O outro lado da família brasileira

The other side of brazilian family.

Paulo Eduardo Teixeira – historiador, professor da UNESP campus de Marília, SP.

A presença de mulheres na chefia de domicílios apareceu como um fenômeno na sociedade brasileira, especialmente no século XIX. Esse surgimento foi tratado, sim, como fenômeno, pois, em uma sociedade caracterizada pelo poder masculino sobre o feminino, a mulher, sob o aspecto de chefe de família, parecia destoar da imagem construída no imaginário social, em que predominavam os senhores de escravos e seus casarões.

Longe de ser um acontecimento exclusivo de áreas economicamente desfavorecidas para a cidade de São Paulo, as chefias femininas de famílias existiram de maneira representativa. Os resultados dos trabalhos já publicados demonstram que se buscam explicações para o aparecimento das mulheres como chefes de domicílio. A cada novo estudo surgem perspectivas e explicações diversas, capazes de sustentar que na sociedade do século XIX, tanto no Brasil como em diversas partes da América Latina, essa chefia feminina foi uma realidade.

O estudo apresentado no meu livro vincula aspectos relacionados ao povoamento da capitania de São Paulo à estrutura dos domicílios e ao viver das mulheres que se tornaram chefes de família. Retomando alguns problemas enfrentados inicialmente pelo governo do morgado de Mateus em relação à falta de pessoas, busca-se perceber como essas dificuldades foram tratadas a partir do estudo das estruturas domiciliares em Campinas, localidade que saiu do anonimato e passou a crescer em seu governo.

O objetivo não foi enaltecer as obras desse representante da Corte portuguesa, nem tampouco restringir-se ao período de seu governo, ou seja, 1765 foi apenas um marco no qual balizamos as nossas considerações iniciais com a finalidade de perceber melhor a política colonizadora personalista, que representou exclusivamente os interesses da metrópole.

Uma análise geral dos domicílios indicou até que ponto a politica de povoamento, apoiada inicialmente no estabelecimento de lavouras tradicionais, foi favorável ao projeto colonizador e, no caso específico de Campinas, qual o impacto econômico causado pela introdução da cana-de-açúcar na composição dos fogos. Para tanto, adotamos como fonte principal a documentação pertinente tanto ao século XVIII quanto ao XIX: maços de população, inventários e testamentos.

Estudou-se as chefias femininas sob dois aspectos: o primeiro privilegia o status conjugal, enfatizando as diferenças entre as mulheres solteiras, abandonadas e viúvas que chefiavam domicílios, enquanto o segundo trata de considerá-las no seu papel de trabalhadoras e gerentes dos meios necessários ao seu próprio sustento e daqueles sujeitos ao seu domínio.

O destaque das dimensões e composição da unidade doméstica assim como o uso de fontes documentais, como os maços de população, demonstram claramente o nosso interesse pela abordagem demográfica. Foi com Maria Luíza Marcilio que surgiu o primeiro trabalho na linha da história demográfica, introduzindo o uso dos recenseamentos realizados nos séculos XVIII e XIX para o estudo da sociedade paulista, com grande influência dos demógrafos franceses, especialmente Louis Henry.

Os estudos de Iraci del Nero da Costa e Eni de Mesquita Samara foram responsáveis por transplantar os métodos da Escola Demográfica de Cambridge às realidades locais, chegando a conclusões interessantes, como a do predomínio de domicílios nucleares em Minas e São Paulo, respectivamente. Diante desses fatos, fez-se necessário limitar a aplicação do modelo de família patriarcal, difundido a partir da obra de Gilberto Freyre – Casa-grande & Senzala.

A chefia feminina em Campinas pode ser entendida a partir de um longo processo de povoamento desencadeado com a restauração administrativa da capitania de São Paulo em 1765. A preocupação com a defesa das partes fronteiriças no Sul do Brasil obrigou a Coroa a repensar formas de efetivar sua dominação e garantir a exploração de áreas que lhe eram comercialmente importantes. Além disso, as idéias fisiocratas da época deram a esse projeto de colonização um elemento importante para sua concretização: o incentivo ao comércio baseado na agricultura de exportação.

