History of modern musical Campinas composers (SP, Brazil): the Gomes family.
Por José Alexandre dos Santos Ribeiro – linguista e professor. Titular da Cadeira 34 do IHGG Campinas.
Já escrevemos mais de uma vez que Campinas teve teatro antes de ter água, luz e esgoto. Esse fato ao mesmo tempo curioso e importante, que se deu a partir de 1850, apenas oito anos após a elevação da Vila de São Carlos a Cidade de Campinas, tem explicações de natureza sociocultural muito claras: inicialmente, ocorre que a (pré) burguesia rural de barões e viscondes da cana-de-açúcar e do café (cujos pomposos nomes exornam nossas ruas mais centrais e antigas) era basicamente formada por famílias endinheiradas e – por isso mesmo – de hábitos europeus; ademais, a paulatina substituição da mão de obra escrava pela europeia acabou por impor, inconsciente e coletivamente, tanto nas casas-grandes das fazendas quanto no nascente cosmorama urbano de inícios já do século XIX , o gosto pelo teatro, pela música e pela dança de espetáculo, seguido depois pelo gosto particularmente motivado por todas as outras linguagens estéticas, o que faria de Campinas uma cidade historicamente motivada por atividades artísticas.
Inaugurado em 1850, depois de construído com parcos recursos financeiros e por iniciativa de um grupo teatral amador da cidade, o velho Teatro São Carlos funcionou com luz de velas e sem cadeiras na plateia, que era de terra batida e recebia, a cada noite, cadeiras levadas de casa pelos frequentadores, até que, em 1875, a casa recebeu, afinal, dois importantes melhoramentos: cadeiras permanentes e iluminação cênica a gás!
Isso permitiu que, já naquele mesmo ano de 1875, Campinas assistisse ao seu primeiro espetáculo de ópera: uma montagem da ópera Ernani (1844), de Verdi, então apresentada pela Companhia J. Ferri, um grupo de espetáculos líricos da Itália com solistas vocais, coro, orquestra, cenários, regente, diretor de cena e pessoal de apoio. O sucesso foi tanto, que a companhia permaneceu dois meses na cidade, apresentando 20 óperas no Teatro São Carlos.
Aliás, em 1894, a Companhia Lírica Verdini apresentou, aqui, pela primeira vez, a ópera Il Guarany, do nosso Antônio Carlos Gomes, que, com essa mesma obra levara ao delírio a plateia do legendário Theatro Alla Scalla de Milão, em sua estreia mundial, a 19 de março de 1870.
Em Campinas, acompanhou os cantores da Verdini a orquestra local que o Teatro São Carlos já então possuía e cujo regente era José Pedro de Sant’Anna Gomes, o irmão mais velho de Carlos Gomes, que, segundo crônicas da época, se emocionou com as calorosas homenagens que recebeu então, tributadas a seu famoso irmão.
Outro exemplo da versatilidade e da prontidão com que a plateia campineira arraigava seus hábitos teatrais está no fato de que, em 1897, dois anos após a invenção oficial do cinema pelos irmãos Lumiere, a Companhia de Variedades de Fauré Nicolai realizou a primeira exibição de cinematógrafo em Campinas.
Mas, a grande noitada de glória do Teatro São Carlos ocorrera antes, a 4 de julho de 1886, quando Sarah Bernhardt (1844-1923), a mais famosa atriz teatral de todos os tempos, com toda a sua companhia, se apresentou com A Dama das Camélias, de Dumas Filho, depois de ter sido recebida na estação ferroviária com uma verdadeira apoteose, que incluiu a execução do Hino nacional da França, pela banda local.
Tudo isso são fatos artísticos que fizeram de Campinas um reduto vivo e sempre empolgado de criatividade artística, em que espetáculos e criações locais de teatro, dança, cinema, música, artes plásticas e literatura fazem parte da vida da cidade há 160 anos, pelo menos.
Mas, de qualquer forma, tem sido na música de alto repertório que a cidade é historicamente mais notória, no que se refere à criação artística.
Da música composta em Campinas no século XIX há vários expoentes a historiar. Neste primeiro artigo quero destacar a família Gomes, por seu patriarca Manuel José Gomes e seus dois filhos do segundo casamento, José Pedro de Sant’Anna Gomes e Antônio Carlos Gomes.
