O universo caipira no curso de nossa história literária

The Caipira universe in the brazilian literary history.

Luiz Carlos Ribeiro Borges – magistrado, escritor. Titular da Cadeira 3 do IHGG Campinas.

Pode parecer um paradoxo que um dos primeiros escritores – talvez o primeiro – a tratar do universo caipira na literatura de ficção tenha sido um autor cearense: José de Alencar. Mas o paradoxo se atenua quando se recorda que Alencar, no conjunto de sua obra, contemplou como cenários de seus romances as mais diversas regiões do País, desde o seu Ceará natal (com Iracema) até o Rio Grande do Sul (com O Gaúcho).

O certo é que a ação do romance intitulado Til, de 1872, e que se classifica entre os seus romances menores e de cunho regionalista, passa-se no território da zona rural paulista localizado entre Campinas e Piracicaba, ou seja, num território essencialmente caipira (designação de origem tupi com o provável sentido de habitante do mato e que teve como destinatários os primitivos habitantes da capitania de São Vicente / São Paulo).

Tem como pano de fundo uma fazenda dedicada ao cultivo de cana, envolvendo o proprietário e sua família, escravos, serviçais, agregados, entre os quais a jovem adolescente cujo apelido dá título à obra; e tem como cenários adicionais as plantações,  as florestas e as estradas do entorno, bem como uma taberna, ponto de encontro dos personagens caipiras propriamente ditos, em especial um grupo de caçadores, que o autor designa como um troço de caipiras e cujo objetivo é, em verdade, caçar o assassino de aluguel de nome Jão Fera. E o termo caipira é repetidamente citado por Alencar, inclusive na menção a certo modo de cavalgar que seria típico deles, caipiras.

Outra nota de interesse consiste na diferença de linguagens. Quando o romancista se detém nos diálogos de natureza amorosa, idílica, estes podem soar de forma indisfarçavelmente anacrônica para o leitor de hoje. Já as falas desenvolvidas no interior do grupo social caipira permanecem ainda hoje providas de vivacidade:

Virou o Gonçalo a palangana de café a acendeu o pito.
– É servido? Perguntou oferecendo fogo ao caipira.
– Nada, obrigado.
– Ainda que mal pergunte, o patrício vem de longe?
– De Campinas.
– E anda caçando? Por estas bandas há muito veado e paca: mas como os caititus este ano, nunca se viu; é mesmo uma praga!
– Nós cá andamos no rasto, mas é de outra caça! atalhou um dos caipiras a rir.
– Vamos desencavar uma onça! acudiu outro.
– E é suçuarana?
– Qual! Tigre verdadeiro! (…)
– O patrício não lobriga?
– Por vida, que não! tornou o Gonçalo. Ainda que Suçuarana é o sobrenome cá do degas: por causa de ser malhado como a bicha. Não vê?… E mostrou as manchas da cara.
– Sem falar da munheca!… Talvez o amigo não acredite, mas onde a vê, já pegou queda de braço com uma, e mais era um bichão da altura daquela porta, sem exageração!

Porém, será algumas décadas mais adiante, já nos primeiros anos do século vinte, que a literatura, já com a assinatura de paulistas, intervirá mais assiduamente no universo caipira.

E nesse momento, é inevitável começar pela obra de Monteiro Lobato, que especialmente em seu volume de contos, Urupês (1917), debruçou-se sobre o modo de vida dos habitantes da zona rural. São narrativas associadas a um cenário certamente familiar ao escritor, nascido em Taubaté e descendente de uma família de grandes senhores rurais, inclusive tendo merecido seu avô o título nobiliárquico de Visconde de Tremembé. E, bem por isso, embora o volume contenha relatos em geral marcados pelo espírito humanitário do autor, trata-se de uma visão de mundo registrada de fora para dentro. O enfoque dado aos protagonistas dos contos, gente simples do campo, caboclos, é de quem se situa num plano exterior a eles.

E mais de uma vez o escritor deles fornece um perfil nada lisonjeiro, mas pessimista. Por exemplo, o conto Bucólica se inicia por uma série de louvores à natureza, até que nela intervém o bicho homem e o cenário bucólico adquire tons de horror.

