A influência feminina na vida e na obra de Monteiro Lobato

The female influence in Monteiro Lobato’s life and work.

Eliane Morelli Abrahão – historiadora, pesquisadora. Titular da Cadeira 26 do IHGG Campinas

A recente reaproximação com a obra de José Bento Renato Monteiro Lobato se deve ao fato de tê-lo como patrono da minha cadeira, de número 9, na Academia Campinense de Letras.

A biografia desse que talvez seja o mais profícuo escritor brasileiro, com dezenas de obras entre clássicos infanto-juvenis e adultos da nossa literatura, vem sendo escrita e reescrita por estudiosos e pesquisadores que se debruçam sobre seu arquivo pessoal e seus livros.

Neste artigo busco trazer um novo olhar. Quero destacar a importância de sua esposa Maria da Pureza Natividade, ou Purezinha, forma pela qual ela assinava e era chamada pelos familiares e amigos.

Inicialmente, devo destacar a riqueza de seu arquivo pessoal, composto de manuscritos, impressos, fotografias, desenhos e aquarelas, bem como o cuidado e o apuro técnico que os profissionais do Centro de Documentação do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (CEDAE – UNICAMP) dedicam ao acervo, organizando-o, conservando-o e disponibilizando-o aos pesquisadores.

Importantes pesquisas têm sido produzidas e divulgadas por professores e alunos universitários com base nesse acervo. Enfatizo aqui os trabalhos da professora Marisa Lajolo Philbert. Foi graças a ela que o arquivo foi entregue aos cuidados da UNICAMP pela família de Lobato, em 2002. Lajolo organizou, em parceria com João Ceccantini, a obra Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil. Essa publicação ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro de 2009, na categoria de não-ficção.

As cartas, os livros e as receitas culinárias são alguns dos caminhos que nos conduzem à pessoa do escritor Monteiro Lobato. Diria que partes significativas de sua vida, os rastros que percorreu durante seus 66 anos de existência. Neste meu novo encontro com ele, volto-me ao seu lado familiar, como disse, para Maria da Pureza, Purezinha, valorizando a importância que essa mulher teve sobre a carreira do marido escritor. De forma imperceptível, ao longo dos anos, ela esteve presente na obra de Lobato. Lia seus textos, sugeria alterações e os corrigia com a crítica aguçada de uma professora.

Mas, quem foi Purezinha?

Em uma família tradicional de educadores homens, nasceu a professora Maria da Pureza de Gouvêa Natividade, em 1885. Seu pai, Francisco Marcondes Gouvêa Natividade, foi professor em um curso Anexo à Faculdade de Direito em São Paulo. E seu avô, Antonio Quirino Souza, era professor em Taubaté, e inclusive foi mestre de Monteiro Lobato.

Purezinha viveu cercada de professores, escritores, abolicionistas e intelectuais. Entre eles ninguém menos do que René de Castro Thiollier, seu primo. Ele foi advogado, escritor e intelectual fortemente envolvido com o grupo modernista paulista. Thiollier foi, também, o responsável pelo aluguel do Teatro Municipal de São Paulo para o evento da Semana de Arte Moderna de 1922.

Por quê tudo isso?

Porque Monteiro Lobato frequentava a casa do avô de Purezinha e certo dia, entre uma partida de xadrez e outra, ele a conheceu e se encantou com a beleza da moça. Um encantamento que pode ser facilmente identificado nas numerosas cartas que ele endereçou àquela que ainda seria sua esposa.

No entanto, a família da Purezinha era progressista em suas ideias. Seu tio, Antonio Bento, era abolicionista e redator-chefe de um jornal contra o regime de trabalho escravo. Do lado da família de Monteiro Lobato o ideal era mais conservador, na figura do próprio Visconde de Tremembé. Talvez por isso houvesse um embate de ideias entre as famílias, visto que o Visconde foi contra o casamento de Lobato com Purezinha.

