Immigration and crime, former and present times
Bruno Gabriel Witzel de Souza – economista, pesquisador. Correspondente do IHGG Campinas em Gottingen, Alemanha.
Pelo capitão Jorge Pott, activo delegado de polícia, foi preso hontem á [SIC] noite Conrado Witzel Pinto, por ter penetrado violentamente na casa da preta, tysica, Felicia Maria da Conceição, estuprando a pobre mulher. Aos gritos desta, acudiram os visinhos e a polícia, sendo encontrado Witzel armado de enorme faca, em attitude ameacadora. (Jornal O Alpha, Rio Claro, 08/12/1904).
Introdução
O passar de olhos sobre árvores genealógicas e o ouvir de histórias familiares sobre a imigração histórica no Brasil despertam – ou deveriam despertar – um sentimento de estranheza sobre a maneira como vemos o mundo atual. A percepção social sobre um mesmo fenômeno – a imigração – é permeada por um paradoxo. De um lado, ao que toca a nós próprios e a nossas famílias, é frequente ouvirmos e repetirmos o mito do bravo antepassado trabalhador. Sobretudo em São Paulo, temos quase sempre em vista o romantizado europeu ou asiático que regou cafezais a suor e moldou a terra roxa à sua imagem e semelhança. É este o nosso mito verde-amarelo do self-made man. De outro lado, no que toca aos outros, é frequente ouvirmos e repetirmos percepções negativas sobre as ondas migratórias da atualidade. Nesta última linha, sentimentos de estranhamento cultural frequentemente dão margem à xenofobia e a um racismo latente quando o tema é migração internacional hoje em dia, principalmente para a Europa Ocidental e para os EUA, mas também para o Brasil.
Um argumento recorrente, supostamente em prol desta última visão negativa, é a de que existe uma associação explícita, mesmo causal, entre imigração e violência. Notícias sobre práticas ilegais cometidas por imigrantes são como um rastilho de pólvora em direção ao paiol dos descontentamos gerais das sociedades que recebem imigrantes. Acoplados a conflitos regionais, ao tráfico internacional de drogas, de pessoas e de armas, assim como ao fenômeno mais recente do terrorismo religioso, os casos de criminalidade entre imigrantes tornam fácil dar um rosto preconcebido ao crime. Infelizmente, cada vez menos pessoas parecem reconhecer quão simplório e errado é este pré-julgamento.
Este artigo questiona estas duas visões incoerentes que são frequentemente apresentadas sobre o fenômeno da imigração e sua relação com o tema da violência.
Há duas soluções lógicas para o paradoxo apresentado acima: ou a criminalidade entre imigrantes efetivamente aumentou ao longo do tempo – o que estaria associado, tudo o mais constante, a uma piora das qualidades morais das ondas imigratórias –, ou manteve-se relativamente constante. A primeira opção explicaria haver tanta gente honesta nas raízes genealógicas brotadas por estas verdejantes campinas brasileiras. A segunda requereria reavaliarmos o nosso entendimento sobre a moralidade do imigrante; para sua sustentação, é necessário ou que haja piores imigrantes em nosso próprio passado, ou melhores imigrantes hoje, ou ambos.
Para além desta provocação inicial, este artigo defende que a segunda explicação tem fundamentos teóricos e embasamentos históricos muitíssimo superiores à primeira. O artigo mostra que a criminalidade associada à imigração não é um fenômeno recente. Para tanto, dados sobre criminalidade entre estrangeiros em São Paulo na primeira metade da década de 1910 são comparados com taxas de criminalidade entre estrangeiros na Alemanha em 2017.
A conclusão é de que a perpetração de atividades criminosas por estrangeiros como proporção dos crimes totais cometidos em certa região não piorou substancialmente ao longo do tempo – ao menos não para a comparação realizada neste estudo.
Tal conclusão soa um importante alarme contra o nosso mito de origem apresentado acima.
Isso não significa, porém, que a maioria dos imigrantes fosse ou seja composta por criminosos. É anedótico recordarmos a citação que encabeça este artigo, afinal um Sr. Witzel Pinto – descendente de alemães – foi preso por um Sr. Pott – outro decendente de alemães – acusado de um crime bárbaro na Rio Claro dos 1900.
