Revitalização da roda de expostos

Revival of the foundling wheel.

Ana Maria Melo Negrão – professora de direito e letras anglo-germânicas. Titular da Cadeira 30 do IHGG Campinas.  

Insuficientes as palavras para descrever minha consternação ao ler, recentemente no jornal Correio Popular, a notícia de um bebê encontrado por um morador de rua, dentro de uma lixeira… ainda com vida… o coração batia, respirava, morreu ao chegar no hospital. O bebê de três dias foi tratado como entulho… não prestava para nada, apenas para ser jogado em uma lixeira. Não teve o aconchego de seios fartos de leite, não se aninhou em um colo quente materno… Depositaram-no na lixeira de grade de ferro, gélida e dura, na friagem da madrugada… seu único berço, junto a detritos, imundícies, insetos… Sofreu seu calvário rumo à morte, numa sexta-feira santa… e assim viveu a sua Páscoa.

Conforme pesquisa em meu doutorado, assevero que, em outros tempos, o bebê rejeitado poderia ser deixado na Roda de Expostos, um aparato de madeira, colocado nos muros de Conventos, das Santas Casas de Misericórdia, em formato de um cilindro oco, com uma janela em uma de suas faces que, ao ser acionada por uma campainha, abria-se para receber a criança, e girava 180 graus, em torno de um eixo próprio, quando uma religiosa a recolhia e a registrava, dava-lhe o nome do santo do dia, uma ama-de-leite a amamentava, e a congregação a educava até que fosse adotada ou se tornasse independente. Era preservado o anonimato de quem a abandonava. Algumas vezes, bilhetes acompanhavam os bebês contendo o nome dado por alguém, peças de roupas e ainda outras informações. Importa ressaltar que era permitido o direito de expor os filhos – ius exponiendi, desde as ordenações manuelinas e filipinas.

Bilhete que acompanhou o recém-nascido Antonio Moreira de Carvalho, deixado na Roda dos Expostos, na rua Santa Teresa, Rio de Janeiro, em 27 de junho de 1922:

Recebam-me. Chamo-me Antonio. Sou um orfãozinho de pai, porque ele abandonou a mim e a minha mãe. Ela é muito boa e me quer muito bem, mas não pode tratar de mim. Estou magrinho assim porque ela não tem leite, é muito pobre, precisa trabalhar. Por isso, ela me pôs aqui para a irmã Úrsula tratar de mim. Não me entreguem a ninguém porque minha mãe algum dia vem me buscar. […] Estou com sapinho e fome. Minha mamãe não sabe tratar de sapinho e não sabe o que me dar para eu ficar gordinho. Minha mãe agradece os bons tratos que me derem.

A Santa Casa de Campinas nunca teve a Roda de Expostos. Seria uma mácula em uma cidade com setores sociais elitistas e aristocráticos.  Quando uma menina de boa família dava um mal passo a macular a sua virgindade e engravidava ainda solteira, era frequente um dos familiares, na calada da noite, levar o bebê indesejado à Roda de Expostos da Santa Casa de São Paulo. Ou um filho indesejado de uma aventura extraconjugal, ou… ou… ou…

1 – Roda de Expostos em LISBOA. Em 1870, recolheu 2879 expostos. Fonte: lisboasoso.blogspot.com /        2 – Roda de Expostos da Santa Casa de São Paulo. Fonte: Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de SP.

A Roda de Expostos criada, em 1188, pelo frade francês Guy de Montpellier, foi adotada, em 1198, nos territórios da Igreja pelo Papa Inocêncio III, chocado com o exacerbado número de bebês mortos no Rio Tibre, encontrados por pescadores. O Hospital Santo Spirito, próximo ao Vaticano, recebia, por ano, cerca de 3 mil enjeitados na Roda. Proliferou a utilização da Roda de Expostos ou dos Enjeitados por sete séculos, em muitos países: Portugal, França, Itália, Espanha, Grécia… Em Portugal, figurava em Conventos e em Santas Casas de Misericórdia, tendo a de Lisboa servido de modelo à Roda instalada na Santa Casa de São Paulo que existiu desde 1825 até a década de 1950, sendo a última criança ali depositada, Maria Assunta, em 20 de dezembro de 1950, registrada em livro próprio sob número 4580 e levada pelas irmãs ao Asylo dos Expostos Sampaio Viana.

