O caso Elesbão: a (in) justiça a serviço da elite

The Elesbao case: (in) justice serving the elite.

Valdir Oliveira – escritor, pesquisador. Sócio Honorário do IHGG Campinas.

Dizem os escravos Manoel Monjolo, Caetano Moçambique e Joaquim Benguela. Que estavam quebrando milho na roça, quando chegou a escrava Esperança, criolla, gritando que haviam matado o Senhor; correram ao local e encontraram o corpo dentro do córrego e barulho de gente correndo pelo mato; foi avisada a Sinhá, na casa grande, do acontecido.

Assim inicia a Devassa Crime datada de 20 de maio de 1831, autuada no Fórum de Jundiaí – época em que Campinas fazia parte da Comarca daquela cidade – e cuja cópia oficial está arquivada no Centro de Memória – Unicamp. (TJC, AHCMU). Trata-se do exame de corpo de delito do assassinato do capitão da Guarda Nacional do Império, Luiz José de Oliveira, em sua propriedade, o Engenho do Romão, na estrada da Vila de Jundiaí para Itú.

Os escravizados do engenho: Jacó, Esperança Antonio, Joaom, José Moçambique, Antonio Creolo, Caetano Mozambique, Manoel Monjolo, Joaquim Benguela, Rafael Mosambique, Roque Congo, Simplicio Rebolo, Manoel Congo, Constantino de Nasao, Antonio Rebolo, Francisco de Nasão, Catarina de Nasaom e Felizardo de Nasão, levados para Jundiaí, prestaram depoimento, considerados sem culpa e entregues ao irmão, além de Jacob, Esperança e o feitor José Creoulo, entregues ao cunhado do capitão.

Dos réus acusados no processo: Elesbão, Narciso, Luiz Congo, Vicente, Francisco Monjolo, Joaquim e Manoel Cariocano, eram do capitão; o escravizado Narciso pertencia ao sargento mor Floriano de Godoy, e Manoel Cariocano a Joaquim Pinheiro.

Elesbão e Narciso, juntamente com Luiz Congo, Vicente, Francisco Monjolo, Manoel Cariocano, Joaquim e Eva, estando escondidos em um quilombo para os lados de Belém (hoje Itatiba). Esse quilombo é Quilombo de Brotas, existente naquela cidade.

Não consta em depoimento das dezoito testemunhas que viram Elesbão e Narciso matarem o capitão, mas afirmam que ouviram gritarias, o cavalo do capitão em disparada, encontrando o corpo sem vida, no córrego.

A genitora do capitão, Maria Joaquim de Araujo, arrolou também como testemunhas de acusação, mais 35 pessoas moradoras na Vila de Jundiaí, mas não estavam no local do crime naquele dia (Devassa Crime, fls. 6/20v). Ocorreu que, dessas testemunhas, moradoras em Jundiaí, as três últimas declararam a inimizade entre o senhor Franco, vizinho do capitão, por questões de terras, tendo declarado aos escravizados: Por que não dão um tiro em seu senhor. Essa pessoa não foi ouvida pelas autoridades da época.

A meu ver, não foi providenciado o depoimento do senhor Franco pela simples questão de que, a partir do momento que os escravizados fugiram do Engenho do Romão, estava declarada sua culpabilidade, embora não houvesse nenhuma testemunha ocular, deles terem praticado esse homicídio.

A questão de venda, em 30 de junho de 1827, por Antonio Mariano da Costa, com outorga da esposa e consentimento da filha Ana Joaquina da Costa, de parte da Fazenda Dois Córregos por 4$266 réis. Depois ocorreu a venda da outra parte, da mesma fazenda por Ignácia Bueno de Camargo, em 13 de fevereiro de 1828, datadas ambas no Engenho dos Pinheiros, também pelo mesmo valor, ao tenente Luiz José de Oliveira. Era venda de uma extensão considerável de terras, com casas, tulhas, lavouras etc.

Pelas condições: inclusão de 35 testemunhas que moravam na Vila de Jundiaí; as declarações de três dessas testemunhas; a compra das terras da Fazenda Dois Córregos, se colocadas em questionamento na Justiça poderiam trazer à luz o autoritarismo, desmandos, agressões, violência e prepotência do capitão.

Luiz José de Oliveira, o capitão assassinado, era filho de Maria Joaquina de Araujo e Estanislau José de Oliveira, professor de retórica falecido em 1826 e irmão de José Estanislau de Oliveira, 1º. Barão de Araraquara, depois Visconde de Rio Claro. A família possuía duas propriedades: Dois Córregos e Pinheiros.

A elite campineira foi atingida em seu núcleo de poder. O poder financeiro da Vila de São Carlos estava desfigurado pela ousadia do ato talvez realizado por aquelas mercadorias, os escravizados. Desse momento, todas as ações se voltariam a fazer justiça a qualquer preço, não existindo intenções de um julgamento justo, com provas legais.

