Saindo das sombras: homens livres no declínio do escravismo

Coming out the shadows: free men in the decline of slave labor (Campinas, SP, Brazil).

Denise A. Soares de Moura – professora da UNESP. Correspondente do IHGG Campinas em Franca, SP.

Seguir a trajetória dos pobres livres na sociedade cafeeira paulista e, especialmente, campineira, entre os anos 1850-1888, não é tarefa fácil e enseja algumas questões. Quem foram os indivíduos pobres e livres em um contexto predominantemente escravista, mas em desagregação, marcado pela acentuação dos obstáculos em relação à propriedade da terra, principalmente depois de 1850? Como se deu o movimento de homens e mulheres em busca de trabalho em regiões de economias emergentes? Como ocorreu, em alguns casos, a conquista da liberdade por negros escravizados? Como os senhores de escravos, de lavouras e o governo delimitaram as relações de trabalho com homens livres, especialmente a partir da extinção do tráfico e do crescimento das cidades?

Pode-se dizer que, nesse período, muitos homens e mulheres da sociedade campineira, apesar de não possuírem terras e amplos recursos econômicos, detinham a propriedade de um ou mais escravos, com base na exploração do seu trabalho, ou trabalhando lado a lado com eles, reuniam os recursos necessários para a sobrevivência.

Essa pobreza relativa dos pequenos proprietários rurais paulistas possuidores de escravos explicitava-se na falta de condições financeiras para arcar com as despesas judiciais com as quais seus cativos se envolviam ou de que eram vítimas.

Mesmo no universo feminino, essa condição de pobre livre proprietário de escravo se expressava. Moças pobres brancas, sem dotes, vivendo concubinatos dissimulados; mulheres sós e chefes de família sustentavam filhos e agregados alugando ou empregando seus escravos e escravas, principalmente no pequeno comércio local e ambulante. Geralmente tornavam-se proprietárias desses cativos por meio de favores, doações e pequenos quinhões de herança.

Em meio às nuanças dessa paisagem social da escravidão, não é possível dizer que a pobreza se definia, em sua totalidade, pela ausência da propriedade de escravos. O mesmo acontece com relação à terra. Nos processos de Divisão e Demarcação de Terras, Força Nova, Inventários, Testamentos, ou seja, na documentação judicial movida por questões diversas, percebe-se o retalhamento da grande propriedade entre as famílias, geralmente numerosas, que com o tempo foram perdendo poder econômico e prestígio na região, mas mantinham um quinhão de terra de herança, que lhes garantia o sustento, donos de escravos ou não.

Viviam no que denominavam sítio comum e frequentemente estavam às voltas com a justiça por desentendimentos na definição de limites, criações que invadiam as roças de uns e outros e incêndios provocados por aceiros mal feitos.

Em meio à essas contendas, a pobreza desses indivíduos revelava-se na impossibilidade de assumirem as custas processuais relativas à delimitação judicial das posses – exigência legal a partir de 1850 – ou outras questões, o que leva a crer que a condição de pobreza, em uma sociedade predominantemente rural e escravista não pode ser definida do ponto de vista da terra ou do escravo, porque a propriedade destes não dependia da camada social ou da posse de cabedais. Ser pobre e livre nesse período era fazer parte de uma camada bastante fluida e em contínua diversificação ao longo das diferentes conjunturas do declínio do escravismo, incluindo indivíduos com os mais diversos níveis de posses.

Brancos, negros e mestiços pobres e livres; libertos; imigrantes europeus proprietários de roças; trabalhadores livres e sazonais nas grandes propriedades de café; trabalhadores livres detentores de ofícios e ferramentas, artesãos; homens livres que possuíam algumas mulas e as empregavam nos pequenos transportes; negociantes e aqueles que viviam de suas agências. Todos compuseram fragmentos de um universo social mais amplo, em crescimento e de difícil definição.

Diante dessa fluidez social, pode-se dizer que eles tinham em comum o fato de não ocuparem posições políticas de prestígio e de experimentarem situações de insuficiência de recursos. Logo, não existe uma definição singular do ser pobre na sociedade paulista da época. Prenuncia-se apenas um corte desse segmento tão diversificado e matizado nas suas relações, recursos e maneiras de organizar a vida. Desta forma, transita-se por um universo social no qual negros, brancos e mestiços pobres e livres viviam de suas pequenas roças, agregados a algum proprietário – remediado ou mais abastado – ajustavam-se às colônias, sítios ou propriedades maiores, mas, também, ajustavam trabalhadores para ajudá-los, alugavam escravos e, nessas práticas, teciam uma trama cotidiana perpassada por inúmeros arranjos urdidos por relações de parentesco, solidariedade vicinal e por toda uma ordem moral de acertos e tratos que criavam formas diversas de remuneração, como a permissão para ocupar parte da propriedade, heranças por receber ou o fortalecimento dos afetos e laços sociais.

