Black Guard: profile of a society in crisis.
Maria Lúcia de Souza Rangel Ricci (in memoriam) – professora de História da UNESP, sócia fundadora do IHGG Campinas.
A Guarda Negra surgiu nos meses que se seguiram a abolição da escravidão e foi uma instituição civil formada por ex-escravos que desejavam proteger a liberdade recém adquirida e o bem-estar da princesa Isabel, tida por eles como a Redentora do Brasil.
O objetivo deste estudo é mostrar a sociedade brasileira da época e suas implicações para a formação dessa instituição. Nesta perspectiva mostrarei algumas balizas da época imediatamente anterior a 1888, a fim de conhecermos as ideias dominantes, os setores da sociedade envolvidos, já que, durante o último quartel do século XIX, o Brasil vivia uma série de contradições sociais.
A geração de final do século XIX tinha uma visão política simplista: através do uso do poder conseguir-se-ia a estabilidade social, provocando a circulação das elites no poder. Teria realmente a Guarda Negra a pretensão de querer que o Estado monárquico decadente se tornasse o ponto de convergência e de equilíbrio dos interesses sociais comuns das diferentes classes, aproveitando os ânimos patrióticos do cidadão comum?
Até a aparição de Auguste Comte no Brasil, as reflexões sobre o homem e a sociedade traziam sempre a marca da filosofia romântica, embora, alguns mais extremados – caso de um Magalhães e Alencar – buscassem um certo equilíbrio entre a concepção moral do mundo e o nacionalismo romântico, ou seja, uma definição mais orgânica que nos definisse como povo.
Como testemunho do debate lembramos a afirmação de Sílvio Romero, que nos revela a profundeza daquele momento em que os quadros do pensar romântico já não mais servem, em que a própria fé e o império são postos em dúvida, no momento, enfim, em que um bando de ideias novas que esvoaçam sobre nós de todos os pontos do horizonte.
Vemos, portanto, que esse movimento subterrâneo que vinha de longe, o positivismo, era antes no Brasil apenas uma filosofia científica, quando se junta ao bando de ideias novas, é encarado então como filosofia da sociedade e da história.
Nada mais errôneo seria imaginarmos que nossos homens do passado (românticos e bacharéis), vivessem alienados da realidade histórica, procurando apenas repetir o que a Europa ou a América do Norte lhes impusesse. Em verdade, buscaram eles modelos para tentar compreender a sua realidade, da mesma forma que hoje a nossa compreensão da realidade é a nossa realidade, igualmente inspirada em variados modelos.
Tal esquema de pensamento implica, pois, em uma visão universalista e prospectiva do homem e de sua história, exatamente como a que marcaria a ilustração brasileira; e é aí, justamente, que o positivismo se ajustaria no sentido de afirmar a unidade fundamental do espírito humano, sua obediência a uma mesma lei de evolução, prevendo o término deste processo evolutivo. Além disto, a lei dos três estados permitia aos nossos bacharéis progressistas, ilustrados, cientificistas, a possibilidade de compreender e, principalmente, interpretar a história brasileira (passada e presente), bem como novas aberturas para o futuro.
Com isto não afirmamos que no Brasil houve um positivismo integral, na sua rígida ortodoxia comtista (a não ser o grupo do Apostolado Positivista), mas, sim, um positivismo instrumental, já que na maior parte das vezes justaposto a ideias liberais, que tanto Comte combatera. Seria mais precisamente o sentido eminentemente pedagógico da filosofia comtista que mais se ajustou às aspirações da nova elite intelectual de então, preocupada em erguer o país ao nível do século.
É bem provável que os economistas nos contradigam nesta afirmação, já que para a maior parte deles a ideia de desenvolvimento é um efeito de demonstração; acreditamos, contudo, que o esforço ilustrado para colocar o país ao nível do século (seja em qualquer modelo – comtista ou spenceriano – por exemplo), é, sem dúvida, um esforço desenvolvimentista, uma vez que todas as nações integram uma humanidade comum, e suas diferenças, nos parece, são apenas de fase, nunca de natureza, e a nossa ilustração brasileira firmava o necessário para o processo de desenvolvimento. E se há um mito moderno das etapas necessárias do desenvolvimento econômico, também o há, e com a mesma função, no ilustrado das etapas da evolução humana, e essa geração de século passado teve igualmente uma aguda consciência dos problemas de índole econômica que o processo dessa evolução naturalmente envolve.