Pelo papa Nicolau V, em 18 de junho de 1452, pela Bula Dum Diversas, foi dada autorização ao rei Afonso V de Portugal, nesses termos:

(…) outorgamos por estes documentos presentes, com a nossa Autoridade Apostólica, permissão plena e livre para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados, condados, principados, e outros bens (…) e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua (…) nós  lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo (…). 

Também ficou estabelecido as possessões outorgadas por esse mesmo papa, em 1455, através da Bula Romanus Pontifex, definindo limites para captura, escravização e comércio dos negros africanos, conforme:

Que vai desde o cabo Bojador e do cabo Não, correndo por toda a Guiné, passando além dela e vai para a plaga meridional, declaramos pelo teor da presente que também tocou e pertenceu ao mesmo rei D. Afonso e a seus sucessores e ao infante com exclusão de quaisquer outros e que perpetuamente lhe tocam e cabem por direito, usque ad indos.

E segue:

Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho D. Afonso, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o urbe o nome gloriosissímo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer infiéis. Guinéus e negros trazidos pelo Império, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito D. Afonso plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuam aos mesmos D. Afonso e seus sucessores. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado. 

A base moral do papa Nicolau V, era a afirmação que os negros eram infiéis e precisavam serem batizados na religião católica, para alcançarem a graça de Deus, para salvar-lhes a alma, Muitas outras bulas papais confirmaram essas autorizações, embora, houve papas que combateram a escravidão dos povos, ela continuou por mais quase quatrocentos anos, rendendo lucros e comissões de 10% para Portugal e também 5% para a Ordem de Cristo, pagos através da Casa dos Escravos.

O depoimento dos escravizados Manoel Monjolo, Caetano Moçambique e Joaquim Monjolo, que estavam quebrando milho na roça, com a escravizada Esperança dizendo que haviam matado o Senhor, era de menor relevância e interesse para a elite da Vila, afinal eram escravizado(a)s e considerados MERCADORIAS.

Mercadorias não tinham direito de ter direitos. Não teria nenhum valor esse depoimento, como não teve, durante todo esse processo, até seu final trágico.

Elesbão declarou no seu depoimento que o capitão abusou sexualmente de sua amasiada de nome Francisca. Também ocorreram diversas declarações de que Narciso, Luiz Congo e Manoel Cariocano eram aqueles que praticaram o crime, inclusive pela escravizada Eva que estava no quilombo, foragida.

Foram arrolados sete escravizados, mas somente Elesbão e Narciso foram acusados pelo assassinato do capitão, sendo enviados para São Paulo em 13 de agosto de 1831 (TJC, AHCMC). Em 19 de março de 1832, fugiram da cadeia de São Paulo, sendo Narciso preso em 24 de maio desse mesmo ano, sendo processado e condenado a forca. (Este processo está arquivado no Arquivo Público do Estado de São Paulo – AHESP)

Pelo recurso, o processo de Narciso foi remetido para a Casa de Suplicação no Rio de Janeiro. Em janeiro de 1833, ratificada a sentença, em 15 de maio foi confirmada pelo governador da província, Rafael Tobias de Aguiar, sendo Narciso enforcado em 24 de maio de 1833 em São Paulo. (AHESP).

Elesbão foi preso em outubro de 1835, na mata do Engenho dos Pinheiros, por capitães do mato, sendo enviado para a Vila de Jundiaí, após para São Paulo, tendo o Juiz de Direito da capital determinado sua devolução para a Vila de São Carlos, chegando aqui em 10 de novembro de 1835, ficando preso na cela subterrânea da Cadeia da Vila, esta para os presos acusados de assassinato. Assim ele ficou à disposição do Juiz Municipal, Dr. José Mendes Ferraz.

Foi encomendada uma urna em 18 de novembro, pelo promotor público interino Antonio Joaquim de Sampaio Peixoto para escolha, de um grupo de sessenta nomes de jurados, as doze pessoas para o julgamento. (AHCMC).

Elesbão foi julgado em 26 de novembro, no prédio da Cadeia, Câmara e Tribunal do Juri, (hoje está o túmulo de Antonio Carlos Gomes), sendo culpado do assassinato do capitão, pelos artigos 16, 38, 42 e 192 do Código Criminal do Império e seus agravantes.

O Juiz de Direito, José Gaspar dos Santos Lima, condenou o réu à pena máxima, por enforcamento, tendo colocado um adendo após sua sentença:

Em tempo: Addendo a sentença acima declaro que depois do Réo sofrer a pena de morte cortar-se-ão as mãos e cabeça, esta será remetida para a Villa de Jundiahy, e ali colocada num poste e também em logar público, e aquellas serão igualmente espetadas n’esta Villa em um Poste, e também em logar público. Era ut supra.

Usara em sua sentença, um artigo das Ordenações Filipinas, do reinado dos reis Felipes de 1580 a 1640:

Ordenações Filipinas – Livro V – Título XLI: O escravo que matar seu senhor seja atenazado e lhe sejão cortadas as mãos; e moura morte natural na forca para sempre.