Essa gente tão dessemelhante, e que vivenciou o declínio do escravismo, esteve sempre presente nas páginas da historiografia, principalmente sob a denominação trabalhador nacional. Entretanto, apesar das problemáticas pertinentes e originais, apontadas por estes estudos, representam um período no qual prevaleceu a preocupação em se entender como essa população de trabalhadores nacionais livres foi aproveitada por senhores de lavouras, nesse período predominantemente escravista.

No cenário da constituição de um mercado de trabalho livre na província paulista, as pesquisas em torno desse segmento dirigiram-se à questão de como se deu o seu aproveitamento, em vez de pontuar possíveis condutas ou maneiras de vivenciar o período. Em vista disso, o argumento da ausência de uma população nacional livre o suficiente no país, e capaz de suprir as lacunas que o escravo deixava ou mesmo de substituí-lo completamente no trabalho da fazendas de café foi acentuadamente repetido.

É difícil quantificar a população nacional livre nesse período, mas dados esparsos, em documentação variada, sugerem que ela se ampliava, principalmente nas terras paulistas. Estatísticas, os jornais de época, os livros de matrícula da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, o censo de 1872 e os inúmeros ofícios de autoridades diversas sugerem antes um alargamento do quadro populacional, que uma insuficiência.

Sabe-se que o movimento das pessoas em direção as outras áreas de economia ascendente foi intenso nesse período. O nível de desenvolvimento das forças capitalistas de produção no século XIX gerou a atração de migrantes. A população cresceu vertiginosamente ao longo dos séculos XVIII e XIX, as terras foram apropriadas pelo capital e a pauperização crescente obrigou-a a contínuos deslocamentos.

Logo, as andanças entre as províncias não devem ser desprezadas e, se as fontes quantitativas parecem inexistentes, a documentação oficial e de natureza qualitativa torna possível rastrear esta problemática. O movimento de mineiros e cearenses em direção às paragens paulistas e que desembocaram em ajustes de trabalho nas fazendas de café é um dado que merece ser estudado em profundidade.

O preconceito dos senhores de café e lavouras em relação à população mestiça e negra nacional, atribuindo-lhe um caráter indolente e, portanto, incapaz de adaptação à nova rotina de tempo e trabalho que se introduzia nas grandes propriedades, também foi um argumento que levou muitos estudos a se deterem nas representações das fontes em relação a essa população, justificando o desinteresse no seu aproveitamento como mão de obra livre.

Relatórios dos presidentes de província, discursos de grandes proprietários nos Congressos Agrícolas de 1878, jornais, relatos dos observadores de época sobre essa população e a crise de trabalhadores na província contêm estereótipos que desqualificam esses homens e mulheres, bem como seus costumes e maneiras de viver, mas também revelam uma ansiedade marcada pela necessidade de entender esse mundo que se redefinia em meio às transformações da época. Portanto, a representação do discurso não traz somente preconceitos, mas um esforço em entender certas condutas em meio a uma sociedade que reordenava seus valores e práticas de trabalho. Quando esse discurso se desdobrava na vida cotidiana, evidenciava essa duplicidade, pois a relação tecida entre senhores remediados ou mais abastados e a população nacional livre e pobre fez-se num emaranhado de tensões e ajustamentos.

A visão desqualificadora da elite gerava-se no tenso convívio entre a moderna concepção de tempo, que se erigia na sociedade, e um tempo assistemático compartilhado pelos homens livres pobres, forros e escravos. O tempo vivido por esses segmentos possuía uma coerência diferente do tempo capitalista, linear, abstrato e contabilizável, pois permeava-se por pausas e retomadas do trabalho, que nem sempre aconteciam exclusivamente no espaço da roça ou da propriedade agrícola.

Esse tempo cíclico manifestava-se no trabalho da roça de alimentos – para aqueles que as possuíam – regido pela lógica irregular da natureza, nas práticas dos negócios, que estendiam-se do preparo do produto dentro das suas especificidades – até o ato de negociá-lo, envolvendo bate-papos, encontros e andanças. Comprometer-se com tarefas distintas também fazia parte desse tempo irregular, pois, em um universo cultural marcado pela sociabilidade necessária, traduzida nos laços de parentesco, compadrio e vizinhança, muitas vezes não havia lugar para a recusa de uma tarefa proposta.