Mas eles se casaram e, em 1916, passaram a viver na Fazenda Buquira, herdada por Lobato de seu avô, com seus 4 filhos: Martha com sete anos, Edgar com seis, Guilherme com quatro e Ruth, ainda bebê.

Purezinha deixara de lecionar para dedicar-se aos cuidados da casa e da educação dos filhos. Inclusive, ela tinha por hábito ler estórias para os filhos. Foi justamente por observar a esposa e os filhos nessas experiências de leitura, que Monteiro Lobato foi motivado a escrever um mundo de livros para meninos e meninas. Nasceu, assim, a figura de Dona Benta, aquela senhora de mais de sessenta anos, bem jeitinho de avó, que mora com a mais encantadora das netas: Narizinho. Seriam Purezinha e Martha? Talvez. Aqui a nossa imaginação é estimulada.

Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Emília, Pedrinho e o Visconde de Sabugosa dão vida às personagens, imprimindo dimensão fantástica ao Sítio (Fazenda Buquira), cenário brasileiro que resgata e preserva a nossa cultura, o nosso folclore, imbricados de influências das culturas indígena, africana e europeia. São as aventuras de sua família, em forma de fábulas. Com o Sítio do Pica Pau Amarelo, Monteiro Lobato marcou a imaginação de gerações e gerações de brasileiros.

Mas e as gostosuras que permeiam suas estórias? O bolinho da Tia Nástacia?

Purezinha sempre atenta aos gostos alimentares de sua família produziu seu caderno de receitas. Em 1908, ela copiava as receitas de Dona Julia Sampaio, conforme se pode ver na primeira página de seu manuscrito culinário. E, como toda a boa professora, Purezinha procura dar ordem ao seu caderno e elabora um índice. Identifica a página em que está determinada receita e assim o faz com todas. Folheando o documento deparei-me com o Sonho de Benta.

Vejam que os nomes de seus personagens estão também no seu cotidiano, uma vez que o preparo das iguarias, da comida, estão no dia-a-dia das famílias.

Os pratos mencionados por Lobato em suas obras fazem parte da tradicional culinária paulista e mineira. Os aromas e sabores vão do peru recheado ao torresmo; da cambuquira à carne seca desfiada com angu de farinha de milho; do cuscuz ao lambari frito.

Mas sua predileção estava nas iças torradas com sal. Iças são formigas conhecidas também como saúvas. Em carta de 1903 endereçada ao seu amigo, Godofredo Rangel, Lobato diz: … Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava São João no deserto: içá torrado! (Camargos; Sachetta, p. 12).

Em uma época em que Paris é o modelo de civilização, Lobato ensina na sua literatura infantil que a culinária nacional é uma das mais saborosas do planeta. Principalmente quando saída do fogão de Tia Nastácia. Não havia quem resistisse à magia da sua comida.

Lobato deixou sua marca em 12 páginas do caderno de receitas da esposa. Ele transcreveu 18 receitas. Entre elas estão: Mãe Benta, Esquecidos, Pamonhas e Bolachinha Areense.

Finalmente, passados 70 anos da morte do autor, desde 1º de janeiro de 2019 a obra de Monteiro Lobato caiu em domínio público.

Fontes e referências bibliográficas:

CAMARGOS, Marcia; SACCHETTA, Vladimir. À mesa com Monteiro Lobato. São Paulo: SENAC, 2008.
IEL/CEDAE/ MLb 2 1. Fundo Monteiro Lobato. Caderno de receitas de D.Purezinha.
LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato. Um brasileiro sob medida. São Paulo: Editora Moderna, 2000.
LAJOLO, Marisa; CECCANTINI, João L. (orgs.). Monteiro Lobato livro a livro. Obra Infantil. São Paulo: Ed. Unesp e Imprensa Oficial, 2008.
MARTIN, Raquel Endalécio. Um perfil de Maria da Pureza Monteiro Lobato. Tese de Doutoramento. Universidade Presbiteriana Mackenzie, 22-8-2018. Disponível em: http://tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/3756/10/Raquel%20Endalécio%20Martins.pdf. Acesso em 10 de junho de 2019.

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