Os curadores nomeados para a defesa de Elesbão foram: José Francisco Duarte, outro com iniciais F. I. S., Ignácio José Justiniano Dória e o padre e advogado João Manoel de Almeida Barbosa (este era Juiz de Órfãos). Eles não foram incisivos e também não entraram com nenhum recurso contra a sentença de enforcamento e seu adendo. Não usaram as atenuantes prescritas pelo Código Criminal em seu artigo 18, e parágrafos, conforme: por condição de Elesbão ser menor de idade; por não ter avaliação do mal e intenção de praticá-lo; para evitar mal maior; em defesa própria e de seus direitos; em desafronto de injúria e desonra; por ordens ilegais, por estar aterrado de ameaças.   

Se, ocorrido recurso contra a sentença, para a Corte de Apelação em São Paulo e Casa da Suplicação no Rio de Janeiro, (Tribunais de Recursos da época), e se aceitas, a pena poderia ter sido transformada em prisão perpétua, com ou sem trabalho, ou ainda para vinte anos. A cumplicidade do crime seria punida com as mesmas penas, menos a terça parte, conforme determinava o artigo 35.

Poderiam, alegar a Constituição do Império, outorgada em 1824, por D. Pedro I, que estabelecia:

Artigo 179: A inviolabilidade dos Direitos: XIX – Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis.

Nesse artigo constitucional, também estavam inclusos o enforcamento, o esquartejamento, penas cruéis.

Pelo Decreto Imperial de 04 de junho de 1835, determinava-se a pena de morte, por enforcamento, dos réus acusados de matarem seus senhores.

Se a Constituição Imperial não previa a pena de morte, então esse decreto estava em contrário à própria Constituição. Mas a decisão da elite campineira estava determinada a única possibilidade:

UMA EXECUÇÃO PARA SERVIR DE EXEMPLO A TODA A ESCRAVATURA DA VILA.

Em janeiro de 1835, ocorreu em Salvador, Bahia, a revolta dos Malês. Eles tomaram a capital baiana, resultando no enforcamento e decepação de mais de uma centena de negros. Esses escravizados sabiam ler e escrever em árabe e, desde 1808, os nagôs com revoltas na província baiana, tendo em 1835, unidos aos haussás para essa realização.

A Vila de São Carlos em 1835 possuía 7.684 habitantes, sendo: 4.319 escravizados, 2.328 brancos e 1.037 negros livres. A população negra era de: 4.188 pretos e 1.168 pardos, um soma de 5.356 pessoas, sendo um total de 70% de negros e 60% de escravizados. Uma rebelião como em Salvador teria aqui consequências terríveis, dado a violência com que eram tratados os escravizados pelos senhores.

Dois Avisos do Imperador estabeleciam:

– Aviso Imperial de 25 de novembro de 1834, cláusula 5ª., sobre a montagem da forca, 2 (dois) antes da execução;

– Aviso Imperial de 17 de junho de 1835, sobre o desmonte da forca 2 (dois) após a execução.

A forca foi montada no mês de novembro, ocorrendo depois outros enforcamentos, e removida três décadas após, para o Campo da Alegria (Largo de São Benedito).

Pela Lei Imperial de 01 de outubro de 1828, do Regimento das Câmaras Municipais do Império (hoje Lei Orgânica do Município), era obrigatória a realização de arrematação (licitação), para a compra de qualquer mercadoria pelas Câmaras.

As compras relacionadas ao enforcamento do escravizado Elesbão não ocorreram por esse regime, por determinação do Juiz Municipal José Mendes Ferraz e da Câmara de então, por falta de tempo. (AHCMC).

O facão para decepar a cabeça e mãos de Elesbão, fabricado por um preto, escravizado pertencente ao Cônego Melchior, por R$ 1.600 réis. (AHCMC).

Em janeiro de 1836, o Juiz Municipal José Mendes Ferraz, executor da sentença de Elesbão, endereçou ofício à Câmara Municipal, pedindo sua substituição no cargo de Juiz Municipal, exatamente trinta dias após o enforcamento, dizendo haver cumprido o seu tempo. (AHCMC).

Eu sempre questionava durante as minhas pesquisas:

ELESBÃO E NARCISO VOCÊS MATARAM O CAPITÃO?

As contradições, o julgamento impróprio pelo lugar dos fatos, (caso de Narciso), a inclusão de depoimentos das 35 testemunhas no processo, depoimentos contraditórios dos próprios escravizados, atos falhos, omissão da defesa, fatos contrários ao capitão.

Hoje eu afirmo:

ELESBÃO E NARCISO: VOCÊS NÃO MATARAM O CAPITÃO!

Referências e fontes:

OLIVEIRA, Valdir. Elesbão. Campinas: ed. independente, 2016.
Arquivo Público do Estado de São Paulo: acervo do judiciário de São Paulo, fóruns de São Paulo, Campinas e Jundiaí.
Centro de Memória – UNICAMP: acervo do Judiciário de São Paulo, fóruns de Campinas e Jundiaí

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