A religiosidade traduzida nas festas e dias santos, pescar, caçar, participar de uma mútua de mãos em socorro a um amigo mais apertado em suas lides, as idas à cidade nos finais de semana para trabalhar e rezar também eram práticas que introduziam uma certa irregularidade no labor cotidiano. Tratava-se de um tempo vivido descontinuamente, mas articulado ao conjunto da sociedade, pois os ajustes de trabalho urdiam temporalidades dissonantes.

Entretanto, na medida em que esses ajustes funcionaram em torno de certos limites tolerados, as tensões surgiam e, dentre outras formas, desembocavam no estigma do vadio, que pode sugerir e incitar à investigação em torno de outros fazeres, na medida em que faz parte dos referenciais de um grupo social que tentava entender e nomear a estranha diversidade com a qual lidava cotidianamente, em meio à lenta propagação de concepções de tempo e trabalho lineares.

Confrontando um documento que relaciona o crescimento dos vadios na província de São de Paulo à necessidade de criação de leis que os obrigasse a trabalhar, com os dados coligidos nos livros de matrícula da Santa Casa de Misericórdia ou nos processos judiciais diversos do mesmo período, esses vadios aparecem como carpinteiros, doceiras, lavadeiras, camaradas, sapateiros, roceiros, gente que empreitava seus serviços, que negociava formas de trabalho e remuneração com aqueles que desejavam empregá-los, que negociavam suas produções miúdas, que se divertiam e se articulavam ao conjunto da sociedade de maneira muito própria.

Em vista disso, a abordagem que se segue no meu livro pontuou fazeres e, longe de uma população que foi aproveitada, observou uma maneira independente e criativa de relacionamento com as ocupações que se multiplicavam nas propriedades rurais de diferentes dimensões e na cidade. Em meio aos arranjos que davam forma a essas relações de trabalho livre, tempos diferentemente ritmados se articulavam. Os ajustes de empreitada, por exemplo, comumente acertados entre proprietários e trabalhadores livres aliançavam o trabalho da propriedade com o da roça ou dos negócios. Contratos de parceria, escritos ou não, contratos pelo empenho da palavra, ou como conviesse, permitem vislumbrar uma crise do escravismo vivenciada diversamente no cotidiano e diferentemente daquela que a fala dominante enfatiza.

Para os homens livres e pobres, viver essa trama social de crises e redefinições implicou uma conduta que permitia reelaborar continuamente atos e escolhas no sentido de não se manter à parte, mas de inserir-se na globalidade. Era preciso sobreviver e, diante da problemática de um recrutamento forçado para os serviços da Guarda Nacional, preferiam-se ajustes que preservassem a mobilidade, favorecendo, assim, condutas descontínuas. A intermitência no prestar serviços não significava vadiagem, mas uma maneira de lidar com as vicissitudes do recrutamento ou de articular interesses próprios com outras tarefas.

Mas esses trabalhadores, migrantes ou da própria província, recriavam seu viver também nos momentos de lazer e nas suas relações sociais. Desde os idos de 1850 foi marcante a preocupação das autoridades locais em regrar os encontros entre cativos e homens livres, principalmente nas vendas. Disseminou-se uma preocupação em torno das cousas que conversavam, pois acreditava-se que dessas conversas brotavam rancores e possíveis rebeliões e levantes. Cativos e pobres livres viveram muito juntos, em convívio ora conflituoso, ora de entendimentos, desconfiadamente observados por aqueles que receavam pelos desdobramentos tensos dessa relação.

Se princípios liberais-burgueses compartilhados pelos senhores de lavouras e autoridades locais passaram a redefinir o lugar do trabalho e ditar uma norma de comportamento que possibilitasse a internalização de uma determinada disciplina de viver e trabalhar, no dia-a-dia da relação com os homens pobres e livres esses princípios se reordenavam, colocando-os lado a lado nos momentos lúdicos e nos acertos e tratos de trabalho.

Desnudando o cotidiano do declínio do escravismo através da trajetória percorrida pelo homem livre e pobre procurou-se retomar outros aspectos desse período que passam pela história social do trabalho e remetem as relações sociais a um contexto de transformações mais dinâmico e fluido, que aconteceu longe das discussões parlamentares e dos gabinetes das autoridades, aspectos que imprimiram outras faces a esse movimento tortuoso e lento de alterações econômicas e sociais, bem como às formas de os homens entenderem as relações de trabalho.

Referência bibliográfica:

MOURA, Denise A. Soares de. Saindo das Sombras: Homens Livres no Declínio do Escravismo. Campinas: CMU Publicações, 1998. 312p. (v. 17 da Coleção Campiniana).

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