Prefácio de: Riscando a cidade: cartografia histórica e desenho urbano

Preface to: Drawing the city: Campinas (SP, Brazil) historical cartography and urban design.

Ivone Salgado – Professora de Urbanismo do CEATEC – PUCCAMP.

Neste estudo de caso da cidade de Campinas há uma conceituação sobre a configuração dos espaços construídos das cidades paulistas, espaços estes que se diversificaram ao longo da história social, econômica e cultural da região. O olhar do arquiteto consegue discernir as diversas concepções de cidade reveladas nas suas arquiteturas e composições urbanas, oferecendo ao leitor uma síntese analítica sobre estas variadas formas de organização dos espaços das cidades da antiga província de São Paulo.

O autor estabelece uma linha de argumentação sobre a formação inaugural do núcleo urbano de Campinas, quando esta era ainda apenas uma vila, destacando como ela foi delineada com valores simbólicos pertencentes à tradição sertanista – argumento original e revelador de uma ordem racional de ocupação do espaço construído da cidade, desvendada com perspicácia a partir de uma observação acurada do processo de formação desta arquitetura urbana. Esta análise, em muitos aspectos, é extensiva a outras cidades paulistas, o que torna o estudo de caso um pretexto para desvendar as peculiaridades da urbanização no território bandeirante.

A análise da arquitetura da cidade coloca de forma explícita a intenção do autor de cotejar o desenho urbano com a tridimensionalidade do espaço construído, a partir da sensibilidade do observador em movimento pelas ruas, que, através de uma percepção sensorial e visual desta arquitetura, realiza experiências estéticas e consegue apreender uma forma de organização que, longe de ser espontânea, revela a existência de uma tradição na formação das cidades coloniais no território de São Paulo, marcada pela cultura urbana de Portugal e pela cultura sertanista dos paulistas.

O autor destaca de forma original as contribuiçóes dos jesuítas e dos sertanistas na configuração do espaço das cidades paulistas no Brasil Colônia. Se o adro da igreja jesuítica é o espaço privilegiado em torno do qual se estrutura o núcleo principal da cidade colonial, para as cidades onde um colégio se implantava, para as demais cidades, como é o caso de Campinas, a organização do principal espaço da cidade em torno da Casa de Câmara e Cadeia, da igreja, do terreiro e do cruzeiro, marca a formação das freguesias, vilas e demais cidades. A outra contribuição destacada pelo autor para a formação da cidade colonial paulista é a referente ao sertanista lançando luz sobre o papel das estradas, caminhos e pousos presentes no espaço regional e a sua articulação com o núcleo urbano, definido a partir do adro das igrejas.

No estudo sobre a formação do espaço da cidade, a situação topográfica é percebida como condicionante nas opções de composição da paisagem construída.

O autor, após a definição das lógicas de organização dos espaços urbanos coloniais na capitania de São Paulo, lógica esta marcada pelos princípios de organização espacial tanto dos jesuítas como dos sertanistas, consegue inserir de maneira sensível o caso de Campinas dentro deste processo geral, como um exemplo destacado em que as principais referências espaciais na organização da vila — a estrada, os pousos e, finalmente, a igreja, o Pelourinho e Casa de Câmara e Cadeia, articulam-se com as ruas longitudinais, transversais e as praças, formando o núcleo urbano típico do período. O caráter didático entre a construção do conceito e a exploração de um estudo de caso permite à obra um lugar de destaque na historiografia sobre o tema da história da arquitetura das cidades brasileiras.

Para explicar a formação urbana de Campinas, inicialmente um bairro da Vila de Jundiaí, Campinas do Mato Grosso, que adquire, posteriormente, a condição de vila, para depois alcançar o status de cidade, o autor recorre de forma inteligente aos aspectos da organização do território, marcado por caminhos e estradas, pela atividade econômica que movimentava a região e pela configuração geológica e topográfica.