Eis o porque de então podermos ver nesta estirpe, como poucos, bem poucos mesmo, chegaram a compreender a época em que viviam: nos últimos dias do Império Brasileiro os republicanos não formavam um todo homogêneo; muito pelo contrário, apresentavam interesses antagônicos, e o único ponto que os identificava era a aspiração comum do novo regime. Os positivistas ortodoxos (caso de um Teixeira Mendes ou Miguel Lemos), aspiravam atingir a República apenas pela evangelização dos espíritos (daí os apelos feitos a Pedro II para que se prestasse a ser um instrumento dessa gradual transformação, e ele próprio pode vir a ser o presidente perpétuo). Outros, os politiqueiros soidissant republicanos interessados apenas em posições, acostumados aos cambalachos. Outros ainda principalmente senhores de terra ou burgueses, bastante ligados a sua origem rural, que não viam claramente as vantagens da mudança do regime, principalmente com relação às relações de trabalho.
Isto significa dizer que a República no Brasil foi fruto de uma curiosíssima conjugação de forças: a da propaganda dos republicanos históricos que vinham desde 1870 e obedeciam a Quintino Bocaiuva; a dos exaltados que seguiam o jovem e brilhante orador Silva Jardim (que pretendia conscientizar e consolidar o verdadeiro núcleo revolucionário); a dos políticos desencantados (conservadores e liberais, monárquicos depois da Abolição); a dos abolicionistas, da linha de Joaquim Nabuco e a dos federalistas de Rui Barbosa.
Quer-nos parecer, pois, que, no Brasil de todas as épocas, os homens e as instituições sempre se mantiveram na posição de um paradoxal antagonismo, inacreditável, certas vezes, ocultando uma veemente aversão pelo ajuste de suas próprias razões ou necessidades. Daí a formação de grupos insatisfeitos, despidos de compreensão própria na relatividade do amadurecimento das concepções. Somos desta ou daquela opinião, porque não a temos em verdade! Daí igualmente, a luta entre Individualismo e Idealismo que se pode apreciar em nossa evolução histórica.
O que queremos com isto afirmar é que nesses momentos históricos do século XIX, observamos que a nova europeização acarretou seus efeitos no Brasil, abruptamente, da herança portuguesa às formas econômicas, jurídicas e políticas da Europa Moderna, do liberalismo econômico, do parlamentarismo, da monarquia constitucional e de tantos mitos progressistas.
Isto significa dizer, como já colocamos, que havia uma série de contradições entre os tidos modelos ideais e as formas reais de organização social vividas no Brasil daquela época (último quartel do século XIX), onde as tensões eram inúmeras e podiam ser manipuladas dentro de uma mesma classe social de acordo com seus interesses, e permanecendo num círculo vicioso: economicamente débil e com estruturas sociais demasiadamente rígidas, determinando-nos um processo extremamente lento, descontínuo e convulsivo, e ainda mais, onde poucos, foram capazes de conduzir massas para alguma real mudança. Aliás o que é bem entendível; se os homens não tinham condições para formarem consciência e, em caráter coletivo, das relações que deveriam existir entre técnicas, valores e objetivos sociais em suas vidas, é evidente também que o caminho para correlacioná-los institucionalmente ficaria bloqueado, fazendo com que qualquer de inovação se esvaziasse.
Eis o porquê, repetimos, dessa geração ser muito simplista em termos de política: o uso do poder era o máximo objetivo o ser atingido, já que através dele conseguir-se-ia a estabilidade social, provocando a circulação das elites no poder. Daí a pretensão daquele minoritário grupo revolucionário republicano, liderado principalmente por Silva Jardim, em querer que o Estado se tornasse o ponto de convergência e de equilíbrio dos interesses sociais comuns das diferentes classes, aproveitando os ânimos patrióticos do cidadão. Contrariamente observamos que o Estado republicano não se consolidou nesse esquema, já que herdou o poder das classes sociais dominantes, não dispondo de meios para incluir os demais estratos sociais.
