Preface to the: My memories, my story.
Por Ana Maria Mello Negrão – professora, escritora. Titular da Cadeira 25 do IHGG Campinas.
Estarei sempre viva nas páginas deste livro, a recriação mais viva da minha vida interior. Cora Coralina.
As mãos irrequietas de minha mãe, que não se cansaram de transcrever a sua história de vida, buscada no baú de suas memórias, cujo cadeado foi aberto, só podemos dizer que foram instrumentos para esse livro, que há de eternizar sua pessoa, com tantas coisas a nos contar, a nos encantar, a nos emocionar, a nos unir como família que possui no centro uma grande mulher – Anna Luiza Mello Falcão, a Isa, por todos muito amada.
Este exercício de memória de minha mãe eclodiu quando eu escrevia minha tese de doutorado, em 2002, reconstruindo a trajetória do Asilo de Orfãs da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, e a envolvia com minhas buscas, em especial, no que se referia ao espaço ocupado pelo Asilo, tão familiar a ela, que nasceu e sempre viveu no quarteirão contíguo, na casa grande da rua General Osório, 1535, assistindo às procissões de 15 de agosto e frequentando a capela da Santa Casa. Como ela também nascera órfã, emergiram as lembranças de seu tempo de criança, da pacata Campinas das primeiras décadas do século vinte, estimulando-lhe a vontade de transpor ao papel sua história de vida.
Em um caderno amarelado, todos os dias, minha mãe escrevia um pedaço de sua vida, entrelaçando seus ancestrais com as travessuras de seus irmãos, alinhavando sua infância ao sabor das jabuticabas e ambrosia com os rituais de uma família tradicional que muito possuiu, mas que também muito dilapidou. Sem preocupar-se com a linearidade, ia tecendo suas memórias, ao folhear os álbuns de fotografias que lhe ofertavam o tema do dia, perpassando as ruas do Cambuí, em que desfilavam as casas e famílias com tal nitidez, como se estivesse passeando, tranquilamente, pela vizinhança, demonstrando que mesmo, aos oitenta e sete anos, o cenário de lembranças estava muito vivo.
Como a história de minha mãe está, indubitavelmente, ligada à história de Campinas, por descender da primeira família a habitar o povoamento da cidade, como confirma o historiador, Celso Maria de Mello Pupo, em seu livro Campinas, seu Berço e Juventude, colaborei na busca de fontes históricas que pudessem dar suporte à construção de sua autobiografia.
Enquanto procurava relatar sua história pessoal, a documentação encontrada e o acervo familiar permitiam-lhe detalhar a relevância de seus ancestrais sesmeiros.
A presença de sua mãe, a matriarca Anna Luiza Teixeira Nogueira de Melo, conhecida como dona Nicota, acompanhou toda a tessitura do livro, tendo como pano de fundo a casa da rua General Osório, com as hortênsias, o cheiro de jasmim, o bimbalhar do sininho do portão, as visitas, as festas, os parentes, os agregados, as traquinagens das crianças,…
Quanto à sua vida pessoal, o relato, evidentemente, sofrera seleção, priorizando momentos de alegria contra muito poucos que a marcaram negativamente. Há silêncios, saudades, entusiasmo, mas, um ponto de destaque é um misto de ingenuidade e de dinamismo que a acompanhou até os seus últimos dias, sempre pronta para suas atividades filantrópicas e um bom passeio. Desde seus tenros anos manifestou-se vaidosa, característica que cultiva, cuidando com esmero de suas roupas para cada ocasião. O espírito de família reunida estava inserido em sua vida, bem como sua religiosidade a servir-lhe de esteira à realização de seus anseios.
Ao entregar-me o caderno, com suas memórias e sua história de vida, havia acrescentado algumas folhas coladas, pois novo caderno talvez quebrasse aquele encanto de uma vida que não poderia sofrer ruptura. A medida que eu ia lendo, surpreendi-me com revelações jamais ditas, como o relato de uma infância triste por não ter pai para esperar à tardinha, no portão. Emocionei-me, muitas vezes, revivi pedaços de minha vida, visualizei pessoas muito caras, mas orgulho-me pelo modo como ela descreve situações e pela lucidez de sua memória.
Percorrer a leitura do caderno, enxertar algum trecho histórico, organizar as fotos e diagramar capítulos, com a indispensável colaboração e arte gráfica de meu sobrinho Marcelo – seu primeiro neto – foi para mim prazeroso e sinto-me incluída, com muito carinho nessa vida narrada de uma grande mulher, minha mãe, que envelheceu, ou melhor, passou os dias rejuvenescendo ainda plena de sonhos.
Referência Bibliográfica:
FALCÃO, Luiza Mello. Minhas memórias, minha história. [s.n.t.]. Edição da autora.