Este artigo tem duas motivações ao discutir o tema da relação entre imigração e criminalidade. A primeira é provocar uma reflexão de caráter histórico e genealógico. É questionar o modo como nos vemos hoje a partir de nosso passado. Portanto, é objetivo deste artigo provocar uma discussão sobre um mito de origem ainda mal resolvido no Brasil. Embora as contribuições das ondas imigratórias para o país sejam evidentes e demonstradas com métodos científicos cada vez melhores, creio termos chegado a um momento necessário de reflexão sobre nossas origens. O objetivo não é detratar as ondas imigratórias e os muitos benefícios que trouxeram às sociedades receptoras. Muito pelo contrário, a meta é apenas refletir melhor sobre nossos antepassados e o passado que eles(as) moldaram e pelo qual foram moldados.
A segunda motivação é discutir um elemento central para as políticas internacionais de migração hoje em dia. A experiência histórica brasileira – e a paulista, mais particularmente – podem fornecer sugestões sobre o que funcionou e sobre o que falhou no processo de integração dos imigrantes, com consequências diretas sobre as taxas de criminalidade.
Esta segunda motivação faz-nos enveredar pelo espinhoso caminho das implicações políticas do tema imigração-criminalidade. Diversos posicionamentos extremistas têm-se utilizado da associação entre criminalidade e imigração para ganhar espaço político. Donald Trump foi um representante arquetípico deste posicionamento ao odiosamente propagar, durante a campanha de 2015, que imigrantes mexicanos estariam levando aos EUA traficantes, criminosos e estupradores e que alguns [imigrantes], eu assumo, são boas pessoas (The Washington Post – Analysis – 16/06/2017). Semelhantemente, o partido da extrema-direira populista alemã, o Alternativa para a Alemanha (tradução livre para Alternative für Deutschland), ganhou espaço a partir da crise dos refugiados de 2015. Com um discurso pavorosamente anti-humanitário e contrário aos fundamentos legais da República Federal da Alemanha e da União Europeia – para não mencionar os mais básicos preceitos civilizacionais –, alguns membros de sua liderança chegaram a defender o ataque armado, se necessário, contra refugiados que trespassassem ilegalmente as fronteiras do país (Zeit Online, 30/01/2016)[1]. Também na Alemanha, posições anti-imigratórias radicalizaram-se depois de ataques sexuais perpetrados por estrangeiros na estação ferroviária de Colônia, durante as comemorações do ano novo de 2016; a instrumentalização do crime para fins políticos tem apenas escalado desde então. Finalmente, também nos batem às portas os abusos políticos sobre o tema imigração-criminalidade. Os ataques de brasileiros a refugiados venezuelanos em Pacaraima em 2018 envergonharam toda a nação. O suposto motivo para o ato teria sido um roubo e um espancamento praticados por venezuelanos contra um comerciante brasileiro naquele município (El País, 27/08/2018)[2].
Apesar de diferirem em contexto, todos esses casos – e outros semelhantes ao redor do mundo – comungam de uma mesma estrutura. Em primeiro lugar, ondas imigratórias criam um sentimento de estranhamento, usualmente de natureza cultural. Posteriomente, práticas criminosas cometidas por alguns imigrantes tipificam um bode espiatório fácil de ser identificado. Cria-se, com isso, um discurso simplório, mas eficaz: o mito do imigrante inimigo. No calor das paixões que a correlação encontrada entre criminalidade e imigração cria, são esquecidos três fatores importantísssimos que a nulificam. Em primeiro lugar, criminosos não são representativos da população imigrante. Se o fossem, países de imigração em massa ter-se-iam desintegrado socialmente poucos anos após a entrada de estrangeiros; nesse sentido, o que teria sido de São Paulo nos idos de 1920, quando mais de 20% de sua população era de estrangeiros – sem contar os descendentes nascidos no país? Em segundo lugar, esquece-se que, na maioria dos casos, a origem do crime entre imigrantes está na falha da política de Estado para sua efetiva integração. Se o crime entre nacionais é explicado por fatores econômicos e sociais, por que haveria de ser diferente com os estrangeiros? Finalmente, os arroubos xenófobos e até mesmo racistas não são representativos da população do país que recebe imigrantes; no entanto, seu tom, teor e capacidade de mobilizar sentimentos de medo frente ao estranho tornam a associação entre criminalidade e imigração um barril de pólvora.