Constatamos que, no instante em que a organização político-econômica começa a não consorciar-se com as necessidades éticas e intelectuais da sociedade, esta, forçosamente subdivide-se em dois grupos, que travam guerra recíproca (seria a força da conservação e a tendência à renovação).
Com isto poderíamos então entender o sistema escravista no Brasil. Se tal sistema em todos os tempos teve sua existência vinculada ao suprimento de mão-de-obra, especificamente no caso da escravidão moderna, o suprimento do braço escravo das colônias foi feito através do capital mercantil, que encontrou, no tráfico negreiro, uma de suas formas prediletas de reprodução, chegando mesmo a impor o africano como força de trabalho predominante.
Advinda a Revolução Industrial, trazendo em seu bojo modificações substanciais nas relações econômicas, uma vez que, a partir do século XIX o capital passou a se acumular predominantemente na atividade da produção e não mais na troca, consequentemente deixou de existir o estímulo básico para a preservação do escravismo, decaindo o interesse pelo tráfico negreiro, e as subjacentes alterações, no caso brasileiro, culminaram com a extinção (não tão efetiva) do tráfico internacional de escravos, em 1850.
Tais reflexos das mudanças econômicas manifestar-se-iam internamente no Brasil, onde o preconceito da inferioridade da raça negra era predominante, impossibilitando a sua aceitação como assalariado. E, a partir da década de 1870 começariam então a surgir as primeiras críticas denunciatórias de tal concepção.
No entanto, seria apenas nos últimos anos do século XIX que o processo de conscientização quanto ao problema tocaria a sociedade brasileira como um todo. Assim, com a propagação do abolicionismo, os centros urbanos se tornaram sensíveis às condições de vida dos escravos, e estes passaram a vê-los como locais onde poderiam encontrar proteção e mesmo serem ouvidos em seus reclamos.
Convém observarmos que a irracionalidade no protesto seria comum aos escravos mais novos, recém-chegados, enquanto que, nas áreas mais antigas, o escravo já mais experiente e conhecedor do poder de repressão local, evitaria a revolta repentina, optando pela planejada, por um tipo de protesto mais organizado.
Essas rebeliões planejadas apresentaram caracteríticas próprias, diferenciando-se das repentinas, sendo aquelas elaboradas por alguns líderes e, geralmente, com um grande número de conspiradores.
A imprensa da época nos mostra de igual modo que os protestos também se repetiram ao nível individual (as formas mais comuns de protesto, nesse nível, eram a fuga e o suicídio), e, foram mesmo inerentes à própria escravidão.
Lembramos que, em sua propagação, o abolicionismo não se resumiu aos jornais; a propaganda oral ampliou, e muito, os limites da palavra impressa. Sociedades abolicionistas proliferaram, inicialmente na Capital do Império, e, a seguir adentrando por todas as Províncias, bem como pelos principais centros urbanos do interior. De início essas associações eram de caráter emancipador; todavia, partir de 1885, optaram pela tônica abolicionista, sem, contudo, abandonarem seu caráter emancipador. Passaram a um trabalho mais ativo, promovendo reuniões culturais, meetings, discursos, conferências, nos quais procuravam os oradores identificar o escravismo como contrário aos valores sociais, políticos e religiosos.
Desde cedo perceberam os abolicionistas a insuficiência dos instrumentos legais como fatores de pressão, vendo na propaganda apenas uma força auxiliar representada pela opinião pública. Sustentada pela propaganda, a agitação levou o movimento abolicionista à senzala, e esta trouxe, ao protesto do escravo, a eficácia que anteriormente não possuía. Contudo, convém sempre enfatizar-se que, os próprios negros que tomaram parte na luta pela libertação dos seus semelhantes, fizeram-no antes mais por solidariedade racial que por representarem a vanguarda de uma nova ação política, ou de uma nova situação econômica cujo desenvolvimento dependesse da liquidação da estrutura então vigente.
Referência bibliográfica:
RICCI, Maria Lúcia de Souza Rangel. Guarda Negra: perfil de uma sociedade em crise. Campinas: MSLR Ricci, 1990, 156p.