Esta característica se evidencia ainda mais no conto que encerra o livro, justamente intitulado Urupês, onde Lobato traça um perfil do caipira, aí nomeado Jeca Tatu, marcado por um tom extremamente ácido e crítico, caricatural, onde o personagem e o próprio grupo social a que pertence são identificados por sua extrema indolência e preguiça, por seu entranhado imobilismo. A propósito, por exemplo, da precariedade de sua casa, feita de sapé e lama, sua filosofia de vida se resumiria a isto: Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso. Quanto, noutro exemplo, à alimentação e a sua produção: Da terra só quer a mandioca, o milho e à cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Afinal, qualquer outro trabalho não paga a pena.

Mais tarde, Lobato se retratou em parte das opiniões então emitidas, mas o certo é que o conto ainda permanece como registro de um conceito desfavorável ao caipira. Conceito que, na realidade, pode ser havido como um preconceito, na medida em que se trata da visão de um grande senhor rural, da ótica senhorial do representante da aristocracia rural a respeito das populações postas às margens do grande sistema das fazendas de exploração de açúcar e café.

De qualquer modo, foram várias as oposições e discordâncias em face do ponto de vista adotado por Lobato.

Se recuarmos no tempo, verificaremos que um daqueles viajantes europeus que estiveram no Brasil ainda no período colonial, um deles Jean de Léry, no século XVI, acompanhando a expedição de Villegagnon ao território do Rio de Janeiro (na experiência conhecida como França Antártica), registrou em seu livro Viagem à Terra do Brasil, o depoimento de um chefe tupinambá. O indígena não compreendia e mostrava-se perplexo com o esforço dos europeus para se apoderar de territórios do Novo Mundo e de seus recursos naturais. Por que, considerava ele, acumular riquezas, se a natureza, em sua plenitude e exuberância, já fornecia tudo que a criatura humana precisava para a sua subsistência? Assim diz ele:

sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem? Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois de nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.

Trata-se, portanto, de uma forma de sabedoria, que os indígenas do Brasil legaram aos nossos caipiras. É verdade, no entanto, que com o desenvolvimento e consolidação do sistema capitalista de acumulação da riqueza, essa forma de sabedoria tornou-se, talvez, anacrônica e superada: já não há como subsistir e sobreviver permanecendo à margem desse sistema de produção. A não ser num plano utópico, como seria a negativa de aceitação do sistema dominante e a opção pelo isolamento, por um modo de vida à margem, de permanente recusa.

Ainda contemporaneamente a Lobato outras vozes se ouviram. Uma delas foi de Cornélio Pires, que, em 1921, editou o grande sucesso de público que foram as suas Conversas ao Pé do Fogo. Trata-se, essencialmente, de uma série de causos, registrando tanto histórias de assombrações, como os versos de poetas caipiras. Mas no pequeno estudo que serve como introdução ao livro, Pires discorda da generalização com que Lobato considerou os caipiras e desenvolve uma espécie de catalogação deles. Admite que um tipo deles, o caipira caboclo, corresponde ao retrato feito por Lobato: descendentes diretos dos bugres catequisados pelos primeiros povoadores do sertão, os integrantes desse grupo seriam inteligentes, mas preguiçosos, velhacos, desleixados, sujos e esmolambados. Não teriam esses mesmos vícios e defeitos as demais categorias de caipiras: o caipira branco, o caipira preto, o caipira mulato.

Continua na próxima edição.

Referências bibliográficas:

ALENCAR, José de. (1977). Til. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora / MEC.
LÉRY, Jean de (1972). Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora; Ed. USP.
LOBATO, Monteiro (1944). Urupês. São Paulo: Editora Brasiliense.
PIRES, Cornélio (1987). Conversas ao Pé do Fogo. São Paulo: IMESP.

Foto destacada:

Capa do Livro: MARTINS. Valter. (1996). Nem senhores, nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas, 1800 – 1850. Campinas: CMU/UNICAMP. 176p.

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