O estabelecimento dessa política econômica através do projeto de povoamento e defesa da terra contou com a participação e o incentivo à formação das vilas, procurando assim reunir a população mestiça que vivia em sítios volantes. Incentivar o casamento e a disseminação dos bons costumes foi outra tarefa realizada com o auxílio e o estímulo de casais, pois destes se esperava boa propagação.

Entre os casais que foram para as frentes pioneiras no processo de expansão para o Oeste Paulista, atraídos principalmente pela construção do presídio em Iguatemi no governo do morgado de Mateus, as mulheres tiveram destaque especial como mães e esposas. Destinadas a reproduzir, geraram novas vidas, além de manter e difundir os costumes e padrões exigidos pela metrópole.

Durante o período de estabelecimento da lavoura de subsistência em núcleos rurais, foi sendo estimulada também a plantação de produtos facilmente aceitos no exterior. A tentativa de cultivar o algodão foi uma delas, mas foi com a alta dos preços do açúcar na década de 1790 que finalmente a agricultura comercial recebeu o melhor incentivo e se estabeleceu em solo paulista.

Em Campinas, diversos foram os fatores que favoreceram a implantação da lavoura da cana; dentre eles, podemos destacar a existência de um sólido núcleo populacional, tanto que em 1797 ela se tornava uma vila. Nosso estudo demonstrou que a instituição da Freguesia das Campinas foi fruto desse processo mais amplo de povoamento e incentivo à formação de núcleos populacionais que se baseavam na mão-de-obra familiar, e isso foi notado pelo grande número de domicílios nucleares existentes em 1794, ano em que o número de pessoas vivendo neles se igualou à população daqueles que viviam em domicílios ampliados e desconexos, isto é, aqueles que possuíam ao menos um escravo ou agregado.

O incremento da produção açucareira foi-se dando paulatinamente em Campinas e, durante esse período, a agricultura comercial conviveu perfeitamente com a lavoura tradicional de milho e outros produtos, permitindo a chegada crescente de migrantes de localidades vizinhas. Em 1814, a camada de agricultores, especialmente daqueles mais pobre que não tinham escravos, correspondia à principal ocupação dos chefes de domicílios, homens e mulheres.

Porém a camada de senhores de engenho, privilegiada pelo nascimento, poder e dinheiro, continuava a crescer. Nesse mesmo ano de 1814, a metade deles era constituída pequenos produtores, muitos comercializando produtos destinados à alimentação básica da população. Entretanto, sua riqueza e prestígio se fizeram sentir principalmente em 1829, quando cresceu a média de escravos entre eles e também sua produção.

Diante desse quadro, a pequena vila rural não podia ser mais a mesma. O bairro central também acompanhou a transformação, e os fogos dessa região corresponderam a 40% do total de domicílios da vila. Opostamente, diminuíram os fogos dos agricultores e lavradores que se dedicavam ao cultivo do milho, arroz e feijão. O espaço entre eles e os grandes senhores de engenho tornou-se estreito e muitos tiveram que optar ou pela migração urbana, e aí se adaptarem a uma nova profissão, ou por partirem para uma nova terra e continuarem com sua atividade. O Oeste para estes tinha-se tornado velho, e por isso muitos precisaram continuar a marcha. O tempo de acumulação tinha-se ido e nesse momento viviam os grandes senhores de engenho áureos dias, marcados por uma acumulação nunca antes vista em Campinas.

Para as mulheres viúvas que viviam da agricultura, talvez a vida no centro da vila fosse mais adequada, porque poderiam viver dos jornais de seus escravos, caso os tivessem, ou então praticar a costura não só para os de casa. Montar uma venda em sua própria casa ou sair a vender alguns produtos eram possibilidades que despontaram para elas.

Em 1829, as chefias femininas cresceram bastante. Corresponderam a um quarto do total de domicílios existentes naquele ano em Campinas e, na região central, a 40% dos fogos presentes. Várias delas viviam sozinhas, grande parte solteiras e jovens. Mas mulheres solteiras e jovens também tinham filhos, resultado de relações escusas, proibidas.

