Preface to: Campinas, from origins to the future: (1732-1992).
Jorge Coli – professor de História da UNICAMP.
O bichinho caiu em Campinas (Mário de Andrade, em Macunaíma)
O livro de saudoso arquiteto e ex-prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, é resultado de sua tese de doutorado defendida na USP, em 1999, sob a orientação do professor Cândido Malta Campos Filho. Inúmeras outras existem nas universidades brasileiras, e inúmeras mais existirão. Enquanto trabalho acadêmico, ela se encontra entre as mais notáveis, pela inteligência do tratamento, pelo rigor e minúcia do método, pelos achados consideráveis que renovam o conhecimento de importantes setores da história do Brasil. Neste campo, que é o da academia, da universidade, compara-se às melhores.
Ocorre, porém, que estas medidas não dão conta de sua natureza. Ela é indissociável, de modo orgânico e íntimo, da vida e da morte de seu autor. Nisto, não tem paralelo.
O estilo é austero, econômico. O texto avança os raciocínios apoiando-os sempre em dados seguros, não progride nunca sem que a hipótese anterior tenha sido demonstrada de maneira convincente. Cada elemento, por ínfimo, ou por distante que esteja do objeto principal, é controlado cuidadosamente.
Tal perfeccionismo obsessivo jamais conduz o autor a se embaraçar nos detalhes. Ao contrário, uma das lições exemplares de sua tese é o modo como estabelece articulação constante entre o geral e o particular, coisa que somente os melhores historiadores sabem fazer. Nela, o conhecimento é sempre significante, pois é inserido no interior de um processo que entende e explica. Não se trata nunca da acumulação descontrolada de informações, nem da secura esquemática. Trata-se de um diálogo no qual o dado alimenta a interpretação ampla, no qual o estudo do detalhe só tem sentido na compleição do todo. Metodologicamente, diz o autor, em sua Introdução, estabelecemos a relação entre o escopo maior da pesquisa e o aprofundamento da análise do objeto da tese, buscando evitar reducionismos teóricos ou generalizações de dificil demonstração.
O ponto de partida deste estudo encontra-se no final do livro. É um objeto pequeno, bem circunscrito: uma antiga sede de fazenda que sobreviveu à extensão urbana de Campinas. O autor quer entendê-lo desde os primórdios até suas últimas metamorfoses. Volta-se, então, em primeira parte, para o projeto iluminista de época pombalina, que o morgado de Mateus trouxera para o Brasil, já que a existência de seu objeto de estudo nasce dessa obra geopolítica, para empregar uma expressão do texto. Acompanha, em seguida, as transformações de seu objeto, ao mesmo tempo em que reconstitui a história administrativa, urbana, econômica, da cidade. Descreve o avanço imobiliário, inserido no que o autor intitulou de a remodelação da cidade como negócio. Enfim, chega à preservação dos edifícios remanescentes, discutindo a questão do patrimônio tanto de modo teórico quanto circunstancial.
No final do item intitulado A fazenda loteada, encontra-se o seguinte parágrafo: Oito anos mais tarde, precisamente a 4 de setembro de 1978, a filha herdeira desse último comprador, que preservara as características das edificações remanescentes, vende esta mesma propriedade com esta precisa configuração aos seus atuais proprietários. Nota discreta nos revela: um dos compradores em questão é o próprio autor.
Ele, arquiteto, restaura esses edifícios com um sentido notável do espaço e da história. Diante de tantos equívocos cometidos por restaurações e reconstituições ingênuas, arbitrárias, tão freqüentes em todos os lugares, a sua serve de lição elevada. Além disso, o autor passa a morar dentro de seu objeto de estudo.
Isto revela o quanto sua tese ultrapassava, de longe, o exercício acadêmico, e como se configurava, para seu autor, como algo vital. A palavra vital, aqui, tem um sentido denso: esse objeto, que ele estudava, fazia parte, essencial, de sua vida. Talvez, justamente, a frieza estrita de seu estilo e de suas análises tenha sido empregada para evitar qualquer parcialidade sentimental. O que torna ainda mais comoventes certos momentos, quando, por trás de uma passagem neutra, vislumbra-se o afeto que ele nutria pela velha sede. Deste modo, ao narrar a primeira venda do imóvel, que ocorre em 1966, diz, simplesmente: Esta empresa, no ato da aquisição do bem, quebrava o último elo da cadeia de sucessão hereditária do mesmo, configurando-lhe definitivamente o caráter capitalista de valor de troca de uma mercadoria como outra qualquer.
Uma mercadoria como outra qualquer: o autor sente, de fato, o aviltamento do bem, tanto que parte em socorro daquelas paredes de taipa. Ao comprá-las, ele as consolida e restaura, ele as conduz ao tombamento. De mercadoria, elas se transformam em signo, em símbolo, em marco da história campineira. Como, mais ainda, o autor sabe a significação maior que encerram, insere-as em uma história ampla, a um só tempo brasileira e lusitana. Era conferir acepção profunda ao objeto que ele percebera como de importância essencial, era dispô-lo dentro da história. Nem é preciso dizer: esvaziam-se aqui quaisquer inflexões de erudição local, de pretensões nobiliárias, de anedotas pitorescas.
