paea fugir de uma pessoa perigosa, conforme provam seus antecedentes policiais, aliás, uma extensa ficha de ameaças a terceiros. Já saiu da casa da ex amante com a intenção de mata-lo, tanto que inventou um frágil álibi do ganho na loteria. Cometido o assassinato, e preso, intentou diversas situações na cadeia, de “fingir- se de louco”, para ser internado em casa de saúde. A vítima, pobre, deveria viver de seu trabalho, o réu da elite campineira, “rios de dinheiro, poder, nomes”, condições de reverter qualquer caso. Isso sempre aconteceu e acontece aqui nessa Campinas. Toda vez que alguém da elite é processado, ele sai ileso daquele julgamento. Isso de”defesa da honra”? Que honra tem uma pessoa con uma ficha dessas? Ele se achava dono da mulher? Comprou-a de quem? A vitima era pobre, sem recursos. A elite campineira tem “as mãos sujas de sangue”, de muitos escravizados, no caso Elesbao. Réu assassino, inocente. Arquive-se. Ponto final.

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