The freedom conquest: freed people in 19th century second half (Campinas, SP, Brazil).
Regina Célia Lima Xavier – professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Correspondente do IHGG Campinas em Porto Alegre.
A historiografia sobre o processo de libertação de escravos no Brasil é bastante vasta. Apesar disto, no entanto, ainda há poucos estudos que tratam das experiências de vida das pessoas que se libertaram, do papel que desempenharam em suas alforrias e no processo, mais amplo, da extinção da escravidão. Pouco se conhece das formas de que lançaram mão para organizar suas vidas após a liberdade e as maneiras com que se relacionavam com seus ex-senhores, com a comunidade negra e com a sociedade como um todo.
Esta falta relativa de pesquisa sobre os libertos e suas experiências talvez se explique pela tendência da bibliografia de preocupar-se com os aspectos mais gerais da abolição e privilegiar o estudo das grandes estruturas econômicas e sociais deste período. No entanto, acredito que se possa efetuar outras análises históricas deste processo, até mesmo porque terminou-se por construir uma imagem quase cristalizada dele, na qual o negro aparece como uma vítima da escravidão. Ela teria limitado suas formas de agir e sentir, tornando-o um ser sem plenas condições psicossociais e econômicas. Aniquilado pela experiência anterior da escravidão, o liberto só poderia ser alguém desajustado, incapaz de se integrar à sociedade de classes, fadado à marginalidade. Vítimas, enfim, de sua própria anomia, da força e da violência das estruturas sociais. Como esperar então que tivessem consciência de seus direitos e que uma vez libertos se transformassem em cidadãos plenos?
O estudo pretende dialogar com algumas destas imagens, que são bastante recorrentes na historiografia, apesar de terem sido citadas aqui brevemente. Para isto formulei outras perguntas, que incidiram sobre o particular, assim voltei-me para outras fontes documentais. No meu livro, o leitor poderá conhecer alguns libertos que viveram experiências bem diferentes das que costumamos ler na maior parte da historiografia. Poderá vê-los às portas da Justiça, reivindicando seus direitos sociais, participando politicamente do processo de abolição, lutando para reconstruir suas vidas, atribuindo significados específicos à liberdade, reelaborando suas relações com ex-senhores, tecendo redes de solidariedade dentro e fora de sua comunidade. Ao compartilharem múltiplas experiências, estas pessoas negras não formavam categoria homogênea. Se enfatizo o fato de serem negras é muitas vezes para indicar uma identidade que está se formando e que não se restringe naturalmente à cor da pele, mas procura dar conta de trajetórias similares em alguns aspectos, como a experiência da escravidão, por um lado, e/ou uma origem africana, por outro. Também o significado destas experiências não tendem a ser uniformes, mas explicitam uma pluralidade constituída por pessoas que encontraram arranjos tão diversos como complexos para enfrentarem as mudanças que atravessam suas próprias vidas e de todos os homens e mulheres nas décadas finais do século XIX. Acompanhar alguns libertos em particular e tentar uma aproximação de suas vidas cotidianas me permitiu apreender conflitos, solidariedades e visões de mundo diferentes.
Como é possível conhecer as experiências de vida destes libertos? Para tentar responder a esta questão, empreendi dois tipos de análise das fontes documentais: uma extensiva e outra pontual. Primeiro fiz uma leitura de todas as ações de liberdade durante o período de 1870 a 1888 e dos testamentos, de 1870 à 1900 que estão conservados nos Arquivos Históricos do Centro de Memória – Unicamp. Através da análise destas duas séries documentais, procurei identificar padrões de comportamento de senhores e libertandos em relação à liberdade e do entendimento político que eles tinham da questão. Mas o tratamento extensivo desta documentação não foi suficiente para iluminar vários aspectos da composição e das experiências deste grupo social, tão importantes para compreender o destino que tiveram após a liberdade.
Procurei então aprofundar a análise buscando recuperar histórias de vida de libertos que tivessem morado em Campinas nas décadas finais do século XIX. Tal ajuste no foco de análise levou-me a uma ampliação das fontes. Empreendi então um trabalho mais intensivo junto à documentação civil, analisando inventários, ações de cobrança de justificações cíveis, processos de divórcio etc. Os dados aí coletados foram cruzados com informações colhidas em documentos da municipalidade, como livros de impostos sobre o comércio e as profissões, sobre a moradia; documentos administrativos da Câmara e fontes de outra natureza como jornais, livros de memorialistas etc.