Manuel José Gomes (1792-1868), nascera modestamente em Parnaíba (hoje Santana de Parnaíba, perto de São Paulo), como filho de uma escrava liberta e de um tenente-coronel do Exército, que residia em São Paulo. Foi educado pelo padre José Pedroso de Moraes Lara, mestre-de-capela local, que deu a Manuel formação musical básica. Posteriormente, em São Paulo, Manuel aperfeiçoou-se estudando com o importante compositor português André da Silva Gomes (1752-1844), que era mestre-de-capela da Sé de São Paulo. Por volta de 1815, Manuel é nomeado pelo bispo de São Paulo, mestre-de-capela da Vila de São Carlos (a futura cidade de Campinas), onde ele passa a morar e trabalhar, não apenas como mestre-de-capela, mas também como professor de canto, órgão e violino de filhos e filhas dos potentados locais.
Os estudos de aperfeiçoamento que fez em São Paulo com o talentoso e experiente compositor português, somado ao seu notório instinto musical consolidaram em Manuel José Gomes uma obra ampla e diversificada, em um estilo partido do Classicismo de Haydn, com um melodismo, marcadamente à italiana, claramente influenciado pelo padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que foi o nosso primeiro gênio musical. De Manuel Gomes se devem destacar peças como um inspirado concerto para violoncelo, de 1841, e um quarteto sobre motivos do Dom Giovanni de Mozart, de 1851, mas a grande maioria de sua obra é composta de peças de música sacra, que lhe competia compor na condição de mestre-de-capela da matriz local que era, em que se destacam uns motetos para a Sexta-feira de Passos (1831), uma Ave Maria (1842), um Te Deum (1851) e um belo Veni creator Spiritus (1854) para soprano e orquestra, escrito para preceder a respectiva pregação de púlpito na igreja. A peça utiliza a primeira e a sétima estrofes desse hino sacro medieval dedicado ao Espírito Santo e destinado pela Igreja católica a ser cantado na Festa de Pentecostes.
Existe uma ótima gravação dessa peça feita em Campinas (cujo manuscrito original integra o acervo de partituras do Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes), por Manuel José Gomes. A referida gravação (em CD) pela gravadora Paulus, em 1999, tem como solista vocal a soprano Celeste Gattai do Brasilessentia Grupo Vocal, acompanhada pela Orquestra de Câmara da UNESP, com regência do maestro Vitor Gabriel.
Dos nove filhos, nascidos de três das quatro mulheres com quem Manuel José Gomes viveu maritalmente em Campinas, vários deles, e parte de seus respectivos descendentes, foram executantes musicais importantes, como suas filhas Joaquina e Ana Luiza (pianistas e professoras de piano); seus netos Alice (pianista) e Alfredo (violoncelista que estudou na Bélgica e foi catedrático de violoncelo no Conservatório Brasileiro de Música), que eram filhos de José Pedro de Sant’Anna Gomes, e seus bisnetos Iberê (violoncelista), Ilara (pianista) e Alda (violinista), todos três filhos de Alice Gomes e, portanto, netos de Sant’Anna Gomes.
Mas os dois nomes musicalmente mais importantes, dentre os descendentes de Manuel José Gomes, são seus filhos José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908) e Antônio Carlos Gomes (1836-1896).
Ao contrário de seu famoso irmão Antônio Carlos, José Pedro nunca morou fora do Brasil. Tendo aprendido, na passagem da infância para a adolescência, as bases da composição musical com seu pai, estudou depois, em profundidade, violino e viola, tendo-se tornado um virtuose em ambos os instrumentos.
Com a morte do pai em 1868 (quando ele tinha 34 anos), passou a dirigir a banda a qual ele fundara em Campinas, criando mais tarde a Orquestra Carlos Gomes, que ele regia e que atuava no Teatro São Carlos, tida, à época, como o melhor conjunto sinfônico da Província de São Paulo.
Sem ser tão abundante quanto a de seu pai, a obra musical de José Pedro de Sant’Anna Gomes inclui música de câmara (em que se destacam vários quartetos e quintetos de cordas), música instrumental solística (com ênfase para um dueto em sol para dois violinos acompanhados de piano), várias canções para canto-solo e piano e abundante música sacra, merecendo serem ouvidas um O salutares para coro e orquestra (1873), um Pange, língua (1879) e uma Ave Maris Stella, que é uma ária para mezzo soprano e Viola d’Amore (1883).
Infelizmente, durante pelo menos os últimos cem anos, nada se gravou nem nada se executou de José Pedro de Sant’Anna Gomes, um grande e inspirado nome da música campineira do século XIX, cujas partituras originais envelhecem injustificadamente, junto à maioria das de seu pai, no Museu Carlos Gomes do CCLA, o qual há anos vem sendo administrado pela musicóloga campineira Lenita Waldige Mendes Nogueira, que em 1997 publicou (pela Editora Arte e Ciência) o Catálogo de manuscritos do referido museu, em ótimo serviço à musicologia brasileira e campineira que, lamentavelmente, parecem ainda não terem acordado…
De Antônio Carlos Gomes, o segundo filho de Manuel José, dois anos mais novo que José Pedro de Sant’Anna, não é preciso falar muito, porque já existe sobre ele uma bibliografia razoavelmente ampla, tanto no Brasil quanto na Europa e, embora com frequência bem menor do que seria lícito esperar, já se conhece – e se tem gravada – considerável parte de sua obra (cantatas, revistas musicais, óperas, hinos, canções sacras e seculares, modinhas, peças para piano etc.).