Maridos que foram abandonados por suas esposas existiam, porém o inverso era mais frequente. Com filhos, muitas levaram por toda a vida a amarga e triste experiência de viverem à espera de seus maridos, tendo por principal cuidado o futuro dos filhos.

As viúvas, como grupo majoritário dessas chefias, representavam muito bem o papel desempenhado pelas mulheres durante todo o processo de povoamento, o de esposas e mães. Enquanto mães, tiveram o apoio claro de seus filhos homens, mas nem sempre os filhos podiam ampará-las, pois em diversos casos eles eram menores. Nessas situações, muitas recorreram ao apoio de parentes e amigos, outras tentaram um segundo casamento – nem sempre feliz – e várias tiveram que enfrentar o dia a dia com as próprias forças, nem que para isso tivessem que pedir esmolas.

Diante da vida de pobreza que grassava nos lares de muitas mulheres, as senhoras de escravos constituíam uma elite, Brancas em sua totalidade, a maioria viúvas, eram representantes da herança deixada pelos maridos. Ao analisar os testamentos femininos, não visualizamos uma estratégia de herança que vinculasse os beneficiados a uma norma rígida dirigida pelas mulheres. Notamos que entre aquelas que tinham filhos, estes eram privilegiados, especialmente os menores. Aliás, o amparo aos pequenos, fossem filhos ou netos, parece ter predominado entre elas. No caso de mulheres solteiras, ficam explícitas as relações de solidariedade com outras mulheres: comadres, sobrinhas, enteadas e mesmo escravas.

A alforria dos escravos, a concessão da liberdade, esteve vinculada a alguns padrões de comportamento exigidos pelas senhoras ou ao menos reconhecidos por elas, induzindo-nos a aceitar o sistema de incentivos abordado por Robert Slenes como forma de controle utilizada por muitas mulheres, mas não podemos descartar a possibilidade de que tais atos poderiam prenunciar atitudes abolicionistas muito antes do movimento se generalizar.

Em suma, ressaltou-se através do estudo da chefia feminina em Campinas o fato de que ele esteve vinculado a um processo amplo de povoamento relacionado com o estabelecimento e a consolidação da freguesia, sem o qual dificilmente a lavoura comercial da cana teria sido implantada no momento da explosão dos preços do açúcar em 1790.

Além disso, o surgimento da chefia feminina em Campinas, uma vila eminentemente rural em 1829, só pode ser entendido a partir das transformações operadas em sua estrutura demográfica e econômica, responsável pela concentração da riqueza e da propriedade da terra pela camada de senhores de engenho, que paralelamente a esse desencadeamento gerou novas necessidades e oportunidades para outras ocupações, além daquelas ligadas ao setor agrário.

Diferentemente das razões apontadas para o surgimento das chefias femininas dos domicílios em outras localidades, Campinas durante seu apogeu econômico, que se fez perceber em 1829, viu crescer o número de mulheres que viviam sós. O que o desenvolvimento econômico sustentado pelo café trouxe para elas nos anos seguintes somente outras pesquisas poderão revelar.

Finalmente, verificou-se que as mulheres desempenharam papéis importantes no povoamento e expansão da fronteira agrícola paulista, não apenas no governo do morgado de Mateus, pois mesmo em 1836 Daniel Pedro Müller ainda reclamava do problema que a falta de gente trazia àquela província. Marina Maluf demonstrou que anos mais tarde, no final do século XIX, a fronteira para o Oeste ainda estava aberta e reclamava a presença da mulher, especialmente enquanto esposa e mãe. A base do povoamento esteve centrada no domicílio, principalmente naquele composto pela família nuclear. Mulheres, domicílios e povoamento confundem-se para gerar vilas e cidades.

Ao propormos este estudo sobre as mulheres, especialmente aquelas que eram chefes de família, apresentamos a multiplicidade desse gênero, expondo algumas das faces femininas que retratam o outro lado da família no Brasil. Viúvas, solteiras, casadas, todas construindo um mundo que lhes foi próprio. Algumas foram respeitadas e amadas por seus companheiros. Outras tiveram outro destino.

Referência bibliográfica:

TEIXEIRA, Paulo Eduardo. O outro lado da família brasileira. Campinas: Ed. da Unicamp / CMU publicações, 2004.

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