A Rua Direita (atual Barão de Jaguará) fará a transição entre o desenho nuclear da vila para os eixos da cidade imperial; ela será a espinha dorsal da transição formal, funcional e simbólica entre dois modelos urbanísticos: o primeiro, colonial de tradição sertanista; o segundo, de influência iluminista e neoclássica, próprio do Império.

A historiografia sobre Campinas oferece as pistas para a análise do autor que, pautada nos dados básicos sobre o desenvolvimento econômico da vila e nos dados sobre a sua constituição física, com o número de ruas, becos e praças e o número de edificações, confronta a cartografia e a documentação do século XIX e – com uma leitura particular sobre a constituição da espacialidade da cidade e de sua representação gráfica – consegue realizar uma análise do arquiteto cujo olhar interpretativo pauta-se na conformação estética espacial do urbano que então se formaria.

Segundo o autor, o projeto da cidade imperial sinaliza para a libertação de alguns elementos urbanísticos pertencentes à tradição colonial: para isto, escolhe como pivô das transformações pretendidas o primeiro e mais profundo marco da implantação do núcleo da vila e da praça-terreiro: a igreja da padroeira, Nossa Senhora da Conceição, que define a nova direção de organização do espaço, construindo um novo eixo perpendicular àquele definido pelo núcleo antigo.

A terceira cidade constituída, que se redesenha sobre o antigo tecido urbano de Campinas, é marcada pelo traçado das linhas férreas. Se, em primeiro momento, elas apenas desenhavam os limites do núcleo urbanizado, em segundo momento estabelecem novas relações entre o espaço construído da cidade tradicional e com as novas ocupações, marcadas agora pelos complexos construtivos a elas vinculados, os grandes pátios ferroviários, que abrigam a infraestrutura das linhas férreas e a incipiente indústria voltada para os maquinários que o complexo ferroviário e a produção agrícola requerem, assim como pelos bairros operários que se formam no entorno.

Se, no início da fundação do núcleo urbano, o locus escolhido para a implantação da praça central articuladora do primeiro traçado foi uma planície que permitiria sua expansão direcionada pela Rua Direita e, posteriormente, pelo eixo definido pela Matriz Nova, em terceiro momento a expansão deste núcleo urbano está condicionada por este complexo ferroviário, mas também pelas bacias hidrográficas marcadas pelas nascentes do córrego Tanquinho e do córrego do Serafim. Condição topográfica deste locus urbano que acarretaria trágico destino à cidade no final do século XIX, por configurar-se em área propicia à propagação da epidemia de febre amarela.

Na nova cidade que se configura no início do século XX, o autor esclarece com precisão o surgimento da concepção de zoneamento, legislaçáo urbana que não deixará mais de participar do processo de controle da ocupação dos espaços da cidade e que, colocando-se como mediadora dos valores fundiários que a cidade capitalista impõe, revela a transformação de Campinas em espaço altamente segregado, social e economicamente.

O autor insere assim, no contexto campineiro, a moderna disciplina do urbanismo que, a partir da década de 30 do século XX, tem como protagonistas Anhaia Mello e Prestes Maia, na discussão e na implementação do Plano de Melhoramentos Urbanos de Campinas. A partir desta nova disciplina, da qual o autor é efetivamente um especialista, é possível compreender sua leitura da cidade, na qual a história urbana de Campinas é o fio condutor.

O público especializado – arquitetos e urbanistas – terá, a partir desta obra, uma ferramenta interpretativa de primoroso valor metodológico e analítico que repercutirá seguramente nas novas abordagens dos estudos urbanos.

A maturidade intelectual do autor revelada nesta obra foi alcançada ao longo de um período de convivência com arquitetos, urbanistas e historiadores da arquitetura e do urbanismo, no âmbito de um riquíssimo círculo de discussões e vivências na vida acadêmica e na vida profissional, junto ao poder público, círculo do qual tive o privilégio de compartilhar.

Referência bibliográfica:

BITTENCOURT, Luiz Cláudio. Riscando a Cidade: Cartografia Histórica e Desenho Urbano Campinas. Campinas: CMU Publicações e Arte Escrita, 2009, 88p.

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