A análise de uma sociedade de imigração, como o estado de São Paulo até a década de 1920, permite-nos observar que esses fenômenos não são uma novidade em si. Consideradas as diferenças de contexto e respeitados os instrumentos políticos disponíveis em períodos históricos diversos, este artigo visa mostrar que a criminalidade prevalente entre estrangeiros hoje é comparativemente semelhante às taxas observadas em regiões de imigração no passado.
Finalmente, antes de passar à análise propriamente, eu gostaria de explicitar algo óbvio: refutar a tese de que houve uma piora na proporção de estrangeiros engajados em atividades criminosas não é defender o crime. Da mesma maneira que devem ser assegurados todos os direitos às minorias étnico-linguísticas vivendo em qualquer país, também os estrangeiros devem estar sob os deveres que lhes impingem a lei. Portanto, que não se entenda este artigo como uma defesa da criminalidade entre imigrantes, o que ele explicitamente não é –, mas como uma demonstração de que não há razão alguma para crermos em mitos políticos recentemente reanimados que colocam na figura do outro as causas de nossas infelicidades.
Criminalidade entre estrangeiros: São Paulo (1911-1915) e Alemanha (2017)
O objetivo é fornecer estatísticas básicas sobre a relação entre imigração e criminalidade, no passado e atualmente. Naturalmente, um estudo causal das relações entre esses dois fenômenos requereria análises e dados substantivamente mais aprofundados do que os ora apresentados. No entanto, essas figuras estatísticas são úteis para entendermos melhor a relação potencial entre imigração e criminalidade, assim como para respondermos – mesmo que preliminarmente – à questão se as taxas de criminalidade tenderam a aumentar ao longo do tempo.
A escolha de São Paulo e da Alemanha como unidades de análise se deu por duas razões. A primeira, de caráter substancial, é pela relevância que a imigração tem para essas duas regiões. Até 1920, o estado de São Paulo se consolidara como uma das regiões mais importantes de destino para imigrantes durante a chamada Era das Migrações em Massa (Levy, 1974; Sánchez-Alonso, 2018). Assim, torna-se interessante uma análise comparativa com a Alemanha, a qual, como a maioria dos outros países da Europa Ocidental, passou da condição de país de emigração no século XIX para uma das principais regiões de imigração mundial desde a segunda metade do século XX (Docquier e Rapoport, 2012). Naquele país, o crescimento da população nascida no exterior apresentou uma tendência ascendente na década de 1990. Com isso, o estoque de estrangeiros aumentou de 5.9 milhões de pessoas em 1990 para 9 milhões em 2000; em 2017, a população estrangeira vivendo na Alemanha alcançou o pico de 12.2 milhões de pessoas, ou 14.8% de sua população[3].
A segunda, de caráter metodológico, se deu pelo fato de tanto a Alemanha quanto São Paulo manterem estatísticas criminais detalhadas. Para o caso alemão, os dados foram obtidos do Relatório Policial de Estatística Criminal (2017)[4]. Publicado pelo Ministério Federal do Interior, este relatório anual traz dados sobre atividades criminais registradas. Este artigo utilizou as Informações da Seção 4.1.3. – Efeitos do número de imigrantes na criminalidade da Alemanha[5]. Para São Paulo, os dados foram coletados dos Anuários Estatísticos de São Paulo. Os anos de 1912 a 1915 foram selecionados por conta da seção Polícia e Justiça, que traz, dentre outros, dados da cadeia pública e da penitenciária do município da capital paulista. Naturalmente, uma comparação dessas duas bases de dados precisa ser feita com cautela, afinal as unidades de análise são muito diferentes, como se verá abaixo. No entanto, visualizadas em conjunto, estas figuras estatísticas dão-nos algumas intuições interessantes a respeito da relação entre criminalidade e imigração.