Jean Jacques Rousseau abandonou na Roda os cinco filhos que teve com Thérèse Levasseur. Jamais soube o destino dos seus filhos e considerou a melhor decisão, na época. É difícil entender as razões que levaram Rousseau a rejeitar os filhos e fazer a apologia do amor à infância, na obra Emílio ou Da Educação.

Amai a infância; favorecei seus jogos, prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso dessa idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que lhes escapa, de um bem tão precioso?

Embora o uso da Roda tenha sido proibido pelo Código de Menor de 1927, em seu artigo 15: A admissão de expostos à assistência se fará por consignação direta excluído o sistema das rodas, ela foi mantida na parte externa da  Santa Casa de São Paulo até 1950, e mesmo depois da retirada de seu muro, rejeitados continuaram a ser lá deixados, conforme a última criança registrada, em 26 de dezembro de 1960, de nome Glória Graciana Sampaio, número 4696.

E o bebê da Sexta-feira Santa de 2020? Infanticídio? Abandono? Lixeira? …

Bebês abandonados remontam a trechos bíblicos e perpassam os séculos como uma atitude recorrente da natureza humana para livrar-se de uma criança por razões as mais variadas: gravidez indesejada, situação de penúria, ausência de retaguarda familiar, fruto de sedução, assédio sexual intramuros e extramuros, sexo sem compromisso, estupro e tantos outros motivos, desde a coação, a promessa enganosa e até mesmo ausência de sentimento de amor materno.

Julgar ou acolher?

O Código Penal Brasileiro em seu artigo 134 reza:

Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria é punível com detenção de 6 meses a 2 anos. E se do fato resulta lesão corporal de natureza grave a pena aumenta para detenção, de 1 a 3 anos. Se resulta a morte a pena é de detenção, de 2 a 6 anos.

Embora o tipo penal mencione como motivo o desejo de ocultar a própria desonra, o bem jurídico maior a ser protegido é a segurança do recém-nascido, sua fragilidade pessoal, impossibilitado integralmente de se defender dos perigos inerentes ao abandono. Deixam-se as perguntas: o pai é tão responsável como a mãe? O pai sumiu ao saber da gravidez? Qual a força do artigo 134 para produzir efeitos no social? É letra morta?

Médicos europeus impactados com a quantidade de recém-nascidos abandonados nas calçadas, beiras de estradas, latas de lixo, optaram por acolher o mais vulnerável, o bebê e, a partir do ano 2.000, decidiram revitalizar uma prática antiga: justamente a Roda dos Expostos ou dos Enjeitados, no entanto, em um formato moderno denominado La Finestra di Speranza – A Janela da Esperança.  Embutida na parede externa dos hospitais, quando acionada, um sinal soa por meio de um sensor aos médicos e às enfermeiras,  que, imediatamente, recebem o bebê ali depositado pela janela em um berço aquecido,  garantido o absoluto anonimato uma vez que o vidro da janela é fosco.

O primeiro país a adotar esse novo formato de acolhimento foi a Itália, inaugurando a Janela da Esperança no Hospital Casilino, em um subúrbio de Roma, à disposição 24 horas por dia, conforme a reportagem da jornalista Anna Paula Buchalla, veiculada, em 2007, na Revista Veja. Ao lado da Janela, um enorme cartaz traz chamamentos em vários idiomas: Don’t abandon you baby? Leave it with us. Ne l’abandonne pas! Confie-le à nous.  inclusive em português: Não o abandone! Confie-o a nós.

A janela da Esperança e cartaz no Hospital Casilino. Fonte: Revista VEJA, Salvos pela “Roda”, p.73 – Ed. 1998.

Esse novo acolhimento gerou discussões jurídicas na Itália, em torno do direito à identidade e à origem, embora contasse com a anuência da ministra de Políticas da Família, Rosa Bindy e da ministra da Saúde, Lívia Turco.

No entanto, a experiência de acolher tornou-se tão eficaz para evitar a morte de bebês rejeitados que a Roda revitalizada foi estendida a outras cidades da Itália e a outros países como, Alemanha, Áustria, Suíça, Polônia, Rússia, Bélgica, Hungria, Estados Unidos, Japão, China, Ásia, Coréia do Sul, Paquistão, Malásia, África do Sul… com denominações distintas, como alternativa para evitar a morte de bebês rejeitados. Em princípio, depois dos primeiros cuidados médicos, o Estado atribui uma tutela à criança, que fica entregue a uma família selecionada até a adoção, ou até voltar para os braços da mãe, o que raramente acontece.