Além de tudo isso, o autor possuía algo de muito raro e que poderia ser chamado de o sentido quotidiano da história. Viver naquelas paredes antigas não era, para ele, uma consagração aristocrática. Era sentir-se dentro da história para compreender o presente, refletindo sobre o passado. Suas lutas pela preservação do patrimônio arquitetural de Campinas não provinham de uma militância sumária. Elas se originavam do sentido profundo da história que lhe era próprio. É significativo: quando se tornou prefeito de Campinas, mencionava sempre, em suas falas, a série de edis que o precederam, analisando a maneira como, para o bem ou para o mal, eles imprimiram inflexões nos destinos de Campinas. Compreender esta sucessão permitia a ele encontrar rumos para sua própria gestão, evitando erros, encontrando saídas, construindo futuro.
Assim, mesmo antes de sua posse, insistia no fato de que o novo prefeito de Campinas, o primeiro prefeito do novo século, como dizia, deveria ter um gabinete no Palácio dos Azulejos, onde, durante muitas décadas, foram decididos os destinos da cidade. Antes que ocorresse a mudança da administração para o Palácio dos Jequitibás, moderno e sem alma, o lugar do prefeito sempre fora naquele belo casarão. Instalar-se na sala do velho gabinete era, assim, estabelecer uma continuidade entre o que foi e o que seria. Era também valorizar o imóvel, que, no passado, havia sido maltratado por ocupações inadequadas, necessitando de urgente restauração, pela qual ele se batia. Era, ainda, contribuir para que o centro urbano do município adquirisse nova distinção. Nunca ninguém, nem como teórico, muito menos como administrador, debruçou-se tanto sobre a evolução de Campinas, meditou tanto sobre o que, nessa evolução, ligava passado, presente e futuro.
As precauções contra os reducionismos teóricos referentes ao trabalho acadêmico de tese, encontram um eco em suas posições pessoais e políticas. Ou talvez seja mesmo o contrário. Quero dizer: Antonio da Costa Santos era imbuído do que é preciso denominar com uma noção um pouco fora de moda: Humanismo. Humanismo em sentido muito elevado, no qual a dignidade humana compreende o respeito pelo outro, dentro de complexidades, ou mesmo dentro de contradições, que precisam ser levadas em conta. Ele detestava reducionismos teóricos porque estes desbastavam as infinitas ramificações dos atos humanos. Por isso mesmo, buscava extrair, de cada um, fosse quem fosse e de onde viesse, forças positivas que pudessem agir, aos poucos, em transformações coletivas harmoniosas. Sentia, de modo ao mesmo tempo racional e afetivo, o direito de ser do outro. Desta forma, trata-se de um Humanismo que não somente se opõe às interpretações teóricas esquemáticas, mas que se opõe também às práticas das intolerâncias, das violências radicais, do desrespeito pelo outro, apenas porque o outro pensa e age de modo diverso. Por outro lado, este Humanismo, com visão de longo alcance, garantia-lhe a perseverança nas convicções, a persuasão argumentativa, a firmeza nas decisões.
Antonio da Costa Santos sabia que, enquanto prefeito, tinha seu lugar na história de Campinas. Ele, conhecendo como ninguém as forças que moveram o passado da cidade, queria marcá-la por uma gestão ambiciosa, que devolvesse a ela uma grandeza e uma decência perdidas. Queria encontrar, para ela, uma inteireza econômica, social, ética. Queria que Campinas tivesse um futuro muito maior e mais feliz do que seu passado. O prefeito do novo século, do novo milênio, seria aquele de um novo futuro para Campinas. Entrou, porém, para a história, de um outro modo, terrível e imprevisto.
Mencionei a austeridade do estilo que lhe serviu para construir o texto notável. Porém, antes de cada item, o autor inseriu uma citação extraída de Macunaíma. Poéticas, alusivas, meio misteriosas, um pouco metafóricas, um pouco simbólicas, acompanham cada etapa do estudo. A última delas é também a conclusão da história criada por Mário de Andrade, quando Macunaíma morre e vira estrela no céu:
A Ursa Maior é Macunaíma.
A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asas rumo a Lisboa.
Esta passagem, inserida depois do título A preservação da casa principal como uma intervenção antiética, referia-se, sem dúvida, ao abandono da moradia ao longo dos tempos e sua salvação pela memória. Embora, é claro, possa tomar uma feição mais ampla, aludindo também ao estado de abandono da cidade de Campinas. Com esta metáfora, o historiador, autor da tese, mostra-se, de uma certa forma, como aquele homem que recolheu a narração dos acontecimentos. Com isso, construiu sua tese e terminou por salvar o edificio.
Contudo, essa passagem de Mário de Andrade adquire, depois que Antonio da Costa Santos foi assassinado (2001), uma dimensão de forte melancolia: o destino dos heróis é desaparecer desta terra e virar estrela no céu.
Macunaíma, porém, disse ainda uma outra coisa: Não vim ao mundo para ser pedra. Pedras são indiferentes, sem consciência, sem ação. Pedras não se arriscam.
Referência bibliográfica:
SANTOS, Antonio da Costa. Campinas, das origens ao futuro: (1732 – 1992). Campinas: Ed. da Unicamp, 2002, 400p.