Imigração e criminalidade: hoje e ontem
Excluindo-se os crimes relacionados à transposição ilegal de fronteiras, o número total de casos envolvendo suspeitos de atividades criminosas (Tatverdächtige) na Alemanha durante o ano de 2017 foi de 1,974,805. Destes, 599,357 casos (30.4%) foram cometidos por não-alemães[6]. Deste total, 167,268 casos (8.5%) foram cometidos por pessoas registradas como imigrantes.
Os dados demonstram, portanto, a efetiva existência de um problema social com o temas da criminalidade entre imigrantes. Afinal, um em cada três suspeitos de crimes registrados naquele país foram cometidos por não-nacionais. Essas informações revelam que existe hoje não apenas escopo para ganhos sociais no combate à criminalidade, mas também uma necessidade de enfentar o problema especialmente entre imigrantes.
No entanto, estes dados da Alemanha em 2017 precisam ser colocados em perspectiva. Em particular, este artigo questiona se a relação entre imigração e criminalidade é uma novidade. Frente aos dados históricos de que dispomos para São Paulo durante a Era das Migrações em Massa, a resposta que podemos dar a esse questionamento é um assertivo não.
Dos 260 novos prisioneiros entrados para a Penitenciária de São Paulo entre 1912 e 1915, 146 (56.15%) eram estrangeiros. Para o período de 1912 a 1915, inexiste uma tendência clara, mas os estrangeiros sempre perfizeram mais da metade do número total de novos presos e cerca de 1/6 da população carcerária total, conforme o demonstra a Tabela 1.
Estes dados sugerem que o problema da criminalidade entre imigrantes não é uma novidade. Pelo contrário, a situação na capital paulista no início do século XX era proporcionalmente pior do que a vigente na Alemanha hoje.
Na sequência, a Tabela 2 compara o número total de prisões de estrangeiros efetuadas na capital paulista entre 1912 e 1914 com o número de suspeitos por atividade criminal na Alemanha em 2017. Os dados estão desagregados por nacionalidade e as nacionalidades, em ambos os casos, estão ordenadas decrescentemente.
Os números absolutos revelam que o problema da criminalidade está longe de ser negligenciável em ambos os casos. Contudo, há duas limitações óbvias de escala nessa comparação de números absolutos. Em primeiro lugar, os dados históricos de São Paulo referem-se a apenas uma municipalidade, enquanto que os dados alemães atuais são de cobertura nacional. Em segundo lugar, o número absoluto de imigrantes na Alemanha em 2017 é muito maior do que a entrada de imigrantes em São Paulo – ou mesmo o estoque de estrangeiros naquele período.
É nesse sentido que os dados proporcionais, também apresentados na tabela, fornecem uma figura comparativa mais útil. Nesse caso, podemos concluir mais uma vez que a incidência de criminalidade entre estrangeiros não é nenhum fenômeno novo. A taxa de prisões de estrangeiros na cadeia pública de São Paulo no início da década de 1910 foi proporcionalmente maior que aquela prevalente entre não-alemães hoje em dia na Alemanha.
Continua na próxima edição
Notas
[1] https://www.zeit.de/politik/deutschland/2016-01/frauke-petry-afd-grenzschutz-auf-fluechtlinge-schiessen, acessado em 26/10/2019.
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/17/politica/1534459908_846691.html, acessado em 26/10/2019.
[3] Dados obtidos do Migration Data Portal: https://migrationdataportal.org/?i=stock_abs_&t=2017, acessado em 26/10/2019.
[4] Tradução livre para Bericht zur Polizeilichen Kriminalstatistik 2017, disponível em:
https://www.bka.de/DE/AktuelleInformationen/StatistikenLagebilder/PolizeilicheKriminalstatistik/pks_node.html, acessado em 26/10/2019.
[5] Tradução livre para Auswirkungen der Anzahl der Zuwanderer auf die Kriminalität in Deutschland.
[6] A definição de suspeito não-alemão refere-se a pessoas com nacionalidade estrangeira não alemã, a apátridas, ou a pessoas sem informação de nacionalidade. Pessoas com dupla nacionalidade (sendo uma delas alemã) são contadas como alemãs nas referidas estatísticas. Para as definições oficiais, vide: Bericht zur Polizeilichen Kriminalstatistik (2017), especialmente p. 102.