A título ilustrativo, em Hamburgo, Alemanha, surgiu a pioneira Babyklappe em 2000, seguida de 78 berçários para enjeitados em todo o país, atualmente, com doações  particulares, uma vez que o Senado deixou de subsidiar, em 2002, por considerar um retorno à Idade Média, apesar do caráter social e humanitário de acolhimento. Na Polônia, cerca de 50 Janelas da Vida – Okno Zycia, ostentando o brasão Papal, foram instaladas com a assistência das Congregações Católicas de Nossa Senhora de Loreto e das irmãs Franciscanas da Sagrada Família. Na Rússia, em 2016, foi criada mais de uma dezena de Baby Hatch e na Suíça também cerca de uma dezena de Baby Fenster foi instalada, em 2001. E tantas outras…

Há países em que é permitido legalmente o parto anônimo, em que as mães, dentro de um prazo estabelecido após o parto, renunciam ao poder familiar para sempre, dando os filhos para adoção, sem a possibilidade de arrependimento. Esse consentimento de dar o filho em adoção obedece a um período após o parto: Na Bélgica e na França, o prazo é de 2 meses após o parto; na Grã-Bretanha, de 6 semanas. Essa legalização, indubitavelmente, minimiza as situações de abandono de bebês.

No entanto, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos das Crianças considera tanto o novo formato de Roda de Enjeitados como o parto anônimo um afrontamento ao direito indisponível de a criança ter conhecimento de sua identidade. Mesmo assim, a Baby Hatch prolifera cada vez mais pelo entendimento de que mais vale a proteção à vida do que a preservação da identidade, o que é uma complexa discussão jurídica.

Em pleno século XXI, com avanços científicos, métodos anticoncepcionais de prevenção à gravidez, orientação sexual, há filhos e filhos que são descartados, rejeitados, depositados nas modernas Rodas de Expostos pelo mundo afora e outros tantos são encontrados em lixeiras, em bueiros, em matagais, em praças, em ruas, em sacos plásticos…

Foi necessário revitalizar a Roda de Expostos? Seria incentivo ao abandono? É um problema de saúde pública? Ou estado de miséria? Ou falta de amor? Ou falta de tudo? Mãe e filho? Qual vínculo? Mãe… e lixo. E o pai?

E no Brasil, quais são as políticas públicas para acolher bebês abandonados? A cada dia, notícias desse teor estampam-se em reportagens por este país afora. No entanto, esses fatos parecem não indignar, são meras notícias.

Foi achado um bebê na lixeira, em um bairro de Campinas, na Semana Santa… Havia um pedaço de lençol, alguns fios de cabelo… só, só… Era lixo…

Não tenho respostas, apenas reflexões.

Referências bibliográficas:

BUCHALLA, Anna Paula. Salvos pela “Roda”. Revista Veja. Ed. Abril, 1998, p.73.
CORREIO POPULAR. Bebê achado dentro de lixeira morre no hospital. Agência Anhanguera, Campinas – SP, 11/04/2020.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1998.
NEGRÃO, Ana Maria Melo. Infância, educação e direitos sociais: asilo de orfãs (1870-1960). Tese (doutorado) – Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, SP, 2002, 334p. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/ REPOSIP/ 253494.
NEGRÃO, Ana Maria Melo. Infância, educação e direitos sociais: “Asilo de Órfãs” (1870-1960).  Campinas, SP: Publicações CMU / UNICAMP, 2004.
PRIORE, Mary del (org). História das crianças do Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE CAMPINAS MDCCCLXXI. Primeiro Centenário. Revista dos Tribunais, 1972.

2 comentários

  1. Excelente artigo que vem de frente ao que penso. Quando ouço pessoas usando estes fatos para defender a legalização do aborto e revolto, pois aborto não trará responsabilidade a ninguém. Não podemos julgar, mas antes de matar uma criança há outras alternativas. O tempo que levou para jogar um ser humano no lixo é o mesmo que deixar este ser humano no banco de uma igreja, num posto de saúde etc. Mas infelizmente vivemos um tempo onde a população se comove muito mais com o abandono de um cachorro do que de um ser humano. Parabéns pelo artigo Professora Ana MAria.

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    1. Grata pelas suas considerações que muito respeito e compartilho. É lamentável quando as pessoas deixam de indignar com descarte de ser humano.

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