Mas ainda se fala e se escreve – sobretudo no Brasil – muita bobagem sobre sua música, histórica e esteticamente importantíssima, a respeito da qual ainda há o que esclarecer.
Porém, aqui, nos limites deste post, vamos deter-nos apenas na menção analítica de uma questão rápida mas historicamente importante, em relação a Antônio Carlos Gomes: durante anos, a nossa solerte mas sempre claudicante musicologia (sempre às voltas com dificuldades decorrentes do pouco, disperso e mal organizado material de pesquisa, à disposição de uns poucos e eventuais interessados) proclamara, inclusive em livros, que a primeira peça de música instrumental que se poderia considerar como possuidora de caráter nativista brasileiro era o Tango brasileiro, feito em 1890 pelo compositor paulistano de formação europeia e origem francesa, Alexandre Levy (1864-1892), um inspirado e laborioso compositor que, lamentavelmente, morreu com apenas 28 anos de idade.
Posteriormente, novas pesquisas levaram críticos e musicólogos a afirmar que, ao contrário, a primeira peça instrumental nativista de nossa música de alto repertório seria A sertaneja, feita em 1869 pelo compositor e diplomata paranaense de Paranaguá, Brazílio Itiberê da Cunha (1846-1913), cuja referida peça faz uma estilizada elaboração pianística do tema folclórico brasileiro Balaio, meu bem, balaio. Aliás, uma circunstância interessante que envolve essa Sertaneja é o fato de que, tendo ingressado na carreira diplomática, a convite da princesa Isabel, Brazílio Itiberê viveu em muitas localidades europeias sem abandonar suas atividades de compositor e seus contatos com o mundo da música e, segundo se sabe, certa vez, em sua residência na Itália, ele foi visitado por três dos maiores pianistas do mundo à época, que eram ninguém menos que o pianista, compositor e professor russo Anton Rubinstein (1829-1894), que foi professor de Tchaikovsky, o compositor e pianista italiano Giovanni Sgambati (1841-1914), que fora aluno de Liszt, e o próprio Franz Liszt (1811-1886), que dispensa comentários.
Pois sabe-se que Liszt, por ocasião dessa visita a Brazílio Itiberê, examinou a partitura original de A sertaneja, executou-a ao piano e elogiou muito a peça.
Porém, mais recentemente, por volta dos anos 1970, descobriu-se a partitura de uma peça pianistica feita por Antônio Carlos Gomes, em 1857 (12 anos antes de A sertaneja de Itiberê), quando Carlos Gomes tinha 21 anos e ainda vivia em Campinas, que é um batuque vigoroso e irresistível, a que ele deu o título de Cayumba, que é palavra de radical afro, que se usava em Campinas como segunda designação para um ritmo musical popular típico das comunidades de afrodescendentes da cidade e que também se conhecia como Samba de bumbo, cujo módulo rítmico tem indisfarçável parentesco com o jongo, que se tem como um dos ritmos precursores do samba.
De tudo isso se conclui que, até eventuais novos achados, a Cayumba de Carlos Gomes, feita em 1857, é a mais antiga peça de música instrumental brasileira com caráter nativista, típico de todas as manifestações artísticas do Brasil nos inícios do século XIX. A Cayumba está gravada em CD editado pela Funarte em 1980, intitulado O piano brazileiro de Carlos Gomes, que contém essa e mais 15 outras peças pianísticas de Carlos Gomes, em primorosas execuções do pianista brasileiro Fernando Lopes.
Referências bibliográficas
AMARAL, Leopoldo (org.). A cidade de Campinas em 1901. Campinas: Livro Azul, 1902.
DUARTE, Raphael, Campinas de outrora. São Paulo: Andrade e Mello, 1905.
LAPA, José Roberto do Amaral. Primeiras notas para uma bibliografia da história de Campinas. Revista de Estudos Históricos, nº5/5. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, 1966, separata.
MARCONDES, Luiz Fernando. Dicionário de termos artísticos, Rio de Janeiro: Ed. Pinakotheke, 1998.
MARCONDES, Marcos Antônio (ed.). Enciclopédia da música brasileira, 2 vols. São Paulo: Art Ed., 1977.