A pesquisa foi orientada no sentido de seguir os passos de algumas pessoas em especial, de mulheres e homens negros livres ou libertos, na expectativa de recuperar suas experiências de vida. Através delas pude caminhar por dentro da comunidade negra, entender suas divisões internas e suas formas particulares de se relacionar com os outros grupos sociais que integravam a sociedade campineira.
Tentar se aproximar destes homens e mulheres libertos não significa idealizar suas ações. Procuro percebê-los em uma perspectiva mais ampla, compreendê-los no momento em que tecem suas relações sociais, em que se dá o embate de percepções de mundo diferentes e no qual se atribui significados diversos às mudanças sociais. Este tipo de análise, que leva em consideração as trajetórias individuais, não busca acentuar a ação dos escravos e/ou libertos como agentes únicos ou preponderantes das mudanças e do devir histórico, como a acusam seguidamente. Não se trata de efetuar uma inversão de polos, abandonando-se o estudo das estruturas para aprisionar-se nas conjunturas ou no específico. As histórias de vida costumam ser tão ricas que dificilmente poderiam ser reduzidas a interpretações deste tipo. E preciso perceber que as práticas individuais frequentemente revelam aspectos importantes da trama social que não poderiam ser analisados com lentes de maior alcance. É precisamente por trazerem à tona novos elementos que podem vir a contribuir, de maneira as vezes surpreendentes, com a produção do conhecimento histórico.
Longe de serem vítimas passivas de forças impessoais, encontramos libertos que ao mesmo tempo que construíram e eram construídos pela história. Neste sentido, não há oposição entre estruturas e conjunturas. O estudo do particular não é um simples relato de casos episódicos, no qual se abriria mão da análise histórica em função da mera descrição. Como o leitor poderá perceber no livro, a experiência destes homens e mulheres libertos, tem muito a dizer a respeito do processo da abolição, da urbanização, da consolidação do trabalho livre, etc. Mas, para percebê-los como sujeitos que participam do processo histórico, é preciso concebê-los em outros lugares e não apenas nas intenções e debates parlamentares, no movimento abolicionista, nos projetos das elites etc. Isso não quer dizer, no entanto, que estes aspectos devam ser negligenciados. Ao contrário, deve-se estar atento também para perceber como e em que medida estas intenções se transformaram em práticas sociais. É a partir de aspectos particulares que se delineia o processo histórico mais geral, que não aparece de forma absoluta, totalizante.
No livro o leitor conhecerá libertos bem diferentes daquela imagem que os descrevem como indivíduos que, saídos da escravidão, não tinham aptidão para o trabalho livre, que eram incapazes de poupar ou acumular riquezas, ávidos por esquecer tudo o que os lembrasse a escravidão. Poderá vê-los, ao contrário, barganhando, tanto quanto possível, ao fazerem os contratos de liberdade e melhores condições de trabalho; estarão também acumulando pecúlio, comprando imóveis, protegendo-se mutuamente, tentando melhorar suas condições de sobrevivência. Escravidão tampouco parece ter, para estas pessoas, um sentido unívoco, sinônimo apenas de opressão; parece adquirir muitas outras concepções, importantes inclusive na formação de uma identidade comum.
De todas as imagens veiculadas, inclusive em livros didáticos, uma das mais recorrentes é aquela que afirma que a liberdade não trouxe nenhuma mudança para a vida destas pessoas, pois elas teriam sido abandonadas pelas políticas públicas, alijadas de seu trabalho, rechaçadas pela sociedade. O irônico desta assertiva, que tem o mérito de denunciar a marginalização dos negros, é que ela enfatiza apenas este aspecto, tornando-o absoluto e tendendo a negar a luta empreendida por tantas pessoas para conquistar suas liberdades e para construírem suas vidas depois da escravidão. Desconsiderar a conquista da liberdade, é desconhecer a história específica desta comunidade e a importância de sua atuação na mudança social pela qual a sociedade passou neste período.
É por isto que precisamos conhecer detalhadamente a vida de homens e mulheres libertos como Ludgero, Catarino, Margarida, Bento, Delfina, Ignês etc. Eles tem muito a nos contar sobre a liberdade e a história de Campinas nas décadas finais do século XIX.
Referência bibliográfica:
XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: CMU Publicações (v. 6 da Coleção Campiniana), 1996, 166p.